Agora chegámos aos anos de Herberto Helder. "Sabemos todos" que Herberto Helder foi o segundo "monstro" que a poesia portuguesa produziu no século XX. Esta unanimidade levou a extremos de mimetismo - houve uma fase em que todos escreviam "à Herberto Helder" - e à famosa carta de amor de Joaquim Manuel Magalhães onde este rejeitava - por amor - o mimetismo atrás descrito. Foi pouco antes de chegarmos ao famoso "regresso ao real". Mas estes anos produziram muito mais, por exemplo, Ruy Belo. Quem sobrevive ileso a conhecer Ruy Belo? E Gabriela Llansol. E mais. Estes anos sessenta entretiveram-se com uma coisa chamada Poesia Experimental. Esta brincadeira fez-nos perder algum tempo... Herberto Helder foi um dos pais da brincadeira, é certo. Vamos a isto.
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HERBERTO HELDER (1930-2015)
Nascido madeirense e morto eremita em Cascais, a sua poesia, libertária e com um pé de saída no surrealismo, é declamativa e xamânica e tudo o mais. O seu sopro vital obscureceu durante uns anos por cá o facto de que há outras formas de fazer a dita e cuja. A fantástica canção dos primeiros livros secava todas as alternativas. Vivíamos deslumbrados, havia um Sol. Depois livros vários, os textos de "Passos Em Volta", as famosas traduções do "Bebedor Nocturno" ou das "Magias" sedimentaram o mito, bem como o não dar entrevistas, recusar prémios, as escassas fotografias. Os últimos anos - porque a Assírio & Alvim ficou diferente? - mudaram um pouco a táctica. Um longo silêncio poético foi interrompido para gáudio das massas. Houve um acelerar do refazer do texto das poesias completas, o tal "Poema Contínuo". E a campanha publicitária à volta do "A Morte Sem Mestre"... Um ano ou dois e vai acontecer um poemário, tenho a certeza. Mas, feitas as contas, que Poesia! Logo abaixo um poema perfeito.
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EM MARTE APARECE A TUA CABEÇA -
Em marte aparece a tua cabeça -
eu queria dizer. No lugar onde
desapareceu a janela,
a cabeça de vaca de fogo, aparece
a cabeça. Onde era a cortina fria,
de pássaro escutando.
Em marte, como a roupa bate no vento
e na terra as ferraduras batem
no meu cabelo.
Como o fogo dentro da pedra turquesa,
em marte aparece a tua
cabeça de vaca. Por detrás da fria cortina -
eu queria dizer.
Agora sei que devo saber, só.
As letras da chuva loucas nas costas -
escrevendo, escrevendo.
Só, eu sei a dormir. Com um ramo
de peixes e um violino
no meio dos ll, dos mm, dos ii
da chuva.
Com meu ramo de violinos, só eu
no meio da chuva. Agora
sei que devo escrever os meus peixes.
A tua cabeça
aparece na janela de marte em fogo.
O fogo que anda em ti que andas como uma
pedra turquesa,
ao lado da fria cortina. Olhando, escutando
como um pássaro, onde chove.
Como só agora sei com as letras.
A chuva abre-te, o dia bate, a roupa
tropeça com as ferraduras
no meu cabelo. E só agora fazes
teu gesto com chuva, no meio das letras.
Abre-te, oh abre-te. Na cortina,
agora, a tua cabeça ao lado dos peixes -
escutando, escrevendo,
como só agora eu sei: o meu ramo
de violinos.
Escuta: o copo, a catedral, o livro,
o candeeiro.
Eu agora sei escrevendo de lado o fogo
da cabeça. Escuta: descasco
maçãs, como maçãs, as maçãs
aparecem na sua cor ao meio - e juntam-se
entre si, e vão sonhar. Escuta:
chovendo, escutando, escrevendo.
A roupa bate no vento.
Escuta como só agora bate a cor
nas maçãs. A tua cabeça, a cortina fria.
