terça-feira, 4 de junho de 2024

Anuário Ilustrado do Ciclismo - 1947.

 



1947 começou ainda com o pelotão muito dividido.

A 19/3 acontecia uma Milão-Sanremo quase exclusivamente italiana. Bartali faz uma corrida à Coppi, ganhando isolado com mais de 4 minutos de vantagem. Coppi desistira por uma conjuntivite. O 1º não italiano foi o belga Albert Sercu e foi 9º, pai do sprinter Patrick Sercu, parceiro de Eddy Merckx na pista. Albert Sercu venceria a exclusivamente belga Het Volk 4 dias depois.

Uma semana depois a Gent-Wevelgem foi ganha por Maurice Desimpelaere, um "Flandrien" que fizera 2ª no ano anterior e que já ganhara um Paris-Roubaix durante a guerra- Como curiosidade Gino Bartali correu esta corrida e terminou 9º. A "estrela" Briek Schotte foi 11º (fôra 10º na Het Volk).

No dimngo a seguir George Claes repetia a vitória na Paris-Roubaix num sprint a 3 onde o 3º era o francês Louis Thiétard. Houve também italianos a correr, Olimpio Bizzi foi 6ª,  Briek Schotte 5º.

A 13/4 Ernst Sterckx vencia num sprint a 5 a Paris-Bruxelas, à frente de Desimpelaere (igual a Gent de 46). Nos 5 primeiros que sprintaram estavam 3 belgas, 1 francês e 1 italiano. Schotte foi 6º Menos pernas em 47?

A 20/4 a Liege-Bastogne-Liege é ganha por ainda outro "Flandrien", Richard Depoorter, num pelotão quase só de belgas, repetindo uma vitória que já tinha acontecido durante a guerra.

Uma semana depois Emiel Faignaert vencia uma Volta a Flandres quase só disputada entre belgas. Briek Schotte desistiu.

a 4/05 finalmente Briek Schotte ia conseguir a sua vitória, ao ganhar ao sprint num grupo de 15 elementos,  franceses e belgas, o Paris-Tours. Repetia a vitória do ano anterior mas desta vez ao sprint, não isolado. No mesmo dia aconteceu a Zurich Metzgete, desta vez com menos excitação, foi vencida por Charles Guyot, Jr, suiço. Coppi participou sem história, de Bartali não reza a história. Mencionar Ferdi Kubler, o 3º lugar, um suiço que daria que falar, e um espanhol de 19 anos, Miguel Poblet, que foi 14º. 


Terminada a época das clássicas e porque não houvera Paris-Nice, a Volta a Espanha foi a primeira corrida por etapas a acontecer, começando a 12 de Maio. Aconteceu sem participação portuguesa e só com 12 ciclistas estrangeiros no pelotão. Mas foi um estrangeiro, um belga, que venceu, Edward van Dijck. Berrendero já tinha 35 anos. O vencedor de 46, Langarica, não participou. E a organização ofereceu ao anónimo corredor belga dois contra-relógios dois onde ele ganhou 12 minutos ao espanhol Manuel Costa, trepador emérito, que ficou em 2º.   Nestes recuados tempos de pós-Guerra Civil as montanhas espanholas a sério deviam ser intransitáveis pelo que as dificuldades montanhosas não eram muitas e resumiam-se à região de Madrid e ao País Basco.

3 dias depois de começar a Vuelta começava na região francesa da Suiça a 1ª edição do Tour de Romandie que se tornaria com tempo outra prova por etapas de referência. Nesta 1ª edição só com 4 etapas o belga Keteleer que ganhara a Fleche Wallone o ano passado superiorizou-se a Gino Bartali e ao suiço Ferdi Kubler. Bartali foi o primeiro campeão de corridas de três semanas a dar importância a estas corridas de etapas mais curtas. Coppi não.

A 24 de Maio começava o Giro, mais um Giro sem contra-relógio. Seria a desforra de Fausto Coppi? Na 2ª etapa para Génova numa passsagem pelos Apeninos Bartali atacou com um colega de equipa e ganhou 2' 41''. A partir daí Bartali e Coppi seriam a sombra um do outro, até à 16ª etapa. Habitualmente no Giro destaca-se sempre uma etapa como a mais difícil, com várias montanhas, etc., chamada "il tappone". Este ano era a 16. Na última subida, o Pordoi, 9 km a 7% até aos 2240m de altitude, Coppi isolou-se e ganhou mais de 4 minutos até à meta. O Giro estava ganho. Coppi vencera Bartali na alta montanha.


Deixo para outros textos descrever o que foi a rivalidade Coppi-Bartali, a maior de sempre na modalidade. Eram também duas Itálias que se defrontavam através destes dois ciclistas, uma rural e demo-cristã, a outra urbana e progressista.

