sábado, 13 de junho de 2020

Do Racismo.

Às vezes o meu pai levava-me ao futebol. Ficávamos cá para trás, para evitar as confusões que aconteciam no campo da Ovarense nas primeiras filas, sobretudo quando defrontava o Valecambrense ou o Esmoriz. A Ovarense tinha vários jogadores negros, lembro-me do nome de dois: o Humaitá e o Pepe. Que quando marcavam tinham nome, quando falhavam eram apenas "pretos". 

Em 1955 no sul dos Estados Unidos Rosa Parks recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco. Não foi no século XVI, foi há precisamente 65 anos. Na época de 54/55 jogou pela primeira vez no Benfica Mário Coluna, o outro grande jogador negro português, reconhecido internacionalmente como médio de excepção e cá como o "Monstro Sagrado". Foi o patrão do balneário do Benfica durante mais de uma década. Ao contrário de Eusébio, voltou para Moçambique e morreu Moçambicano a tentar fazer alguma coisa pelo desporto do seu país. Se não fosse pelo futebol não sei se o português branco normal e corrente de então não seria mais racista. Hoje temos Eusébio no Panteão, portanto, e aproveitando Rui Rio, "não há racismo em Portugal".

Das minhas memórias televisivas do antes do 25 de Abril, para além das mensagens de "um Ano Novo cheio de Propriedades" dos soldadinhos no Ultramar, lembro-me ainda de publicidade e chamar colonos para o Tete, em Moçambique. Nascido eu em 64, vejam o anacronismo do apelo. 

O colonialismo português tem a fama de ter sido "suave". Não terá sido assim porque era um país pobre a fazê-lo e portanto não dava para mais?

Apelidar Vasco da Gama ou o Padre António Vieira de racistas e colonialistas é desconhecer a história e falhar os séculos. Destruir estátuas de Colombo, por pouca simpatia que eu tenha pela figura, não serve de nada. A descoberta da América foi o encontro sangrento não de dois mas de três continentes. A Europa descobriu a América e com ela se relacionou como de costume, conquistando e subjugando. Nestes lavores matava-se. Nada de novo ou de anormal para aqueles tempos. As doenças europeias por outro mataram milhões e milhões e milhões de índios americanos, sem qualquer imunidade para as mesmas. Com o passar do tempo passaram a ser uma minoria na sua própria terra. Para trabalhar o continente recém-conquistado era necessário mão-de-obra não barata mas sim gratuita e obrigada. A colonização da América não inventou a escravatura, esta era fundamental nas cidades gregas, no império romano, nos vários impérios muçulmanos. Mas nunca aconteceu numa tão grande escala. 

A descolonização apanhou-me no Ciclo Preparatório, tinha eu 11, 12 anos. Recebi na minha turma variados filhos de retornados, eles retornados também. Tive-os como amigos ou conhecidos, dezenas. Vou contar casos isolados, minoritários, gotas num oceano, mas conversas que lembro. Dum fiz-me amigo para a vida, hoje também médico. Para ele os negros eram os "blacks". E aqui terminava a utopia da sociedade multicultural moçambicana. Havia "eles", os "blacks", e nós. Outra amiga minha descrevia já no liceu com eterna saudade os seus passeios de criança pelas águas da baía da então Lourenço Marques, da mão da sua criada (negra, aposto). No começo da faculdade uma colega minha de ano falava dos negros como "não sei, diferentes". E afastava o corpo, encolhendo-se. Isto foi em 82, ainda o apartheid não tinha caído. Falo de conversas que me impressionaram, conversas contadas, poucas, um detalhe num mundo de sofrimento que foi para essa gente toda o procurar refúgio num Portugal que sem entusiasmo os recebeu.

Um dos médicos que me formou e para quem tenho uma dívida de gratidão infinda trabalhou anos com a Faculdade de Medicina de Maputo. A sua opinião era sempre a mesma, embora eu não lha tivesse pedido: "a verdade é que eles não se sabem governar". Como se um incapacidade definitiva se abatesse sobre uma cor de gente. Como se um país cujas fronteiras foram feitas por outros, com várias etnias, línguas, riqueza bastante e pobreza extrema e vítima de uma longa guerra civil alimentada do exterior fosse fácil de governar.

Rui Rio é seis anos mais velho do que eu. Com certeza quando mais novo ainda assistiu a conversas ao jantar entre pessoal mais velho a decidir se era racista ou não e a frase-chave era sempre esta: "tudo isso está muito bem mas tu aceitavas um negro como genro?". O silêncio na assembleia era a resposta.

A cor. Uma característica à qual não se pode fugir. Eu sou branco mas pouco, moreno, bem mais após uns não muitos dias de sol. E tenho os dedos curtos e achatados, os braços finos e as pernas grossas. Os caninos mal implantados que sobressaem se me rio. As orelhas conformadas e os olhos finos. Já aqui disse que de pequeno chamavam-me de "chinês". 
O meu coração, acredito, será como  o de todos, de um vermelho-escuro.

Os portugueses são hoje menos racistas do que ontem. Mas o melhor é mantermo-nos vigilantes.

 


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