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ANTÓNIO GREGÓRIO (1970-)
Parece que só escreveu um livro de poemas, e ainda por cima publicou-o na Quasi, mas o poema abaixo lembrou-me tempos antigos: uma vez eu quase marquei um golo, não fosse o Manel João.
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A TRAIÇÃO DO CELSO
Jogava comigo na defesa reduto
dos inábeis dos impopulares (abaixo
de nós só o guarda-redes); o Celso e eu
vendo a glória avançada e esperando os embates
entre o medo de sempre e o desejo da acção
heróica redentora. Mas como no amor
cabia-nos menos defender antes ser
repositório de culpas pelos falhanços
colectivos e como um amante traiu-me
quando atrás de não sei que instinto (parecia
doido) subiu à baliza dos outros e
marcou o melhor golo da terceira classe.
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JORGE MELÍCIAS (1970-)
Este não praticante da licenciatura em História trabalha ou trabalhou para a Cosmorama, que é a Editora da Católica. Portanto, logicamente, a sua poesia segue um caminho cabalístico e anti-crístico. Pudera!
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O animal recolhe-se na lâmina.
Não há resistência ou retracção.
Ele é agora a extremidade viva
de uma metalurgia brutal,
a mecânica vocalização do horror.
Sobre a coalescência do sangue
a blasfémia e a sua têmpera.
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NUNO MOURA (1970-)
É um doudo. Por isso tem uma editora chamada "Douda Correria". Iconoclasta por feitio e opção, poeta anárquico da palavra, assisti a uma declamação sua na Flanêur aqui no Porto e fiquei cliente. Eu não sei nadar. Ele já foi professor da natação.
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Uma mulher vai na parte mais bonita da rua.
O seu gelado passa de boca em boca no passeio contrário
mas pouco dos galos a combusta.
Apetece-lhe chegar a casa e pôr a cabeça sobre os pêlos -
do peito.
Ficava-lhe bem uma barba postiça lá para baixo
mas há muito tempo que não o faz.
Um cigarro antes de dormir.
Um beijo para acordar o charlie brown.
A camisola de ginástica perto do saco perdido de frio.
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ALEXANDRE SARRAZOLA (1970-)
Foi para Lisboa aos 5 anos e é arqueólogo. A sua poesia é viajante e descritiva e é como se o Gil de Carvalho tivesse desatado a contar coisas. Numa crítica escrita na revista Caliban utilizam "sobre" a palavra "zeugma", que eu não sei o que é.
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HOTEL MADRID
à beira da estrada para Meknès, por detrás do mato, escondida assistias
(demasiado perto da sua Toyota Hilux) ao buliçoso trabalho das três prostitutas;
na sombra fresca do quarto, de manhã ou depois da sesta, as quatro trocavam
djellabas coloridas e babouches bordadas com lantejoulas, para a Primavera
esta noite descemos, à luz de um petromax, os degraus que levam,
entre águas, gatos e urina, à estrada do Hotel Madrid e um homem
(que se enamorou de teus cabelos de prata) avisa-te de mão estendida
dos «borrachos della calle de arriba», «voleurs» que não são dignos
de que pises em seu quelho de lixo e memórias obliteradas
pelo vidro quebrado das garrafas proibidas
a floresta de faróis volta a enovelar-se de palavras
e da poeira do tempo - o homem desaparece na escuridão da mesma rua
deitamo-nos na açoteia e falas de Batuta, Polo, Loti e Wilde, o morrão incandescente
na tua mala a cassete com as suras; as palavras (insististe) ditas por um ancient
para ouvirmos amanhã no leitor do carro; a lua ocre liquesce e não adormecemos
de volta da nossa bagagem as crianças e o riso das mulheres sob a árvore do jasmim
«bonne route», sempre um anjo da guarda e gatos a fugir sobre os telhados do hotel
depois do terceiro sebsi, o homem levanta-se da soleira e debruça-se na tua janela
óculos de massa, caspa nas sobrancelhas, fato branco e uma camisa de polyester
com suspensórios escoceses; os sapos sujos de lama e meias de garridas cores;
enxota com as unhas encardidas um mendigo e aperta-te a mão do lado do sol
os olhos e a voz: não te focavam e escondiam-se na luz que entretanto já apaguei;
tu bem sabes: «é que me arrancaram pela nuca a língua que usava para escrever
aqueles outros poemas»
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LUÍS SERRA (1970-)
Homem de pequenos poemas coligidos em plaquettes, antologiou na Companhia das Ilhas, e que é bom. O poema que mais aparece na net termina assim "um motor imóvel a dar um baile / uma vontade de foder". Na realidade citei metade do poema.