A "última" das clássicas antes do intervalo do verão, a Fléche Wallone, foi ganha por Sterckx que cortou a meta isolado, Desimpelaere 2º a 1'20''. Sterckx fôra o vencedor da época das clássicas ao ser o único a repetir a vitória nas corridas "que contavam".

Uma semana depois, a 12 de Junho começava a 1ª edição do Critérium do  Dauphiné Liberé, prova organizada pelo jornal do mesmo nome sediado em Grenoble, a capital da antiga região do Dauphiné/Delfinado. Quem diz Grenoble diz junto aos Alpes, portanto esta corrida metia montanha e a sua localização em Junho promoveu-a a seu tempo a corrida pré-Tour nº 1. Desta vez porém foi ganha pelo apenas interessante polaco emigrado em França Edouard Klabinski.

E a 25 de Junho começou a Volta  a França, após sete anos de intervalo. Em Itália e no Giro tinham corrido os vencedores dos três últimos Tours, Sylvére Maes, belga que vencera em 37 e 39 (terminou o Giro aos 37 anos de idade em 5º lugar) e Gino Bartali que ganhara memoravelmente o Tour de 38 para a História. Nenhum destes estaria presente à partida deste Tour. A Volta à França desde os anos 30 admitia apenas equipas nacionais, não de marca, como o Giro. E equipas nacionais havia a francesa, a belga, a italiana,  a neerlandesa e uma mista helvetico-luxemburguesa. E mais cinco equipas regionais francesas. A equipa italiana era composta de 2ªs escolhas ao não conter nem Coppi nem Bartali.

Há heróis e heróis. O ciclismo produziu muitos heróis com história todas únicas, nem sempre ganhadoras. Falemos de René Vietto, a cabeça de cartaz de França neste ano de 47, e recuemos até 1934. No Tour de 34 Vietto tinha 20 anos e era gregário de Antonin Magne, astro francês e leader da equipa. Vietto mostrou-se o melhor trepador do Tour nesse ano mas na etapa 15 teve que ceder uma roda ao seu líder e na etapa 16 toda uma bicicleta, depois de voltar a subir uma montanha que já tinha descido, para safar Magne. Vietto  só voltou a estar em grande nível no Tour de 39 mas aqui o belga Sylvere Maes bateu-o onde menos se esperava, nas montanhas. Passada a guerra e admitida uma equipa italiana só com 2ªs escolhas esperava-se que agora com 34 anos René Vietto conseguisse finalmente ganhar o "seu" Tour. 

O Tour dos anos 30, 40 e 50 ainda não era bem o Tour que depois já nos tempos de Merckx e a partir daí nos habituámos a conhecer. O sprint em pelotão compacto era uma raridade suficientemente escassa para não ser um projecto de vida para nenhum corredor ou equipa. A dureza das etapas e os muitos imponderáveis - furos, acidentes, rodas partidas, etc - acrescentavam aleatoriedade à corrida, e era muito frequente em ataques planeados ou improvisados, numa etapa entendida como pouco importante,ganhar ou perder valiosos minutos. Um ciclista tinha que ser antes do mais um excelente rolador e um estratega da estrada. Claro que havia na mesma as montanhas, sempre os Pirinéus e os Alpes e outras mais, mas as etapas não acabavam em alto, ou seja às vezes saber descer era até mais importante do que saber subir, e um bom rolador podia recuperar muito tempo.

Posto isto, na 2ª etapa que terminava em Bruxelas Vietto entra numa fuga com 2 belgas, depois consegue despachá-los e ganha 8 minutos ao pelotão principal. Avançou assim de amarelo René Vietto para os Alpes, com uma rotunda vantagem sobre a concorrência, exceptuando o italiano Aldo Ronconi que na 3ª etapa o imitara escapando. Nos Alpes a prestação de Vietto foi de menos a mais, eram 3 etapas, Vietto ganhou a 3ª, que incluia o Izoard. Mas logo a seguir, na descida para Nice numa etapa com algumas dificuldade, perdeu tempo para alguma gente. À porta dos Pirinéus Vietto tinha 3 italianos, Camellini, Pierre Brambilla e Ronconi a 2-3 minutos de distância. Os Pirinéus consistiram em 2 etapas em que Vietto manteve a liderança. Camellini perdeu tempo, Brambilla ganhou um minuto, Ronconi ficou onde estava. Na 2ª etapa um francês que dava pelo nome de Jean Robic venceu com 10' de avanço sobre os favoritos e estava agora apenas a 8' de Vietto. Aparece escrito em alguns lados que por estas alturas Vietto estaria com uma infecção grave num dedo do pé que, aliás, depois acabaria amputado. Conseguiria aguentar? Após um dia de descanso aconteceu o contra-relógio mais comprido da história do Tour, 139 km! A vitória sorriu a Raymond Impanis, uma nova estrela belga. Vietto perdeu mais de 15' para o primeiro e perdeu a amarela para o italiano Brambilla. Na classificação geral este liderava com 1' de vantagem sobre o colega de equipa Ronconi, 3' de vantagem sobre o 2ª do contra-relógio, Jean Robic, Vietto em 4º a 5 minutos. E assim chegávamos à última etapa.