Dou-te as letras dos peixes, escutando -
só agora, só agora.
Escutando em ti, abrindo
com a tua chave todas as tuas maçãs
na sua cor. Só agora
escrevendo eu sei.
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EM MARTE APARECE A TUA CABEÇA -
Em marte aparece a tua cabeça -
eu queria dizer. No lugar onde
desapareceu a janela,
a cabeça de vaca de fogo, aparece
a cabeça. Onde era a cortina fria,
de pássaro escutando.
Em marte, como a roupa bate no vento
e na terra as ferraduras batem
no meu cabelo.
Como o fogo dentro da pedra turquesa,
em marte aparece a tua
cabeça de vaca. Por detrás da fria cortina -
eu queria dizer.
Agora sei que devo saber, só.
As letras da chuva loucas nas costas -
escrevendo, escrevendo.
Só, eu sei a dormir. Com um ramo
de peixes e um violino
no meio dos ll, dos mm, dos ii
da chuva.
Com meu ramo de violinos, só eu
no meio da chuva. Agora
sei que devo escrever os meus peixes.
A tua cabeça
aparece na janela de marte em fogo.
O fogo que anda em ti que andas como uma
pedra turquesa,
ao lado da fria cortina. Olhando, escutando
como um pássaro, onde chove.
Como só agora sei com as letras.
A chuva abre-te, o dia bate, a roupa
tropeça com as ferraduras
no meu cabelo. E só agora fazes
teu gesto com chuva, no meio das letras.
Abre-te, oh abre-te. Na cortina,
agora, a tua cabeça ao lado dos peixes -
escutando, escrevendo,
como só agora eu sei: o meu ramo
de violinos.
Escuta: o copo, a catedral, o livro,
o candeeiro.
Eu agora sei escrevendo de lado o fogo
da cabeça. Escuta: descasco
maçãs, como maçãs, as maçãs
aparecem na sua cor ao meio - e juntam-se
entre si, e vão sonhar. Escuta:
chovendo, escutando, escrevendo.
A roupa bate no vento.
Escuta como só agora bate a cor
nas maçãs. A tua cabeça, a cortina fria.
Dou-te as letras dos peixes, escutando -
só agora, só agora.
Escutando em ti, abrindo
com a tua chave todas as tuas maçãs
na sua cor. Só agora
escrevendo eu sei.
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MARIA ALBERTA MENERES (1930-)
Foi casada com E. M. Melo e Castro e organizou com ele a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Passou um pouco ao lado das polémicas experimentais dos anos sessenta embora a sua poesia fosse do seu tempo e de muita valia. Tornou-se muito mais conhecida pelo seu papel em criar uma literatura infanto-juvenil e sobretudo uma poesia infanto-juvenil capaz. É a mãe da Geninha Melo e Castro, é verdade.
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Hoje me chamo estrela
ou me chamam navio
ou rota de fadiga.
Hoje me chamo névoa
ou mãe de cinco filhos
que o pensamento abriga.
Ou lúcida sirene
do violento incêndio
que para nós destrói.
Ou vidro revoltado
na funda transparência
que hoje em meu nome dói.
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Hoje me chamo estrela
ou me chamam navio
ou rota de fadiga.
Hoje me chamo névoa
ou mãe de cinco filhos
que o pensamento abriga.
Ou lúcida sirene
do violento incêndio
que para nós destrói.
Ou vidro revoltado
na funda transparência
que hoje em meu nome dói.
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ANTÓNIO JOSÉ FORTE (1931-1988)
Um surrealista tardio, a sua colectânea de poemas "Uma Faca nos Dentes" saiu em 83 prefaciada por Herberto Helder. Durante mais de vinte anos foi o encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, o que faz dele um amigo meu.
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POEMA
Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada.
alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar.