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DESVENTURA
no fim da rua um naufrágio
a noite cerrada de vinganças
o cinema sem índios
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DANIEL FARIA (1971-1999)
Não vai ser fácil o caminho desta poesia, uns vão adorá-la em altar, outros esquecê-la. Mas o Daniel Faria foi o poeta mais importante a nascer-nos nos anos setenta. Morreu na minha segunda casa, e não me curo disso.
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Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser-lhe a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera. Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.
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RUI ALMEIDA (1972-)
Nasceu em Lisboa e sorri para as fotografias. Ganhou o primeiro prémio Manuel Alegre, o que não tem lógica. Poesia contida, meditabunda. Gosto do abaixo.
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DEZ PECADINHOS MORTAIS AO ACASO
O medo de ouvir falar do vento;
O avanço das armas escondidas;
Os tesouros perdidos frontalmente;
Sinceridades sem razão de ser;
A violência de conter o murro;
Segredos que se dizem sem ouvidos;
Os silêncios que mascaram as sombras;
O vil excesso de um pão sem fome;
As palavras escritas com maiúsculas.
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RUI COSTA (1972-2002)
"Tem uma definição de poesia?" "Nem as sardinhas se definem. Sobretudo, não pertenço a nenhuma “escola”. Seja mais metafórica ou mais “da experiência”, o que deve importar é a qualidade (que também não se define). Mas digo ainda: gostava que houvesse menos vaidade entre os poetas. Mais capacidade de gostar das coisas que os outros fazem, ainda que “diferentes”. Os preconceitos tendem a vir de pessoas incapazes de vibrar fora do bafo da sua própria respiração." O seu corpo apareceu morto e dado à costa na Foz do Douro, metáfora para o que são as nossas vidas, julgo que o autor do gesto teria preferido entrar pelo mar dentro. A sua antologia "Mike Tyson para principiantes" está a ser um justo best-seller.
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TEORIA LÍRICA
(policial)
1. A idade certa para casar é ele com 34 anos e ela com 27. Sobretudo num comboio como este, que não pára em nenhuma estação ou apeadeiro.
2. De repente um enorme campo de arroz, um homem e uma mulher. O homem segura a mulher como um utensílio agrícola. Uma pequena pá, talvez, ou um objecto mais suave que não sofre com a força da mão.
3. Admitindo que o comboio não avança em piloto automático, um terceiro elemento existe: o condutor. É ele quem sai agora da sua cabine com uma caneta na mão.
4. No campo de arroz, a mulher encomenda uma estação favorável abrindo muito as pernas. Desta vez não sente prazer, não quer, acontece-lhe apenas uma vez por ano. É uma mulher feliz.
5. O comboio prossegue, sozinho, sobre a imensa recta do país plano.
O condutor do combio vê a mulher ao fundo do corredor e escreve: vejo a mulher ao fundo do corredor e escrevo; não sei se a amo, é a primeira mulher que vejo em toda a minha vida.
6. A imagem seguinte é a de uma cabeça deitada na mesa, sobre os braços, o cabelo castanho tapando-lhe os olhos.
7. Nessa noite o condutor do combio vê: o campo alagado, visões brancas e algo baças como figuras projectadas através de uma folha transparente.
