quinta-feira, 30 de maio de 2024

Anuário Ilustrado do Ciclismo - 1946.



Em 1946 as cicatrizes da guerra estavam frescas. A Alemanha estava ocupada, a Itália era um inimigo derrotado, Bélgica e França eram países massacrados pela longa ocupação alemã e a guerra da libertação. Ainda não seria o ano da "integração" europeia do ciclismo. Em vez de um pelotão existiam vários.

Cortesia (como todos os anos) das condições climáticas, o ciclismo começou só começou a mexer em Março.

Em França começaram a acontecer no sul algumas provas de um dia. Na Bélgica correu-se a 2ª Het Volk (nome de um jornal de Ghent) e o pelotão era quase exclusivamente belga, belga o obscuro vencedor. Dois dias depois, a 19 de Março, corria-se a primeira grande prova, a Milano-Sanremo. Com um percurso frenético a roçar os 300 km, a Classicíssima foi mais recentemente apelidada de Monumento para os sprinters, com a decisão da corrida a acontecer a poucos kms do fim na subida do Poggio,  se alguém se isolar ganha, a não acontecer a separação das águas ganha um sprinter. Em 1946 ainda não havia o Poggio como última dificuldade. Mas havia Fausto Coppi. E quem era Fausto Coppi? Ganhara uma Volta à Itália em 1940 com 20 anos de idade, quando era apenas um gregário recem-chegado do melhor ciclista italiano daquele tempo, Gino Bartali. Bartali atropelara um cão e caíra na 2ª etapa, ficando diminuido e assim se escreveu história. Bartali era 6 anos mais velho e a rivalidade destes dois corredores moldaria o pos-guerra do ciclismo europeu e da Itália enquanto pais. A Guerra diminuira o número de provas em Itália e o circuito internacional era nenhum. Mas Coppi conseguira em 1942 bater o record mundial da hora. Coppi era então à partida o vencedor do último Giro (1940) e o detentor do Record Mundial da Hora (que só vira a ser batido 14 anos depois). Bartali vencerá os Giros de 36 e 37 e o Touro de 38. O pelotão era sobretudo italiano mas tinha os dois melhores ciclistas do mundo. No Passo Turchino, a 147 km da meta, Coppi arrancou isolado do grupo da frente e nunca mais ninguém o viu. Chegou a Sanremo com mais de 14 minutos sobre o segundo, o francês, Lucien Teisseire. Bartali chegou no grupo que discutiu o 3º lugar, a 18 minutos. Assim corria Coppi.

Em Abril o ciclismo rumou a norte e aconteceram as clássicas hoje conhecidas pelo "pavé" - em 1946 sei lá como estariam os pisos... Respeitando uma ordem que curiosamente em 2024 também aconteceu, A Volta à Flandres foi a 14/4, o Paris-Roubaix a 21/4. E a 28/4 correu-se o Paris-Bruxelas, uma corrida que entretanto perdeu prestígio mas que em 46 ainda era cabeça de cartaz. 

A Volta a Flandres tinha um percurso bastante diferente do de hoje e o pelotão era quase só composto por belgas. Venceu um "Flandrien" de 21 anos de nome Rik van Steenbergen, deixando para trás e a completar o pódio o Francês Louis Thiétard e o favorito Briek Schotte, o "Flandrien" do momento e 5 anos mais velho. Durante a guerra Schotte vencera a Ronde em 42 mas perdera-a para Steenbergen em 44 - com 19 anos o mais jovem vencedor da Ronde de sempre. "Flandrien" era definido como um corredor raçudo, manhoso, valente, que desafiava os elementos e fazia tudo para ganhar. O que, dizem, só acontecia com quem nascera na Flandres. O nome "Flandrien" era aliás uma alcunha aplicada pelos americanos aos ciclistas de pista dos anos dez e vinte que cruzavam o Atlântico para ganhar a vida nas então populares provas de pista americanas. Diziam que so "Flandriens" comiam carne crua ao pequeno-almoço de tão brutos que eram. 

O pelotão do Paris Roubaix era um misto de franceses e belgas. Paris-Roubaix era a clássica das clássicas, famosa desde sempre, um percurso com algumas variações ao longo do tempo mas sempre a terminar no velódromo de Roubaix. Rik van Steenbergen era agora o favorito mas furou duas vezes e desistiu. Schotte não sei se participou. Ganhou num sprint a três George Claes, um "Fladrien" de 2ª linha, à frente do francês Louis Gauthier.

No domingo a seguir  corria-se a Paris-Bruxelas. Esta corrida também começara no final do séc. XIX e tinha ainda nesta fase muito cartaz. Na zona belga residiam as dificuldades, alguns "muros" para subir, e num deles Briek Schotte isolou-se para ganhar com mais de 4 minutos de avanço. Nos que terminaram a corrida não se fala de Claes nem de Rik van Steenbergen. Portanto, terminado Abril, uma vitória importante para três belgas, van Steenbergen, Claes e Schotte.