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MARIA GABRIELA LLANSOL (1931-2008)
Se o que escreveu Maria Gabriela Llansol não é poesia, então o que é poesia? Exilada na Bélgica de 65 a 84 (para fugir, o marido, à tropa), participou lá na criação dum espaço educativo alternativo, a Escola de Namur, que ganhou foros de lenda. Enquanto isso escrevia. Escrevia algo que é texto. Onde as palavras fluem sobre a vida, o mundo, o de hoje, o antigo, onde a diferença está ou esteve. O texto cria um mundo novo, diferente, uma alternativa a este porque alternativas são as vidas que os rebeldes, os diferentes buscam, buscaram. Atenção, diferente pode ser uma pedra. Dizem que Llansol, o duplo "ll" por uma ascendência catalã, pode ser viciante, portanto atenção. Mas não é assim a poesia Maior?
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106
Basta fechar os olhos _____________ perdê-los
De vista _________________________, para que as cores,
Libertas das formas _____________________________ corram,
Inquietas pelo cérebro _________________________ em busca deles
"Onde parais? Que não nos vedes."
Ou seja, onde se perde a frequência não absorvida
Pela forma.
Mas o olhar, servindo-se do poema de Rilke
(Que para essa ocasião o escreveu), velando-se
Com as pestanas, dir-lhe-á que anda por aí e não
Perdido, que pode estar calma, que anda por aí,
Que se apagou por falta de chama momentânea,
Que anda por aí e não se sobressalte com a ventana
Fechada, que nenhuma frequência se perde
"Ó meu amor, eu estou por aí."
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JOSÉ BENTO (1932-)
Da próxima vez que passar por Pardilhó vê-la-ei com novos olhos porque foi ali que nasceu José Bento. Discreto e compreensivo tradutor de TODA a grande poesia espanhola, tem-se esquecido quase sistematicamente de publicar a sua própria poesia. A colectânea "Silabário" vale ouro.
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41
Não peças a quem deste: evitarás
mais que a rajada rija da recusa:
o asco pelo embuste inverosímil
e o responso rançoso do teu mérito,
invocados para diluir a negativa.
O que não te foi dito esquece.
Melhor que contestá-los, aprender
a indiferença, para ninguém gratuita:
o alheio desprezo, mais benévolo
que o total que te concedas, te liberte.
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41
Não peças a quem deste: evitarás
mais que a rajada rija da recusa:
o asco pelo embuste inverosímil
e o responso rançoso do teu mérito,
invocados para diluir a negativa.
O que não te foi dito esquece.
Melhor que contestá-los, aprender
a indiferença, para ninguém gratuita:
o alheio desprezo, mais benévolo
que o total que te concedas, te liberte.
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E. M. MELO E CASTRO (1932-)
Ao contrário de José Sócrates este engenheiro nasceu mesmo na Covilhã. O seu papel nos tempos na Poesia Experimental nos anos sessenta grangeou-lhe inimigos qb e que felizmente não tinham porte de arma. Admito a irregularidade da sua prestação e o vazio de muitas das experiências. E que um livro se chame "Cara lh amas" é imperdoável, mesmo se publicado em 1975. Serralves dedicou uma exposição retrospectiva à sua obra poétca, gráfica, e filmada no ano de 2006. Eu confesso gostar dos seus primeiros livros onde, por ex., reside o manifesto abaixo.
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REFUTAÇÃO PACÍFICA DA BELEZA
1. esquema
Na História
símbolos de civilização
na memória
miséria e desespero
não há poesia
no ideal.
2. panorama
No alto das casas da cidade
vejo os telhados divididos em dois
luz - sem luz
das casas conhecidas demais
No alto dos telhados da cidade
olhos os quartos fechados
e vejo os quartos abertos
divididos em dois
Por dentro dos dois quartos que habito
vejo distintamente
todos os homens divididos em dois
fazendo equilíbrios forçados
Vejo por dentro de toda a escuridão
a nossa vida toda retalhada
em dois enormes pedaços retalhados
3. factos
Desde que há mais do que um homem
o Belo já não chega.
