terça-feira, 4 de junho de 2024

Anuário Ilustrado do Ciclismo - 1948.


A 14 de Março aconteceu a Het Volk e com uma novidade interessante: Fausto Coppi veio correr a Het Volk. E ganhou-a. Mas não. Para ganhar a prova recebeu uma roda para trocar duas vezes, uma delas dum não companheiro de equipa. Venceu um sprint num grupo reduzido mas pela troca foi despromovido para 2º. "A minha corrida mais difícil de sempre", disse. O vencedor afinal, Sylvain Grysolle, já tinha vencido no tempo da guerra uma Volta a Flandres e uma Flche Wallone. Mas ficou mais conhecido para a história por este episódio. Adiante.

Em 1948 quatro jornais desportivos criaram o Challenge Desgrange-Colombo (CDC), uma competição que agregava as melhores provas do ano segundo pontuações diferentes para decidir no fim do ano qual tinha sido o melhor ciclista. Isto era um antepassado dos rankings actuais da UCI. Desgranges vinha do criador do Tour, Colombo do criador do Giro. A Milano Sanremo ia ser a primeira prova do CDC, mais um incentivo para a integração das provas ciclistas na Europa ocidental. Mas o Het Volk  não constava na lista. Já agora a lista: Milâo-Sanremo, Paris-Roubaix, Paris-Bruxelas, Volta à Flandres, Flecha Valónia (isto de aportuguesar...), Paris-Tours, Volta à Itália, Volta à França, Volta à Lombardia. De notar a não adição da Liége-Bastogne-Liége.   

E a Milano-Sanremo a 19/3 acontece como previsto, Coppi estava isolado com mais 3 fugitivos e a 45km da chegada no Capo Mele arrancou para chegar a Sanremo com 5' de avanço. Graças ao CDC tivemos alguns franceses, o 1º em 9º lugar, belgas, o 1º o veterano Marcel Kint em 15º, suiços e até um espanhol na lista de chegada!


A 2ª prova do CDC era a Paris-Roubaix. Ganhou-a Rik van Steenbergen num sprint a dois com o francês Emile Idée. Vamos falar um pouco de Rik van Steenbergen, que na década seguinte iria ser conhecido como Rik I, para contrapor a Rik van Looy. Van Steenbergen mal correra estrada em 47 mas fizera inúmeros cirtérios. Rik van Steenbergen era um excelente corredor e uma máquina de ganhar dinheiro. E era na pista e nos critérios que se ganhava dinheiro. As corridas serviam para dar nome, ganhar cartaz. Portanto assim se pode analizar a carreira de van Steenbergen. Ele nunca correu muita estrada por ano, tinha mais que fazer, mas estrategicamente escolhia algumas provas para as ganhar e o seu nome continuar na ribalta. Foi assim até ao fim dos anos 50, sem falhar. Esta vitória no Paris-Roubaix não tinha nada a ver com o recém inventado CDC. Era para garantir mais contratos. Voltaremos portanto a falar dele mas efectivamente só de vez em quando.

A Paris-Bruxelas, apesar de ter sido incluida no CDC, chamou um pelotão sobretudo belga e foi ganha ao sprint num grupo numeroso por Lode Poels, Albert Sercu 2º. Idem a Volta à Flandres, vencida ao sprint num grupo reduzido por Briek Schotte, a correr melhor do que em 47. Já a Fléche Wallonne ganhou-a Fermo Camellini, a meses de se naturalizar francês, com 3' de avanço sobre Briek Schotte. Nestas 3 provas do CDC não era ainda muito visível uma grande internacionalização do pelotão que comparecia à partida.

