sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Baghlan.



A província de Baghlan fica no coração do Norte do Afeganistão, um pouco acima de Kabul, 200 km em linha recta, ou isso. Esta linha recta atravessa o Hindu Kush, ficando esta província na vertente norte deste. Pouco mais de 20000 km2, um milhão de habitantes. Ao nível das etnias muita diversidade, com bastantes Hazaras xiitas. Esta diversidade divide-se pelos vários distritos da província, com dois predominantemente Hazaras, 1 com predomínio Uzbeque, 2 de forte predomíno Pashtun, os restantes Tajiques. Só o distrito da capital, Puli Khumri, tem uma divisão quase equitativa pelas quatro etnias. Estas divisões, que resultam do facto da província ficar na fronteira entre o norte Tajique e o "corpo" Pashtun, têm feito desta província uma das zonas mais conflitivas ao longo da história do Afeganistão. 

Eis dez coisas sobre a província de Baghlan:



1 - o nome da província tem algo a ver com "templo". Em Surkh Kotal existem as ruínas mais bem preservadas e monumentais de um antigo reino, os Kushan, criado por uma tribo que desceu das estepes, adquiriu costumes do velho reino Greco-Bactriano que sobrevivia da conquista de Alexandre e se espalhou entre o 1º e 3º século DC desde o Aral até o norte da Índia. Surkh Kotal é um templo dedicado à religião iraniana de Zoroastro, com os restos de um altar do fogo sagrado. Os Kushan deram atenção a várias religiões para além dos seus deuses primitivos, provavelmente escolhendo a religião que mais lhes interessava consoante as terras de mais premente conquista: a religião iraniana se as conquistas eram para oeste, o budismo e o hinduísmo se as conquistas eram para sul, tendo no início ainda adorado Zeus, Hera, Apolo.



2 - Nas guerras várias do Afeganistão Surkh Kotal foi completamente pilhado/a. Restam no Museu Nacional em Kabul uma estátua, os restos do altar do fogo e a "Inscrição de Rabatak", um longo texto escrito no século II DC em alfabeto grego mas em língua bactriana.  A estátua chegou a ser semi-destruida pelos talibã, o que só mostra como o Museu Nacional de Kabul é seguro. 
A inscrição foi descoberta por guerrilheiros mujaheddin ao escavar uma trincheira em 93. Um inglês presenciou o feito e conseguiu perceber a importância. Muito do que sabemos deste curto mas importante império que dominou por algum tempo partes do Pakistão, Afeganistão, Tajikistão, Uzbekistão e Índia, está ali escrito. No século seguinte os Kushan inventariam o alfabeto bactriano, derivado do grego. 



3 - Surkh Kotal fica um pouco desviada da estrada que liga as duas principais cidade da província, a capital Puli Khumri e Baghlan, a outra cidade importante da província. Ambas têm mais de cem mil habitantes e estão nas margens do rio Kunduz, que desce do Hindu Kush para norte, sendo tributário do Amu Darya. Mais uma vez, nestas terras de chuva escassa, um rio decide onde viver.



4 - Puli Khumri está para a província de Baghlan como Fayzabad para o norte do Badakhshan: fica localizada num rio logo onde a montanha termina e a estepe começa, aproveitando o melhor de dois mundos. As terras por aqui são férteis e produzem trigo e arroz!
Em Puli Khumri foi construída a primeira fábrica de cimento do Afeganistão, em 1954, com apoio da Checoslováquia. Ainda funciona.



5 - Perto de Puli Khumri está a única mina de carvão do Afeganistão, em Kar Kar. Funciona em condições miseráveis. Num texto publicado em 2016 no "Pacific Standard", uma revista americana preocupada com o ambiente que entretanto acabou, era referido que a América tinha gasto meio bilião de dólares no Afeganistão para recuperar a sua indústria extractiva, com utilidade zero, custos inflacionados, etc. Uma fotografia da mina de carvão de Kar Kar ilustrava a reportagem. 



6 - A cidade de Baghlan é o centro no Afeganistão da produção de açúcar-de-beterraba, com a beterraba produzida ali localmente. Numa visita oficial de parlamentares em 2007 a uma fábrica de produção em açúcar em Baghlan um bombista suicida matou mais de cem pessoas.



