quinta-feira, 2 de maio de 2024

A Quimioterapia.

 "Mas tu sabes que não tinhas indicação para isso!"

Vou lembrar. Aconteceu em 2004. E vou confessar. Estava a tomar banho e, ao urinar, saiu sangue. É a vida uma sucessão de divisórias, uns dum lado, os outros do outro e eu admito, urino no duche. E, como todos os doentes, só fiquei preocupado da segunda vez que aconteceu. Médico de doenças médicas, falei com o Carlos, Nefrologista e que tinha sido meu interno. Foi o Froufe que me fez a ecografia e que, engasgado, inventou um relatório. Nos casamentos e nas cirurgias o importante é saber a quem nos entregamos. Não tive dúvidas e nisto tive sorte. Já com data marcada (internamento e bloco) desloquei-me a Vidago, decorriam umas jornadas médicas, e tinha um compromisso por cumprir, a apresentação pública dum trabalho no qual participara. Era para mim importante ir, para honrar o que este trabalho representava: uma tentativa de refazer uma relação mestre-discípulo onde eu era o discípulo. A doença ditaria o fim das tentativas. Foi a minha última apresentação naquela área de interesse. Conduzi até lá e de lá voltei para casa no mesmo dia. Fiz a apresentação, partilhei a notícia com o meu mestre e amigo, despedi-me verdadeiramente dele nesse dia. Em 2004 ainda não havia auto-estrada entre Vila Real e Chaves e para chegar a Vila Real fazia-se a IP-4, inaugurada no fim de 1988 por Aníbal Cavaco Silva. Perto de Vila Pouca de Aguiar, acho que antes, a Nacional 2 tem uma recta que fica num vale alto, muros a delinear velhos terrenos de cultivo. Ao voltar parei o carro uns dez minutos. Por ser ao voltar será "depois" de Vila Pouca.  Disse dez minutos mas o que eu fiz ali foi parar um  pouco o tempo, o meu tempo. Havia uma ordem, uma harmonia naqueles muros, no esparso verde que em Trás-os Montes não inunda tudo como no Minho. O verde sabia o seu lugar. Tudo ali sabia o seu lugar. E eu? Tirei um par de fotografias e só parei em Matosinhos onde então vivia. 

Depois da cirurgia foi-me administrada quimioterapia intra-vesical, primeiro semanal, depois mensal. A decisão foi de quem me operou. Nem pensei em perguntar o racional para o meu tratamento. Como disse, é uma sorte não ter dúvidas quando estamos em jogo. Confiar é ouro puro, na saúde e na doença. 

Mas alguém com a minha profissão e a trabalhar no meu hospital e, portanto, com acesso ao meu processo clínico perguntou-me um dia (parecia interessada): "Como estás?" E logo a seguir disse: "Mas tu sabes que não tinhas indicação para quimioterapia!"

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