 A 5/4 aconteceram duas provas, a Paris Tours e a Zurich Metzgete. A Paris Tours contava para o CDC e teve um pelotão bastante variado. Venceu Louis Caput, a sua maior vitória, sprintando num pequeno grupo. Briek Schotte foi 7ª à frente do 1º pelotão. Louis Caput, "P'tit Louis" era um ciclista francês muito querido no pelotão e iria trabalhar em 1969 com Jean de Gribaldy na Frimatic, a equipa de Agostinho. Em 1970 passou como director para a Mercier, a equipa de Poulidor, e foi o director desportivo de Poulidor até à sua retirada da competição em 77. A Zurich foi ganha por Gino Bartali contra uma chusma de corredores suiços, num sprint (!) em grupo alargado.

Louis Caput foi 3º no início de Maio na Liége-Bastogne-Liége, o vencedor um desconhecido Maurice Mollin. 

A 6 de Maio começou a 2ª Volta à Romandia. A estrela local Ferdi Kubler dominou a prova, vencendo a 1ª e a 3ª etapas. No pódio dois competentes luxemburgueses, Goldschmit e Mathias Clemens. O italiano Bresci foi 4º, o espanhoL Bernardo Ruiz foi 11º. A ele voltaremos.

A Gent-Wevelgem de 9/5 teve como vencedor um "Flandrien" de 2ª linha Valére Ollivier.

A 15 de Maio começou o Giro de Italia. Giordano Cottur ganhou a camisola rosa após uma fuga na 1ª etapa. Bartali e Coppi estavam confortáveis a 7' à espera das batalhas nas montanhas até que na 9ª etapa para Nápoles um grupo de escapados ganhou 13' ao pelotão. Neles constava Fiorenzo Magni. A camisola rosa tinha rodado para outro escapado, Vito Ortelli, mas o verdadeiro perigo era Magni ou Ezio Cecchi, um veterano de 35 anos que já fôra 2º em 1938.

Paremos um pouco para falar sobre Fiorenzo Magni. Um ano mais novo do que Coppi, 6 do que Bartali, em 1940 ainda não era ciclista federado. Coemçou a correr durante a guerra mas em 1943 foi mobilizado para servir nos corpos de guarda fascistas e viu-se envolvido, provavelmente sem nenhuma parte activa, numa confrontação em 1944 perto da sua terra natal, onde vários resistentes anti-fascistas foram mortos no momento e depois de presos, torturados e assassinados. Magni nunca foi completamente ilibado deste evento e nunca se pronunciou sobre o sucedido. Em 1946 esteve impedido de correr pelo processo judicial que corria e que só desapareceu com a Amnistia Togliatti que aconteceu para tentar uma reconciliação do país. Magni já correu portanto em 1947 e em 47 já fizera um top10 no Giro e um 4ª lugar no Mundial, o melhor italiano.

Magni consegue a rosa na etapa 14, só porque Ortelli se atrasa do pelotão sem mais. Cecchi ataca na etapa 15 e ultrapassa Magni. As etapas 16 e 17 são as clássicas etapas dos Alpes e Coppi venceu as duas mas sem ganhar o tempo necessário para ultrapassar Magni. Cecchi sofrera um furo e queda na etapa 17 e agora, ao iniciar a penúltima etapa estava atrás de Magni 11 segundos, Coppi, 1'20''. Coppi não partiu para a penúltima etapa e retirou a sua equipa de prova, alegando favorecimento de Magni pela organização e pelo público, que o teria "empurrado" encosta acima na última subida. Verdade ou não, Magni vencia o seu primeiro Giro de Itália e com a mais pequena diferença de sempre sobre o 2º classificado que 10 anos depois repetia o posto, Ezio Cecchi.

Coincidindo com o Giro foram acontecen do várias corridas por etapas. A Volta à Bélgica foi ganha porr Stan Ocker, o 2ª Dauphiné Liberé deu a vitória a Fachleitner, o francês que fora 2º no Tour de 47, sendo Jean Robic 3º,  a Volta ao Luxemburgo ficou entregue a um homem da casa, Goldschmit. 