As mãos são supérfluas
desde que há mais do que um homem no mundo.
Foi por isso que Abel matou Caim matou Abel
e o fogo invisível queimou o espírito novo.
Se me olhas nos olhos
não me olhas - devoras-me, meu irmão.
Se penso em ti, destruo-te.
Para que a pura beleza em movimento possa reinar
aprendemos as guerras.
Mas na paz a beleza não chega.
É necessário inventar outra forma de destruição.
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RUI KNOPFLI (1932-1997)
A história aconteceu e não há volta atrás. A presença portuguesa em Moçambique pode ser redimida pela criação da poesia de Rui Knopfli, nascido em Inhambane. Delegado de Informação Médica vinte anos, até 74, muito teríamos para conversar. Desistiu da sua terra em 75 mas com pena. O livro que escreveu sobre e as fotografias que tirou à Ilha de Moçambique é um dos meus livros de cabeceira.
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SMILE
O teu sorriso punha uma breve nota
cálida no cenho franzido do céu.
O teu sorriso arriscava um tímido fulgor
na máscara de gelo, errava no perfil rígido
da cidade vestida de rigoroso escuro,
escorria mordiscante pela curva
gótica dos monumentos e saltitava,
ave transida de frio,
na relva húmida de Regent Park.
Pairava acrobático em redor da coluna
sob a mirada sorrateira de Lord Nelson
e partia célere no primeiro subway
até Tower Bridge, para logo surgir
junto à pedra negra e solene da Abadia.
Distraída um instante do seu ar very british
a cidade ameaçava sorrir para o teu sorriso,
alegre como o brilho plástico das minissaias,
desenvolto como as cabeleiras soltas
ao vento de King's Road.
O teu sorriso, todo dentes e ternura.
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RUY BELO (1933-1978)
Se eu fosse um bom poeta gostaria de escrever como o Ruy Belo. Porque nas centenas de poemas que dele já li nunca discordámos sequer num acento. Fui aqui há uns anos à praia da Consolação, onde Ruy Belo passava férias, e apresentei-a à minha filha. Ruy Belo escreveu sempre para além desta terra. Aceitava-a, amava-a até, mas via sempre algo mais. Quando percebeu que a explicação para o que via não era divina ficou triste. E essa tristeza atravessou a sua poesia até ao fim. Porque Ruy Belo morreu nunca estamos completamente vivos. E isto pode explicar um pouco o quanto gosto desta poesia. Assírio & Alvim, cuidado com o que fazes com este Poeta!
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POEMA PARA A CATARINA
Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que só longe e em ti houve
Tinha estado na morte e não pudera
aguentar tamanha solidão
mas depois tive a companhia do nevão
e tu hás-de vir filha com a primavera
E o deslumbrante resplendor da alegria
tua fidelidade eterna à vida
já não permitirão tua partida
quando raiar fatal o novo dia
As barcas carregadas com as rosas
virão perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longínquos avós
em lagoas profundas perigosas
Não me afecta o mínimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado
Naquelas madrugadas primitivas
eu segregava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dias tu ias de mãos vivas
O costume da minha solidão
é ver pela janela as oliveiras
que de todas as árvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coração
Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou
Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas ágil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante região da uva
Minha paixão viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada à alegria
na surda região alheia aos gritos
Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade
O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia
Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transumantes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes já distantes
A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada
Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido
Volta com os primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro
O passado é mentira digo eu
sensível ao esplendor do meio-dia
e sob a árvore plena da alegria
o mínimo cuidado esmoreceu
Ao grande peso de tanto passado
com a insónia da dúvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado
############
JOÃO PEDRO GRABATO DIAS (1933-1994)
O nome literário do pintor António Quadros, ou outro dos poetas que Moçambique nos ofereceu. Grabato Dias viveu lá 20 anos, até 84, e despediu-se do país mais tarde do que Knopfli. Foi o não confesso autor do "mito" Mutimati Barnabé João, guerrilheiro morto que teria escrito uns poemas para a revolução moçambicana... depois escreveu as "Quybyrycas", sátira dos Lusíadas que consegue ser ainda mais extensa do que o original. Etc., etc., etc. O melhor que consegui sobre este homem é ouvir vezes sem conta "Eu, O Povo" do Zeca Afonso e o extenso artigo do António Cabrita sobre. Tenho a sorte de possuir o livro de Mutimati. Também foi dedicado apicultor e quinze mil outras coisas. A sua escrita fica um pouco abafada pelo extensão léxica mas está muito para além do exercício de ginásio.