8. Nenhum alerta veio ou sinal de inquérito. O comboio pára ali; as quatro mãos morenas interrompem o trabalho e olham.
9. Na janela do comboio os dois, apenas os dois.
10. Nenhum crime, nenhuma dor, nenhuma lembrança. Que melhor podes ter para começar.
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MANUEL DE FREITAS (1972-)
Este ribatejano que gosta de polemizar já escreveu no Expresso e já ganho o prémio PEN clube de poesia - que não recusou. É sua a editora Averno e antologiou os "Poetas Sem Qualidades" e "A Perspectiva da Morte. 20 (+2) Poetas Portugueses do Sec. XX", sendo que nesta não foge nem um milímetro do cânone. Pergunto-me como seria a sua poesia com menos cerveja e com menos fuminhos. Lamenta-se, divide. E a sua poesia aparece na "Ler".
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GENEALOGIA
Para a Céu
Tinha medo de morrer, a minha avó.
A minha mãe não, nunca teve,
e o meu pai tem desde que me lembro
um talento inato para contornar a questão.
Era um medo simples e espontâneo,
o da minha avó. Receava
não acabar o bordado infinito
e o alheamento de tudo,
com a vaga excepção do afecto.
Queria apenas encontrar a manhã,
o pequeno missal junto à cabeceira
- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».
Arrependi-me, tantos anos depois,
de julgar que a vida se podia - querendo
ou não querendo - deitar fora.
Ainda aqui estou, vivo e descontente.
Não esqueço a antiga criada (foi mais
do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me
num sorriso se eu, no fundo, desejava
a morte que a avó não queria desejar.
E poluo essas memórias, talvez
por saber que não voltarei a atravessar
com ela a rua onde mais vezes caiu,
onde era senhora distante de um mundo
acabado, vagamente aristocrático
e, por sorte, ainda sem muito trânsito.
Ninguém, mesmo que queira,
quer morrer. E, do mais, ficam-nos
vislumbres, pormenores, anotações
cujo sentido descobrimos demasiado tarde.
Não sei se a cultura ajuda. Preferia
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra de pinheiros.
Era isso.
Para a Céu
Tinha medo de morrer, a minha avó.
A minha mãe não, nunca teve,
e o meu pai tem desde que me lembro
um talento inato para contornar a questão.
Era um medo simples e espontâneo,
o da minha avó. Receava
não acabar o bordado infinito
e o alheamento de tudo,
com a vaga excepção do afecto.
Queria apenas encontrar a manhã,
o pequeno missal junto à cabeceira
- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».
Arrependi-me, tantos anos depois,
de julgar que a vida se podia - querendo
ou não querendo - deitar fora.
Ainda aqui estou, vivo e descontente.
Não esqueço a antiga criada (foi mais
do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me
num sorriso se eu, no fundo, desejava
a morte que a avó não queria desejar.
E poluo essas memórias, talvez
por saber que não voltarei a atravessar
com ela a rua onde mais vezes caiu,
onde era senhora distante de um mundo
acabado, vagamente aristocrático
e, por sorte, ainda sem muito trânsito.
Ninguém, mesmo que queira,
quer morrer. E, do mais, ficam-nos
vislumbres, pormenores, anotações
cujo sentido descobrimos demasiado tarde.
Não sei se a cultura ajuda. Preferia
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra de pinheiros.
Era isso.
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PEDRO MEXIA (1972-)
Podia inventar-se um livro-espelho daquele que foi criado à volta da Adília Lopes, desta vez sobre o Pedro Mexia: "quem quer casar com o poeta?" Todos conhecem o Pedro Mexia, certo, a sua cara branquinha, a barba rala, como as suas curtas intervenções no "Governo Sombra" calam a sialorreia do João Miguel Tavares. O seu livro "Avalanche", editado pela Quasi, tem uma capa assassina. Pedro, coragem!
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ANOITECE
Anoitece, o táxi atravessa
a metrópole, o coração,
detector de minas, reconhece,
um a um, os bairros
onde viviam, talvez vivam,
quatro ou cinco raparigas.
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