A 12 de Junho começou a Volta à Suiça. Esta era a prova por etapas com o pelotão mais internacional nestes anos de reinício.  Foi dominada por Ferdi Kubler, suiço, em 2ª aparecia o italiano Giulio Bresci, em 4º o francês Robic, em 5º o luxemburguês Jean Kirchen. Não sei porquê uma mão-cheia de belgas de qualidade não parece ter chegado ao fim. E não havia espanhóis.

Não havia espanhóis porque a 13 de Junho começara a Volta à Espanha. 

A Vuelta foi ganha por Bernardo Ruiz, um corredor de 23 anos que já tinha no seu palmarés a Volta ã Catalunha  de 3 anos antes. Venceu nas montanhas bascas onde se superiorizou a Dalmácio Langarica. O pelotão era pequeno, 54 corredores, com alguns estrangeiros de 3ª apanha. A Volta a Portugal de 48 teve um pelotão maior... Mas Bernardo Ruiz era um nome a reter.

Ainda com a Vuelta a acontecer começava o Tour de France.  O Tour assegurara a sua primazia como a corrida das corridas ao se basear em equipas nacionais, cuja presença tinha sido "incompleta" em 1947. Em 48 já tínhamos à linha de partida o melhor para corridas de 3 semanas, eg. o Tour. Ou quase. Nos italianos a dúvida sobre a presença de Coppi resolvera-se com a sua suspensão pela Federação Italiana após a desistência do Giro. Bartali tinha o caminho aberto. Mas a equipa de apoio era surpreendentemente anónima. O vencedor do Giro, Magni, para não ir mais longe, não constava da lista de partida. A Itália mesmo assim merecera uma 2ª equipa de corredores mais novos, ditos "cadetes", também sem grandes nomes. Nesta equipa aparecia um Mario Fazio que em 1950 seria 2º na Volta a Portugal, se não me engano, a correr pelo Sporting. Nos franceses as estrelas eram as mesmas, Robic, Fachleitner, Teisseire, Lazarides, Vietto. Mas dava-se especial atenção a um rapaz de 23 anos chamado Louison Bobet. Nos belgas, não muito dados a estas corridas compridas, era de notar o jovem Impanis, que fôra 10º em 47 e ganhara o famoso contra-relógio, Norbert Callens, Stan Ockers, o vencedor da Vuelta de 47 Van Dijck, e, atenção, Briek Schotte. Para além de 5 equipas francesas regionais ainda tinhamos uma equipa neerlando-luxemburguesa, onde o único nome de jeito era Jean Kirchen, e uma última dita de "internacionais" onde entravam dois suiços, os irmãos Aeschlimann, e os franco-italianos Brambilla e Camellini. Comentava-se a ausência do melhor suiço, Kubler. Mas ninguém perguntava por espanhóis e menos ainda por portugueses, que nunca tinham posto o pé no Tour. o Alves Barbosa ainda só tinha 17 aninhos.

Bartali ganhou a 1ª etapa ao sprint num grupo de 12 escapados, à frente (!) de Briek Schotte. Era dele a 1ª camisola amarela. Mas as 5 etapas seguintes, corridas pelo norte e oeste de França em direcção aos Pirinéus não lhe correram de feição, e ao fim da 6ª etapa que terminara em Biarritz, Bartali estava a 20 minutos daquele que melhor se tinha safado neste poker de etapas, o tal Louison Bobet.  Na etapa do Aubisque que terminava em Lourdes, Bartali, Bobet e Robic terminaram juntos. Na etapa do Tourmalet, do Aspin e do Peyresourde, também terminnou toda a gente que importavem grupo - o final em Toulouse permitiu o reagrupamento. Bartali era 8º a 18 minutos pelos bónus de ter vencido as duas etapas mais algumas passagens em primeiro nas montanhas que então também davam bónus de tempo. Bobet deu sinais de fraqueza na 10ª etapa mas na 12ª que terminava em Cannes ganhou e passou a ter 21' de vantagem sobre Bartali. O 2ª na classificação era o belga Lambrechts - que corria pelos "internacionais" - e o 3º era Impanis, de 23 anos como Bobet. Bartali estava 7º a 21 minutos. A etapa 13 terminava em Briançon e continha o Izoard.


