Ler. Que prazer duradouro. E, porém, em outros tempos, defini-me pelo que fazia, ouvir, tratar, e pela música que me rodeava, não pelo lido. Hoje leio.
Á Beira do Mar de Junho - João Miguel Fernandes Jorge.
Quando eu escrevia poesia e a submetia à leitura de alheios era-me dito que o escrito ia beber ao João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ). Em 1976 JMFJ editou com outros três uma publicação chamada "Cartucho" que num cartucho de papel se vendia. A definir um grupo e uma geração, embora eles os quatro não achem bem isso. O livro que menciono tem o poema mais canonizável de JMFJ e que se chama "Os portugueses, os de cabelo castanho", "divididos / por comunidades de marinheiros e comerciantes / e populações agrícolas do interior. // Audazes os primeiros / tradicionais conservadores os segundos / são como o trigo ou os animais / mal sabem o que é o mar ou o comércio." Assim era Portugal retratado num livrinho de 1982, em quarenta anos o que mudou? JMFJ é o nosso maior poeta vivo, com António Franco Alexandre, outro do "Cartucho".
Agora e na Hora da Nossa Morte - Susana Moreira Marques
Este lvro versa sobre um projecto de cuidados paliativos que aconteceu (ainda acontece?) com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, em Trás-os.Montes, nas aldeias das traseiras. Os cuidados paliativos são uma área da prática médica que me diz bastante. Não virar as costas. Cuidar sempre. Susana Moreira Marques escreve muito bem e descreve muito bem o que ali acontece. As dores. As verdades. Os aqui e ali suaves enganos.
Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll
"Curioser and curioser!" é a expressão que eu mais retenho e que me salta para o ouvido sempre que penso em Alice. É um acontecimento único entrar neste universo. É daqueles livros que para muita gente pode com facilidade ser considerado "o livro". Não é o meu caso, mas por pouco. E fico-me por outra citação: "Who in the world am I? Ah, that's the great puzzle!".
Amiga Genial, A / História do Novo Nome /História de Quem Vai e de Quem Fica / História da Menina Perdida - Elena Ferrante
Não sabemos quem é Elena Ferrante e este "quarteto napolitano" não é a única coisa dela que merece ser lida, havendo em coisas anteriores escrita também muito boa. Mas a história de Lenú e de Lila, a história e as histórias à volta, está ao nível das grandes sagas. "A nossa amizade começou no dia em que eu e Lila decidimos subir as escadas escuras que, degrau após degrau, lanço após lanço, iam até à porta do apartamento de don Achille." Assim começa, e depois é um não acabar de acontecimentos e de emoções e de escrita que nos domina como...
Andanças com Heródoto - Ryszard Kapuscinski
Li vários livros de Kapuscinski mas este é a sua obra-prima, no sentido em que conta a sua história, como começou a sua vida de repórter e como um livro de Heródoto, o grego pai da História mas também um viajante, lhe serviu de companhia. Kapuscinski nasceu nos anos trinta do século passado numa cidade polaca que hoje fica na Bielorrúsia, nota importante nos dias que correm. Não é deste livro mas conto a sua história que mais me ficou, e que se passou em Lagos, na Nigéria. O seu apartamento era assaltado quase todos os dias. Conhecidos disseram-lhe para comprar num mercado uns amuletos contra o roubo, ele resistiu. Os assaltos continuaram. Comprou o amuleto. O apartamento passou a ser uma casa segura.
António Osório (antologia e texto sobre) - Eduardo Lourenço
Este livro, uma "velha" antologia da Presença muito bem emoldurada em palavras por Eduardo Lourenço, apresentou-me este fantástico poeta, que também foi bastonário da Ordem dos Advogados, António Osório. O poeta começou a publicar relativamente tarde e ainda bem, a sua poesia dialogando bem com as escritas que por aqui apareceram nos anos setenta. Poesia discreta, "pequena", influenciada pela melhor poesia italiana e partilhando uma identidade de propósitos (a mãe era italiana). Revolução nenhuma. "Aqui em Siena noivaram / meus pais - e apenas eu os vejo / e tenazmente procuro. Nem os anjos / de Simone Martini de ambos se recordam. / (...) /pertencem-me as amantes, tímidas / carícias que fecundaram meu rosto. / E guardo com pudor tudo o que ignoravam."