7 - No distrito de Andarab, na parte sul da província, no fim de Agosto os Talibã tinham sido expulsos e a resistência continuava. Foi partilhado um vídeo dos resistentes pela jornalista australiana nascida em Kabul Yalda Hakim, que trabalha para a BBC. Um mês depois, não há mais notícias. Yalda Hakim tem uma Fundação que ajudava jovens afegãs a estudar na Universidade Americana de Kabul. Tudo indica que esta universidade fechou - o site da universidade está em baixo. As bolsas da Fundação Yalda Hakim já estavam ultimamente a ser desviadas para o Qatar e o Reino Unido. Yalda Hakim não aparece com o cabelo coberto em nenhuma fotografia.



8 - A província é atravessada pela Auto-Estrada (ou seja, uma estrada alcatroada) que liga Kabul a Kunduz e Mazar-i-Sharif. Nos últimos anos, os talibã, que dominavam os campos e as montanhas, montavam portagens na estrada para extorquir dinheiro. Diziam porém que só o faziam quando a mercadoria transportada era importada. 



9 - Um ponto de partida para estas incursões era o vale de Kayan, tomado pelos Talibã em 2019. No Afeganistão cada vale é um mundo. Neste vale vivem sobretudo Hazaras xiitas ismaelitas, muito orgulhosos da sua herança cultural. Têm um líder espiritual, Sayed Mansoor Naderi. Este líder espiritual trabalhou e governou com os governantes de Afeganistão sempre com bom entendimento e proveito próprio, excepto com os talibã. Os Sayed são descendentes de Hussein, neto de Maomé, filho de Fátima. Há uma reportagem sobre uma visita de Hamid Karzai em 2009 a Kayan, onde foi apresentar os seus cumprimentos a Sayed Mansoor Naderi. O vale de Kayan terá votado maciçamente nele. Karzai foi reeleito. 
Sayed Mansoor Naderi tem três filhos. Falemos deles. Sayed Jafar Naderi nasceu em 1965, foi novo estudar para a América, tocou numa banda de heavy-metal, ganhou dinheiro, voltou para Baghlan para ser ostensivamente o que o seu pai era de uma forma mais disfarçada: um senhor da guerra. Lutou contra tudo o que lhe aparecia pela frente e ganhou direito a um documentário, "Warlord of Kayan", filmado em 1989 (tinha ele 24 anos) e disponível no Amazon Prime. Um bruto temível, dizem dele. Sadat Mansoor Naderi nasceu em 1977 e aos 12 anos de idade foi estudar para o Reino Unido. Licenciou-se em Economia e Gestão. Voltou ao Afeganistão em 2003 e investiu sucessivamente na distribuição de combustíveis, montou a primeira seguradora privada e depois investiu na distribuição para a classe alta e os expatriados. Foi Ministro do Urbanismo e Desenvolvimento com Ashraf Ghani e, a partir de 2020, Ministro para a Paz, participando nas negociações de Doha. Várias vezes afirmou publicamente que os talibã não queriam a paz. 
Farkhunda Zahra Naderi nasceu em 1981. Os seus estudos evoluiram também para o Reino Unido e terminaram em Tashkent, no Uzbekistão. Foi deputada (por Kabul) no parlamento do Afeganistão de 2010 a 2015 e estabeleceu relações internacionais com outros/as parlamentares através do globo, com presença na Inter-Parliamentary Union. Recebeu um N-Peace Award em 2012. As suas acções em prol da educação, da mulher e da cultura têm sido inúmeras. Está presentemente fora do Afeganistão, entrevistada pela BBC em 28/08, dizia, entre lágrimas, querer regressar. 



10 - A casa, ou melhor, o palácio de Sayed Mansoor Naderi ficava numa encosta do vale de Kayan, seria uma casa luxuosa como seria próprio de um líder espiritual de um povo, e era encimada por uma (muito kitsch) águia esculpida. Esta águia foi destruida pelos talibã enquanto Sayed se refugiou no Uzbekistão, se não me engano em 1998.

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