Antes houve um dia de descanso e a tentativa de assassinato do dirigente comunista Togliatti em Itália. Itália estava "em chamas". O Presidente De Gasperi telefonou a Bartali e perguntou-lhe, ao homem que dali a três dias fazia 34 anos e só fôra 8º no Giro, se achava que podia ganhar o Tour. Bartali respondeu que não sabia, mas que se sentia bem e ia tentar ganhar a etapa. O Presidente agradeceu-lhe, pois o país inteiro estava a precisar de uma boa notícia. No Procyclingstats a elevação vertical desta etapa, de 274 km, está estimada em 7000m. Hoje não há etapas assim: uma etapa no Tour com uma elevação vertical acima de 5000m será com certeza a etapa-rainha. Mais a chuva e o mau tempo, que decidiram comparecer. Vietto e Robic atacaram cedo, Bartali lentamente fez a sua corrida. Ao entrar para o Izoard já ia sózinho em primeiro. No cimo levava mais de 8' de avanço sobre... Briek Schotte! Desceu cautelosamente até Briançon e ganhou, e a Itália parou para ouvir a notícia. Bobet perdera 17', Robic 27! Com os vários bónus coleccionados pelo caminho Bartali ficara só a um minuto do francês, 11 anos mais novo, que saira da meta em maca. A etapa 14 continha o Lautaret, o Galibier e o Portet. Em Julho os ciclistas apanham neve. Bobet consegue seguir Bartali até ao início do Col de Portet onde avaria. Bartali chega a Aix-les-Bains outra vez isolado, o 2º, Stan Ockers a mais de 5 minutos, Bobet, em lágrimas, a sete, chegando Briek Schotte com o francês. Bartali era o novo camisola amarela, com oito minutos de avanço. Novo descanso. A 3ª etapa alpina, com chegada a Lausanne, seria no seu aniversário. Bartali voltou a vencer isolado, Schotte perdeu 1'40, Bobet mais de 4 minutos. Mas o descalabro ocorreu na etapa a seguir, para Mulhouse. A equipa belga destruiu os franceses, retirando o 2º lugar a Bobet e oferecendo-o a Schotte. Bartali só teve que acompanhar os belgas. A desunião francesa  permitira até que Teissere ultrapassasse Bobet na geral. Aconteceu depois um contra-relógio que os 34 anos e talvez o muito cuidado fizeram Bartali perder 11'. mas o Tour era dele. E sete etapas, sete. Em Itália falava-se de um milagre, o país unido por um feito desportivo, e que feito. Schotte, o 2ª da classificação geral, niunca mais correu o Tour com esse objectivo. Para encontrar algo parecido, lembro Julian Alaphilippe, 5º no Tour de 2019.


A 22 de Agosto Briek Schotte sagrava-se Campeão do Mundo batendo ao sprint Apo Lazarides, o 3º lugar também para um francês, Teisseire. Coppi e Bartali desistiram, Bobet e Robic não participaram. A prova desenrolara-se em Valkemburg e obrigara os ciclistas a subir o Cauberg 26 vezes, algo parecido aos campeonatos de 38. Para comparação, hoje em dia a Amstel Gold Race sobe o Cauberg duas vezes apenas.

Entretanto na Catalunha Emilio Rodriguez arrebatava a Volta aos italianos Bresci e Cecchi. Nas provas de fim de ano René Berton ganhou o GP das Nações - sem Coppi. Robic venceu o A Travers Lausanne. A 24 de Outubro a Volta a Lombardia é dominada uma vez mais por Coppi, numa fuga de 84km. Bobet reapareceu e chegou 6' depois, Schotte compareceu e chegou ao fim com 8 minutos de atraso.

O ano era de Bartali e Schotte, este aliás o 1º vencedor do Challenge Desgranges-Colombo. Coppi vencera Milano-Sanremo e a Lombardia, Magni o Giro. 

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