Pierre Brambilla era um ciclista italiano nascido na Suiça francesa e cuja carreira se fez toda em França. Aliás, adquiriu a nacionalidade francesa em 49. Mas aqui ele era da equipa italiana, era italiano. Jean Robic era pouco conhecido embora já tivesse sido campeão francês de ciclocross. Fracturara o crânio no Paris-Roubaix em 44 e desde então usava sempre uma protecção de couro, daí ser conhecido por "tête-de-cuir". Neste Tour já ganhara três etapas. A última etapa deste Tour viria a ser a mais disputada de sempre. E Pierre Brambilla perdeu o Tour para Robic. Como aconteceu? A meio da etapa já vários corredores se tinham escapado. Robic ataca e com ele vai outro francês, Fachleitner, Brambilla tenta acompanhar mas não consegue. O pelotão decide não ajudar o italiano. Fachleitner tenta sacudir Robic das suas costas sem resultado. Aí este diz-lhe: " - Ajuda-me a ganhar o Tour, tu acabas 2º e dou-te 100000 francos". Assim foi. Da fuga descaiu Lucien Teisséire para ajudar. No final Brambilla perdera 13' para Robic e o Tour. Robic representava a equipa regional França-Oeste e pagou pessoalmente 100000 francos à equipa nacional francesa onde corria Fachleitner, como era devido. Corre a lenda que Vietto nunca perdoou a Fachleitner ter-se vendido por tão pouco, ainda por cima para dividir por dez.  Por curiosidade esta última etapa que terminou em Paris foi ganha por... Briek Schotte. Diz-se que por raiva Brambilla no dia a seguir ao fim do Tour enterrou a sua bicicleta no quintal. Mas depois foi desenterrá-la. De que ia viver?


Os Campeonatos do Mundo aconteceram cedo a 3/8 num circuito automobilístico perto de Reims, na França, portanto para roladores puros. Terminaram apenas 7 dos inscritos, a vitória cabendo ao neerlandês Theo Middelkamp, ao fim de 7 horas e meia de corrida, num ataque na última volta. Middelkamp já fora bronze em 1936 e viria a ser 2ª em 50, fazendo de alguma forma "disto" uma especialidade, sem outros resultados de monta. O 2º foi Albert Sercu. Desistiram Coppi, Kubler, van Steenbergen, etc., etc.

A 16/8 arrancava a Volta à Suiça com Bartali e Coppi na linha de partida. A corrida não teve muita história. Na primeira etapa de montanha Bartali ganhou isolado com 10' de avanço sobre o resto do pessoal.  Coppi correu apenas quanto baste. Não consigo perceber se os dois correram dentro de uma equipa nacional ou em equipas de marca. Num contra-relógio entre Lausanne e Genéve de 60 km Coppi recuperou 6'. No fim o pódio era completado pelo italiano Bresci (o 3º no Giro) e o belga Stan Ockers, um homem de que iremos falar bastante para os anos que vêem. Coopi foi 5º. Coppi não tem uma vitória numa corrida de 1 semana.




Em Setembro Coppi voltou a viajar até França para ganhar o GP des Nations contra uma data de franceses (e um italiano, Magni, que foi 3º) e também voltou à Suiça para vencer o A Travers Lausanne. Em Outubro acabou o ano limpando outra vez a Lombardia com 5' de avanço sobre Bartali (3 semanas antes no Giro del Emilia tinham sido 10' de avanço, na semana anterior no Giro del Veneto 8' de avanço... Coppi ganhava assim).



Em Setembro acontecera a Volta à Catalunha só com espanhóis e meia dúzia de suiços para compor o ramalhete, vencida por Emilio Rodriguez, um de 4 irmão ciclistas nascidos em Ponteareas, Galiza, e que frequentemente vieram correr a Volta a Portugal, julgo que contratados pelo Sangalhos, para ganhar um extra.

Balanço do ano? Coppi levara a melhor sobre Bartali no Giro, no Tour surgira do nada uma vitória do francês Robic, num pelotão internacional incompleto. A temporada de clássicas fora muito dividida mas o mais ganhador fôra Ernst Sterckx.


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