sábado, 25 de março de 2023

Almodóvar: A Lei do Desejo e a Má Educação.

Não me lembro de ter visto Matador. Ou vi e não me ficou lembrança. Vi sim e no cinema a "Lei do Desejo". Não na estreia mas numa retrospectiva qualquer das muitas que antigamente se fazia com as primeiras obras de Almodóvar. 


Pode considerar-se o primeiro filme "masculino" de Almodóvar, e a história vai assim: Pablo é um realizador de cinema de sucesso, homossexual reconhecido e com uma relação com um rapaz mais novo, Juan, que está confuso sobre o prosseguir da relação. Pablo tem uma irmã, Tina (outra vez a fantástica Carmen Maura), que é uma transsexual. Tina toma conta da filha de uma ex-amante. Juan vai para o sul para realinhar os chacras e entretanto Pablo encontra-se com Antonio (Antonio Banderas), um fã que vive obcecado com ele, e os dois desenvolvem uma relação tudo menos saudável. 

Lembro-me da aura que o filme tinha quando o fui ver, o de ser o "filme sério" de Almodóvar, e daí não ter ficado completamente encantado com ele. Passaram mais de trinta anos e muitos filmes deste autor. O filme sustenta bem a revisão.

Pablo é um tipo encantador, abertamente narcisista e descomplexado sobre o que custa às pessoas aproximarem-se dele. É adorado - como terá sido Almodóvar no auge da Movida de Madrid - e Juan precisa de afastar-se para se recentrar. Pablo não aceita os postais e as cartas que o namorado lhe envia, antes escreve ele cartas "melhores" para que depois o namorado lhas reenvie. Este egocentrismo despreocupado não sobrevive (ou quase) a Antonio. A fixação de Antonio em Pablo dirige o filme e leva-o para abismos de tragédia que poderão talvez ilustrar o que Almodóvar chama a "Lei do Desejo" - no sentido de uma impossibilidade, de um desencontro fatal entre os desejos de cada um e de cada outro. No fim Pablo aceita Antonio pois nunca ninguém lhe fôra tão dedicado, sentindo-se "ultrapassado" pelo querer de Antonio e pela sua coragem de assumir o preço da sua obsessão.   

Tina é mais uma grande criação de Carmen Maura e dá outra largura a este filme, outra respiração. Iniciada sexualmente enquanto rapaz pelo cura de uma igreja onde cantava no coro, fugiu apaixonadamente com o pai para Marrocos onde, por amor dele, se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo. Ele depois deixou-a por outra mulher. Para o fim do filme volta finalmente a deitar-se com um homem que resulta ser Antonio, louco para possuir tudo o que é de Pablo. Tina, a figura mais simpática e verdadeira do filme - Antonio e Juan parecem fisicamente modelos de revista - não encontra quem a queira e é, realisticamente, maltratada durante todo o filme, por ser transexual. Este papel faz mais pela causa destes do que mil manifestações. 

Não há comédia nenhuma neste filme, é verdade, embora o caldo esteja aqui todo por trás. As drogas, o sexo explícito, as confusões de género, isto é Almodóvar prime do século XX. O filme perde um pouco o pé, aqui e ali, e não cresce, não sobe mais a partir do patamar ao qual chegou a meio. Mas bem vale uma visita e é um passo importante no percurso de Almodóvar, notando-se também uma cinematografia muito mais sabedora que, por ex., três anos antes.   

Na última cena do filme Pablo atira a máquina de escrever pela janela, com se fosse um instrumento maldito. A máquina de escrever voltaria a ser muito importante noutro filme 17 anos depois, a "Má Educação". 





Pedro Almodóvar tem uma imagem de todos conhecida. Como gostaria ele de ser numa outra realidade? É curioso que na "Lei do Desejo" e na "Má Educação", filmes afirmados como tendo toques autobiográficos mas separados por 17 anos, os dois protagonistas que são realizadores de cinema se pareçam bastante um com o outro. E parecem-se também na sua atitude algo desprendida, sem outro projecto real a longo prazo que não fazer filmes, aquilo que os move. 




"La Mala Educación" conta a história de dois rapazes que se conheceram e se apaixonaram num colégio de padres, de um padre que os separa e abusa de um deles, e do que lhes acontece na vida bastantes anos depois, entrando na história o irmão mais novo de um deles. É um filme negro, negro, assim desenhado, escrito e filmado. Aqui não há comédia. O respiro de Paca (Javier Cámara, quer faz de cardeal no Jovem Papa de Sorrentino) serve apenas para enquadrar a figura de Ignácio, sendo que na realidade nem sabemos se é verdadeiro. E isto porque "Má Educação" está feito como um filme dentro de um filme dentro de um filme. 

Enrique e Ignacio são os dois rapazes do colégio. Enrique é expulso por ciúmes do padre Manolo, que abusa de Ignácio. Enrique é anos depois um realizador de cinema que recebe a visita de Juan, irmão de Ignacio, que diz ser "o Ignacio" (depois saberemos porquê) mas quer ter o nome artístico de Angel. Juan/Ignácio/Angel entrega a Enrique uma história chamada "A Visita"  em que Ignácio conta a sua juventude (com Enrique, claro), o seu percurso até se transformar num travesti heroinómano, e a visita que pretende fazer ao padre Manolo para que ele pague todo o mal que lhe fez..

Enrique descobre pouco depois o embuste mas compra o engano começando a filmar a história com Juan no principal papel (o do seu irmão) e tomando-o ao mesmo tempo como amante. Temos então o filme "do que aconteceu", o filme do que "está escrito" no texto de Ignacio, e o filme que Enrique filma baseado no texto que Ignacio escreveu, embora com alterações. 

No dia em que se filma a cena final e - no filme dentro do filme - Ignacio morre, o padre Manolo, agora um homem casado, aparece nas filmagens e tudo se precipita. 

Neste filme não há remissão dos pecados. A maldade vai mesmo até ao fim. Almodóvar explica com o título do filme de quem é a culpa, embora obscura fique a génese da maldade ("pequena"? rural?) em Juan. Este defende-se dizendo "Tu no sabes lo que es tener un hermano como Ignacio en um pueblo, tio!". Esta pode ser uma frase assassina para uma certa ruralidade espanhola que não acompanhou as mudanças das movidas. Será apenas isto? Enrique sai incólume porque, expulso, não foi educado pelos padres, achará Almodóvar. Ele lá sabe. Como já disse, Enrique repete o Pablo da "Lei do Desejo". Há quem diga que eles os dois são Pedro. Pedro Almodóvar está casado com o fotógrafo Fernado Iglesias desde 2002, embora vivam em casas separadas.

O Almodóvar do século XX não filmava culpas e na "Lei do Desejo" ninguém é declarado culpado. Na "Má Educação" o filme gira à volta da culpa, a daquela separação, a do abuso e de tudo o que foi por ele desencadeado.  A justiça poética do fim da "Lei do Desejo" não se repete na "Má Educação".  Que não deixa de ser um filme muito bom, até talvez o melhor filme dos dois. Mas como comparar filmes filmados em tempos tão diferentes?

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