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MÁRTIRMONIAL,
MATRIARMORIAL,
MATRIHORMONAL
Cavalheiro distinto, e modesto,
com alguma cultura, em pousio,
de boagnífica família e lavradio
passável, lutador ambidextro
com ursos superiores, bastante lesto
nas também duas pernas, de assobio
em coisas musicais e sem fastio
ou outro desarranjo; ainda intesto
por falta de vagares ou vícios; vivo
em jogos de sala e outro desporto
procura jovem fêmea com lascivo
andar, dotada quanto a dote e a dotes
glúteas nalgas de alevantar um morto
e, se possível, algo que decote.
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ANTÓNIO OSÓRIO (1933-)
Com mãe italiana, a sua poesia é, como muita da poesia italiana do século XX, deliberadamente menor, escassa, de poema curto e palavra escolhida. Lembro-me de uma caricatura escrita pelo Miguel Esteves Cardoso - brincadeira de amigo... - onde o MEC transformava o borda-de-água em poemas do António Osório. Publicou só nos setenta e com lógica - a sua poesia, embora não igual, vai paralela ao movimento do "regresso ao real". Foi bastonário da Ordem dos Advogados. Devo-lhe inúmeros poemas que fiz meus. E temos uma amiga em comum.
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UM SENTIDO
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodirse.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
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CRISTOVAM PAVIA (1933-68)
O último dos nossos poetas-mortos-jovens a ser redescoberto, era filho de um presencista. Leio a sua história, breve, onde o sofrimento mental e a busca de um ideal - cristão, outro - inatingível desempenharam um papel importante. Fez psicoterapia em Heidelberg e trabalhou nas obras, admirou raparigas loiras... por fim, decidiu parar.
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Se fizer um pequeno esforço levanto-me e caminho no ar
Porque o meu Deus dá-me forças já não minhas.
Se fizer mais um pequeno esforço tudo se transformará em verdadeiro prazer
E em cada gota de suor, em cada brilho frio nas gotas de suor
Rodará um mundo fresco como um leque que se abre.
Se fizer um último esforço será a vertigem, talvez a deliciosa vertigem.
E depois não interessa o que virá.
Creio neste amor angustiado.
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MANUEL DE CASTRO (1934-1971)
E chega mais um surrealista. Antologiado por Herberto Helder, despediu-se cedo da vida por "autodestruição premeditada" (cf Herberto Helder) ou "cinco anos de dolorosa doença" (Wikipédia).
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A ERC JOSAMU JOVE
Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum.
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros, oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente -
asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém
Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins
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PEDRO TAMEN (1934-)
Descente poético em linha recta de Jorge de Sena, Pedro Tamen foi depurando a sua escrita como se pode coligir na sua colecção "Retábulo de Matérias". Praticante de formas clássicas como o soneto e portanto também um poeta que olha muito para Camões. Foi um discreto director da Gulbenkian bem antes desta começar a encolher.
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3
Sentado no curto escabelo que me deram
espreito aqui da cave pela janela alta
as pessoas que passam.
Passam passam deixo de vê-las
enquanto ergo e baixo a ferramenta.
Continuo sentado no escabelo que me deram
e no escuro desta cave estou acompanhado.
Sim, acompanhado
não por quem passa
mas por quem não passa.
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