Tive óptimas colheitas de internos na minha sala de internamento, quando a tinha. Quando passei a trabalhar em 2006 numa Unidade foi o que mais senti, a falta de uma equipa "minha", cujo molde frequentemente terminava em amizades para a vida.
Em 2001 assim foi. No jantar de despedida da sala, onde ainda participou como sombra benfazeja a minha antiga orientadora Dra Silvia Pires, terminei os comeres com algumas parcas palavras e lendo um poema do Jorge Sousa Braga.
O João Luis Barreto Guimarães tinha um blogue de poesia em conjunto com o Jorge Sousa Braga, ou tinha, não sei se o mantêm, os blogues deixaram de ser moda, agora temos o tweet. Ambos médicos e da mesma casa, o Santo António. Serão amigos, assumo, embora separados na idade por dez anos, mais velho o obstetra, já estará se calhar reformado ou em vias de. O que foi premiado dá aulas de poesia no curso de Medicina do ICBAS, o que eu acho uma fantástica ideia. Lá explicará exemplificando o que a poesia só pode ser, a vertigem (a inteligência sendo outra coisa). Por modéstia que não lha negarei, não utilizará poesia sua. Também não dava. Ainda se fosse alguma do colega mais velho...
Da vertigem avanço exemplos, todos vivos, para que conste:
HELDER MOURA PEREIRA
Vem com traços de morte
e traços de vida, olhos, nariz,
lembrava-me ao longo do tempo
tudo o que fiz e não fiz.
A tua cara conhece-me
de qualquer lado.
A tua cara não me é estranha.
Mostro que não sei nada de nada,
é mesmo coisa difícil indicar o norte.
Um dia terei uma vaga lembrança
e responderei ao meu nome com um número.
Devo ser daqueles que,
nos últimos instantes da vida
olhando a última cara
sobre eles debruçada pensarão
esta cara não me é estranha.
ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE
todos os pecados hoje, nenhum falta
ao seu orgulho de água e alavanca. assim
é fácil sob a cortina
o ouvido confessional;
paisagens tão marítimas que um dia
será tarde e nunca os automóveis
passam sem o leve
assobio dos pinhais;
vantagens conseguidas palmo a palmo,
vinhas, o trigo, lã, comércio
de pimentas absortas,
e não obedecer, assim desejo
o seu olhar retido nas imagens,
a sua fonte de lazer, pecados.
NUNO MOURA
Uma rapariga que se chama flô
trabalha em conjunto com o chão
e com o vento.
Quando sobe lá acima
toda a gente traz a pipoca suspensa
na língua.
Qua do ela fica sem o trapézio
todos se organizam
em rede.
A M PIRES CABRAL
DE QUE MORRE
E aonde os seus passos o levarem
verá do dia as feras contigências
e nenhuma promessa a germinar.
Perplexo como Pilatos,
não saberá ao certo de que morre
o homem: soterrado em santidade
ou de teima afogado em suas fezes.
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
País de restos de palavras.
CARLOS POÇAS FALCÃO
Ele vem sob a forma de paragem
naquela inspiração de resguardar os passos
colher os movimentos. Ele chega
saudando os preparados, perguntando
pelos que o tempo agita. Chama
em silêncio os que se unem, pelo nome
os dispersados. Concede uma loucura
conforme o afastamento. E inflama
no tempo o coração apenas de passagem.
Assim a sua vinda é instantânea.
Guia para si as obras mais longínquas:
chama e elas vêm, cala e elas param.
REGINA GUIMARÂES
eu te sopro e eu te sofro
te interrogo à queima-roupa
sobre o que não tem resposta
e a toda a hora se mostra:
quantas baixas, meu amor,
haverá a registar
e com que dedos gelados
haveremos de contar?
--//--
Qed.
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