A 1 de Maio começou uma corrida por etapas que já tinha tido algumas edições e que se chamava Paris-Nice. Consistiu em 5 etapas e terminou (como em 2024) no Passeio dos Ingleses em Nice. A vitória pertenceu a um rolador italiano de nome Fermo Camellini já com 32 anos, emigrado para França quando criança e que se naturalizaria francês em 48. Mais um bom ciclista a que a 2a Gtande Guerra roubara parte da carreira. Nesta década seria o único Paris-Nice a acontecer mas fora bem concorrido (Briek Schotte terminou em 7º). A comida em França estava racionada. Teve que existir uma licença específica para que o apoio logístico funcionasse e os ciclistas tivessem o que comer.

A 5 de Maio, no mesmo dia em que se terminava o Paris Nice, aconteciam duas corridas de um dia com cartaz. Uma o Campeonato de Zurich (Zurich Metzgete ou, mal traduzido "a canificina de Zurich"), uma prova com bastante pedigree.que infelizmente terminou no início do séc. XXI. Venceu-a Bartali à frente de Fausto Coppi, num sprint entre os dois controverso - Coppi sofrera um contratempo com o calçado e Bartali aproveitou e disparou. 

No mesmo dia aconteceu a Liége-Bastogne-Liege. Hoje um dos Cinco Monumentos e destes o mais antigo, a sua importância nos anos 40 ainda não era tão consensual. A vitória sorriu a Prosper Depredomme, um bom corredor belga mas não um "Flandrien".

A 7 de Maio começava entretanto a 6ª Volta a Espanha (sim, a Vuelta tem uma história bem menos egrégia do que o Tour ou o Giro). No pelotão estavam os melhores espanhóis (e os outros), uma equipa suiça, uma equipa luxemburguesa e.. uma equipa portuguesa! Em 45 João Rebelo- ciclista do Sporting, já agora, e que nunca venceu a Volta a Portugal - surpreendera com um 6º lugar e vitória em duas etapas! Em 46 Rebelo teve uma prestação mais discreta terminando em 10º, mas houve outra vitória lusa numa etapa, desta vez por João Lourenço. A vitória sorriu a Dalmacio Langarica, a sua melhor vitória de sempre, à frente de Julio Berrendero, o melhor ciclista espanhol destes tempos e que já tinha vencido o Prémio da Montanha num Tour nos anos 30. A completar o pódio o luxemburguês Jan Lambrichs, que fora 8º no Tour de 39.


A prova mais importante de um dia em Maio foi o Paris-Tours, que nestes tempos era um grande cartaz. Briek Scotthe coleccionou mais uma vitória isolado numa prova onde só terminaram 24 dos 170 franceses e belgas que partiram (nada de estranho tendo em atenção o estado das estradas, etc.). 

Lembro que na maior parte das provas não se consegue aceder à lista de participantes e portanto não se pode presumir a não comparência de determinados nomes a determinadas provas excepto no caso de provas coincidentes na data. Entre furos, quedas e avarias mecânicas o mais habitual neste tempos para qualquert ciclista era não terminar a prova qualquer que ela fosse. Claro que os melhores caiam menos, evitavam um pouco mais furos, avarias mas mesmo assim... Mas eram tempos muito mais aleatórios do que os de hoje ou mesmo do que eg vinte anos depois.

A 15/5 começou a Volta à Bélgica (prova com início anterior ao Giro) que ainda tinha uma importância transcendente na Bélgica. O vencedor foi Albert Ramon.

Depois aconteceram duas provas de 1 dia com origem nos anos 30 mas que estavm a ganhar relevância. A 26/5 correu-se a Gent-Wevelgem. Venceu o belga Ernst Sterckx num sprint a três. Em 5º terminou Stan Ockers, uma belga de que voltaremos a falar. A 9/6 aconteceu a Fléche Wallone, que não terminava no Muro de Huy mas em Liége, vencendo um sprint a 2 ganhou o belga Desirée Keteleer. Schotte correu esta corrida e depois foi correr na Volta ao Luxemburgo (prova com origem nos anos 30) que ganhou.

E chegámos à Volta a Itália. Como em 1940 o pelotão era exclusivamente italiano. Em 1940 Coppi ganhara por, com problemas mecânicos após uma queda, Bartali ter perdido as hipóteses de vitória. Pertenciam à mesma equipa, Coppi era um jovem gregário. Bartali numa das etapas mais difíceis ajudara Coppi a continuar. Agora eram adversários. Muito adversários. Na 9ª etapa Bartali ganhou 4 minutos a um Coppi em crise. Depois nos Dolomitas em três etapas Coppi foi pouco a pouco recuperando, recuperando, mas não o bastante para não deixar de ficar em 2º a 47''. O 3º classificado ficou a mais de 15 minutos num Giro onde não houve contra-relógios. Bartali 2 Coppi 1.

Enquanto decorria o Giro em França decorria uma prova histórica e atípica, a monstruosa Bordéus-Paris, 588 km com a 2ª metade do trajecto a acontecer atrás de "Dernys", motoretas para pacing em meio-fundo na pista e na estrada. A 1ª edição fora em 1891. Em 1946 ganhou Emile Masson Jr, filho do vencedor do mesmo nome em 1923. 


