Vou contar o meu 25 de Abril. Já não lembro se houve aulas ou não. Ou melhor, não lembro se a escola esteve aberta a 25 ou não, aulas não houve. E assim foi durante uns dias, ficávamos na sala com o Soares a tomar conta, os professores reunidos no primeiro andar a tentar entender se a revolução viera para ficar. Num desses dias, mais por aborrecimento que por dedicação revolucionária, começámos todos a cantar a "Grândola vila morena" a plenos pulmões, a letra retirada e policopiada à mão por mim. O professor Brandão, assim se chamava o meu professor, desceu à sala de aula e deu uma reguada a todos, um por um. O nome Brandão vai ser aqui mencionado várias vezes, para memória futura. Quando aconteceu o 25 de Abril eu tinha 10 anos e estava em vias de completar a quarta classe.
O professor Brandão possuia, para além de uma régua, uma comprida cana, habitualmente trazida de encomenda por algum aluno do Casal ou doutra zona perto do rio onde houvesse canas. Habitualmente a cana era estreada no aluno que a trouxera para aferiir a sua resistência. Durante a minha escola primária nela (com ele) nunca aprendi nada. Levava já tudo aprendido e ensinado pela minha mãe. Chamava-se a escola "do Quartel", por ter servido de abrigo a um qualquer regimento, julgo que na primeira República. Sabendo bem a matéria consegui escapar à violência institucionalizada pelo professor Brandão na sala de aula. Mas não era só a violência que era má. Como exemplo, lembro bem de na primeira classe, já por meados de Dezembro, ele ter dividido a classe mais ou menos a meio, de um lado os meninos que iriam passar de classe, do outro lado os que não. Em Dezembro. Só duas crianças mudaram de lado durante todo o ano lectivo, mediante prebenda da mãe ostensivamente acontecida à porta da sala de aula. Era uma escola só de rapazes. O Mário era um miúdo que todos os dias vinha a pé do Carregal - mais de 3 km de distância - para ter aulas. Isso não o impediu de chumbar logo na primeira classe. Era pequenino, tinha uma corcova, e imitava uma cabra na perfeição. Na segunda classe o Brandão mandou o Rocha para uma casa de correcção mas não sem antes lhe dor uma coça de cinto no fundo da sala de aula. Lembro-me do Rocha a andar à porrada com outro miúdo e levar um murro nas costas e soar surpreendentemente a ôco. Outra: o professor Brandão tinha uma forma engraçada de ensinar os sólidos aos alunos: o Soares Couto falhava sempre, e sempre que falhava levava com o respectivo sólido de madeira na cabeça. Um e outro e mais outro.
E acontecu o 25 de Abril. Visitei o professor Brandão no ano lectivo seguinte por insistência da minha mãe. Entrei numa sala de aula onde reinava uma estranha anarquia. Disse-me o Brandão: "Estás a ver, Manuel Guilherme, não lhes posso bater!".
O mundo tinha efectivamente mudado, mudado de uma forma quase completa e absoluta, como se nós, vivendo num daqueles globos de vidro, nos tivessem sacudido e agora estivesse tudo de pernas para o ar, ou a neve habitual nesses globos se tivesse transformado numa praia de areia a escaldar. O 1° Ciclo só começou mesmo com aulas a Janeiro de 75. Até lá os alunos tiveram reuniões e reuniões para comentar o mundo novo, discutir o sol e a lua, contar anedotas. Aparámos a relva, limpámos divisões, pintámos paredes. E niniguém, mesmo ninguém nos batia. Eu pude espreitar as cuecas da Rosa de Fátima numa aula de Português, perguntar a uma professora de olhos verdes em quem ia votar no 25 de Abril de 75: "Talvez no MES!", subir e descer a correr as escadas que nos levavam à direcção da escola que ficava no primeiro andar, como no Quartel, tudo igual mas tudo tão diferente.
Depois do 25 de Abril houve um ano e meio de confusão. Nós em Ovar sabíamos quando havia confusão extra: eram mandados para o ar os aviões de Maceda ou os de São Jacinto. O meu herói desde cedo começou a ser o Francisco Sá Caneiro, pequenino como eu era, corajoso como eu não era.
O professor Brandão chegou a diector da escola do Quartel. Se calhar até lá tem numa parede uma placa comemorativa da sua reforma, o filho-da-puta. Mas não interessa: graças ao 25 de Abril ele nunca mais bateu em nenhuma criança.
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