Aracne - António Franco Alexandre
Já disse o quanto gosto de António Franco Alexandre. No seu percurso de escrita este outro poeta do "Cartucho" tem alguns livros "redondos". Prefiro "Aracne". "Sem Palavras Nem Coisas" saiu estrategicamente em 1974 e é dos livros de poesia mais "livres" que eu já li, Desempoeirado em formas e conteúdos. "Aracne" saiu 30 anos depois. A forma é mais recolhida. Nenhum poema foge ao título. "O que me faz diferente / (além, está bem de ver, do exosqueleto) / é talvez não ter alma interior; / uma coisa qualquer sobrevivente / que me faça durar, ainda que seja / na forma inferior do ectoplasma /ou no fátuo rumor da borboleta. / É breve a vida; mal sabemos / fiar um fio, e conceber a seda, / já se gastou a areia da ampulheta; / a frágil obra que fizemos, fica / aberta ao vento, à chuva, ao descuidado / ofício da coruja e da serpente. / E como é escura a noite, só rasgada / pelo grito tenaz dos predadores; / ou, quando iluminada, é pelo fogo / que devasta os casulos e envenena / o jovem mel guardado nas colmeias. / À falta de melhor, antes prefiro / que ande lá fora, a pouca e perecível /alma que tenho; e se misture / tão bem a cada instante, que apeteça / vivê-lo eternamente; porque o tempo / é, como eu, um mero fabricante / de véus e teias que os humanos rasgam / sem sentir como nelas estão presos. ".
Armas, Germes e Aço - Jared Diamond
Jared Diamond, um americano doutorado em geografia, fisiologia, história, etc, falador de uma dúzia de línguas, etc., constuma aparecer nas fotografias com uma barba à Amish. Os seus livros não são porém isentos de sentido de humor. No mesmo ano em que saiu "Armas, Germes e Aço", 1997, publicou também "Porque Gostamos de Sexo", onde pelo menos um capítulo se dedica a explicar porque comparativamente o pénis humano é maior do que o do chimpanzé mas desprovido de osso (!). "Armas, Germes e Aço" fornece a melhor explicação que eu já li sobre o porquê do sucesso das sociedades europeias vs as dos outros continentes. E isto é saber obrigatório para qualquer europeu, pois aqui se mede a nossa sorte. Lê-se para além do mais com prazer e só se pára no fim. A conclusão? "as intrigantes diferenças entre as histórias a longo prazo dos povos dos diferentes continentes não têm sido devidas a diferenças inatas nos próprios povos, mas a diferenças nos seus meios ambientais.".
Arte Nenhuma - Carlos Poças Falcão
Carlos Poças Falcão é um modesto poeta nascido em Guimarães e que começou a publicar no final dos anos oitenta e que é, a par do falecido Daniel Faria, o poeta mais importante a aparecer no último quartel do século XX. O título desta colectânea reflecte a sua modéstia. Poesia mística e lírica como já não se usa. "Um dia há um vulgar homem na falésia, um pássaro cantando na varanda, uma simples fissura na parede - e levantamos uma pedra, uma casa. Pareceremos ratos se não estivermos atentos, porque é Deus a provocar as evidências, batendo no joelho com a Sua larga mão. "Até que enfim!" - e faculta-nos o dom de um vislumbre e lança-nos depois em novas trevas."-.
Arte Popular em Portugal, A - Ed. Verbo, coord. Fernando C. Pires de Lima
Antigamente para comprar determinadas colecções de prestígio estas eram coleccionadas em fascículos, que saiam periodicamente e eram comprados por assinatura numa tabacaria ou por correio. No fim mandava-se encadernar tudo, havendo às vezes duas possibilidades de encadernação consoante a bolsa do coelccionador. Assim coleccionaram o meu avô materno e o meu pai. Esta obra que menciono já não sei qual deles a coleccionou. Não está encadernada porque falta um estratégico fascículo. No consultar das suas páginas soltas nasceu o meu fascínio pelos moliceiros, pelos rabelos e pelos varinos, o meu orgulho em ter convivido com os enormes meias-luas das praias da Beira Litoral, e aprendi a distinguir bem a casa portuguesa nortenha da casa portuguesa do sul, bem como as coloridas cangas beirãs das lavradas cangas minhotas. Cangas de bois, bem entendido.
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