Nunca me custou tanto ir de férias. No SNS reside praticamente todo o meu percurso profissional. O SNS vive um desafio nunca antes vivido. Não sei se o SNS tal como o conhecemos chega ao fim deste ano.
Tenho 59 anos. Licenciei-me em 1988. Fiz o Internato Geral - que então era de dois anos - e ingressei na especialidade de Medicina Interna em 1991. Optei por fazer o Internato em exclusividade, o que assegurava algum reforço remuneratório e uma segurança de contrato de 18 meses no fim do Internato.
Estes 18 meses foram mesmo assim curtos para a minha alocação profissional definitiva ao meu Hospital de origem - o São João - e trabalhei alguns meses na Medicina Interna de Gaia onde fiz bons amigos. Reentrei em exclusividade em 2002 ou 2001, já nem me lembro bem. Assim foi. Passados 20 anos, não vou chorar pelo leite derramado. A exclusividade obrigava-me a um horário de 42h - que ainda hoje mantenho - e dava-me dois suplementos remuneratórios, o da exclusividade e o devido ao horário acrescido. A exclusividade foi assumida como cara pela tutela em 2005 e extinta.
Enquanto interno trabalhei sempre 24 a 36 horas de urgência por semana. Com especialista 12 a 24. Nunca trabalhei menos de 50 horas por semana, muitas semanas foram de 60 horas ou mais. O meu percurso profissional não é um exemplo nem um modelo para ninguém. Foi o que foi. Hoje penso que tenho sorte por ter 59 anos. O mês passado trabalhei de noite pela última vez. Por lei podia ter acabado com as noites em 2014. Porque fiz noites estes últimos nove anos? Porque ainda as conseguia fazer com qualidade e porque precisava. Parei o mês passado antes que algum doente me explicasse - a custas próprias, não minhas - que estava a trabalhar no turno errado.
Repito não me ver como exemplo para ninguém. Em algumas coisas, aliás, vejo o meu percurso com algo hoje a evitar.
Quer o Interno quer o Especialista de Medicina Interna ganham hoje comparativamente menos do que eu ganhava. E sabem mais e melhor. Para terem um ordenado digno da diferenciação adquirida fazem e fazem horas extraordinárias, trabalham em mais do que um sítio como prestadores de serviços a certas e determinadas empresas.
Falei aqui frequentes vezes do Internato de Especialidade. Que o Ministro de Saúde (MS) (que já foi ele também Interno) recusa colocar como o primeiro degrau da Carreira Médica. Os Internatos de Especialidade duram em média cinco anos. O meu Exame de Especialidade foi em 1997, tinha eu 33 anos por fazer. Só então entrei - aos 33 anos - na excelsa Carreira Médica. Os Internos são os vasos capilares do SNS. Parando os Internos o SNS pararia, sem mais.
Isto não pode continuar. O terrível modelo de Dedicação Plena, onde a obrigatoriedade de Horas Extraordinárias (HE) duplica, os descansos após trabalho em fim-de-semana desaparecem e o sábado passa a ser dia útil, é uma espécie de Gaiola (não muito) Dourada, uma nova escravatura no Séc. XXI.
É tempo de o MS dar sem exigir nada em troca. Aos médicos muito é devido já há muito tempo. Eu compreendo o desespero do MS. Com esta escusa às 150h de HE, completamente dentro da lei, a ser assumida por um movimento inorgânico mas a generalizar-se de médicos jovens e menos jovens, a espinha dorsal do SNS, como dizem os ingleses, HE'S BEEN OUTSMARTED. Isto das melhores médias devia servir para alguma coisa e não me lembro do Manuel Pizarro ter sido um aluno de Faculdade particularmente brilhante.
Demore esta situação mais do que alguns dias e pessoas vão morrer que não deviam ter morrido
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