Em 46 não houve Tour. No mês de Julho aconteceram duas corridas por etapas organizadas por diferentes jornais para de alguma forma "substituir" o Tour. Lembro o racionamento dos víveres vigente. A primeira, chamada Ronde de France, foi organizada pelo Ce Soir e aconteceu entre Bordeaux e Grenoble, correndo o sul de França e visitando, como se um verdadeiro Tour, os Pirinéus e os Alpes. Em vez de equipas nacionais corriam equipas de marca. Ausentes Coppi e Bartali, ausente também René Vietto, o clicista francês mais popular. Nas 5 etapas a 2ª era nos Pirinéus e nela o italiano Giulio Bresci ganhou isolado bastante tempo que se revelou suficiente para vencer a prova. Bresci fôra 6º no Giro e era um bom atleta mas não excepcional. Os italianos, a correr logo depois do Giro funcionaram como equipa, os franceses correram divididos, os italianos foram 5 no top 10, o melhor francês, Fachleitner, foi 3º- 

A segunda prova aconteceu na 2ª metade do mês e foi organizada pelo jornal l'Equipe, o sucessor do l'Auto, extinto em 44 e que organizava antes da Guerra o Tour. A prova ia ser corrida por equipas "nacionais" ou "regionais" entre Monaco e Paris. Seriam 5 etapas, a 2ª e a 3ª mergulhando nos Alpes. A equipa italiana foi parada pela armada francesa, que ficou nos 5 primeiros lugares. Apo Lazarides foi 1º. René Vietto 2º, Jean Robic 3º.  Já agora, o único belga a ultrapassar os Alpes e terminar a prova chamava-se Edward van Dijck e terminou em 15º.

Enquanto decorria a Ronde de France acontecia a Volta à Suiça. E verdadeiramente esta Volta a Suiça, uma prova iniciada nos anos 30 e que já era a volta de uma semana com mais nome, foi a corrida por etapas de 1946 com o pelotão mais internacional e portanto mais competitivo, se esquecermos a ausência de Fausto Coppi. Havia equipas (nacionais? não consegui saber) italianas, francesas, suiças, belgas e espanholas. Bartali ganhou logo a 1ª etapa e a partir daí controlou a corrida. Significativamente também ganhou o prémio da montanha. O melhos suiço, Joseph Wagner, ficou em 2º, o francês Vietto foi 4º, o espanhol Berrendero 7º.  Callens, o melhor belga, foi 5º. 

Agosto é no ciclismo o mês das quermesses, dos critérios, das corridas nas cidades e vilas para o povo admirar os seus heróis. 


A 1 de Setembro aconteceu em Zurich o 13º Campeonato do Mundo, 270 km de um circuito rugoso onde o Campeão Suiço em título, Hans Knecht, bateu po 10" o campeão do mundo em título (desde 38), o belga Marcel Kint. Kint, 32 anos, estava no ocaso de uma carreira que a Guerra também tinha truncado. Para Hans Knecht, curiosamente um ano mais velho, foi a vitória de uma vida. A medalha de bronze foi para Rik van Steenbergen que, com 22 anos incompletos, era o futuro. Coppi não terminou a prova, Bartali foi 12º, o melhor francês em 6º Guy Lapébie, o irmão mais novo do vencedor do Tour de 37, Roger Lapébie. 

A 13 de Setembro terminava a 26ª Volta à Catalunha, a prova ibérica mais antiga, vencida por Berrendero com autoridade. O vencedor da Volta a Espanha. Langarica não esteve presentte, apareceram sim alguns estrangeiros contratados avulso por equipas locais e que deram alguma luta, em 2º ficou por ex Gotfried Weilenmann,  futuro vencedor da Volta à Suiça.

A 15 de Stembro Fausto Coppi viajou até Paris para ganhar perante uma armada francesa o GP das Nações, considerado informalmente então o Campeonato do Mundo do Contra-Relógio. Claro que isto era uma prova à antiga, 140 km que foram corridos em mais de 3h e 40m a solo. Funcionava por convite e dos 28 escolhidos só 7 eram não franceses. Mas também havia provas prestigiadas bem mais pequeninas, como o contra-relógio de 4,3 km do A Travers Lausenne corrido a 22/9 e ganho por Fermo Camellini.

Fechou o ano a 27 de Outubro com a Volta à Lombardia, com um pelotão também quase só italiano. Coppi voltou a vencer isolado, desta vez depois de deixar para trás dois companheiros de fuga pouco antes da chegada a Milão. 40 segundos não eram 14 minutos mas Coppi terminava o ano como começara, a ganhar. Faltara a cereja no bolo, vencer Bartali no Giro.

O ano de 1946 fora um recomeço. O pelotão estava dividido pelos vários países, por agora. Em Itália dominavam Bartali e Coppi, na Bélgica, terra das clássicas, Schotte e van Steenbergen. Na França vários nomes apareciam como interessantes, nenhum confiantemente numa primeira linha. Mas o Campeáo do Mundo fôra suiço.


Sem comentários:

Enviar um comentário