quinta-feira, 21 de abril de 2022

Aleppo.


Neste momento em que a invasão russa da Ucrânia evolui para uma nova fase centrada no Leste e um novo comandante russo foi chamado para por ordem nas operações, Alexander Dvornikov, talvez seja o momento de lembrar Aleppo.

A Síria é uma entidade geográfica antiga. Foi província romana com geografia variável, já antes era entidade reconhecida no império selêucida, herança das aventuras e deambulações de Alexandre. Aleppo porém antecede em muito o nascimento da "Síria". É tradicionalmente reconhecida como das cidades mais antigas do mundo, a par da rival Damasco. O "antigo" significará aqui uma ocupação ininterrupta eg oito milénios! A zona da Síria onde Aleppo e Damasco se localizam é o braço ocidental do Crescente Fértil e das poucas zonas ainda férteis do mesmo a poder fazer jus ao nome, embora a política de retenção de águas da Turquia a norte não ajude.

Vinte coisas a saber sobre Aleppo e a Síria: 

Aleppo é a cidade mais populosa da Síria. Ou era. A sua capital económica. Centro industrial e sobretudo comercial, rodeado por terras com boa capacidade agrícola, a 100 kms do mar a oeste e do Eufrates a leste, muito perto da fronteira turca a norte. Mais de dois milhões de habitantes antes da Guerra Civil, hoje não se sabe. As pessoas estarão lentamente a voltar.

A Guerra Civil Síria começou por não ser uma guerra civil. Os protestos que aconteceram na Síria em 2011 fizeram parte da Primavera Árabe que começara em 2010 na Tunísia. Protestos que começaram pacificamente contra o regime autoritário de Bashar Assad e que atravessavam os vários grupos da sociedade avançaram para uma rebelião armada quando a repressão do exército e da polícia foi mais violenta. Isto aconteceu para o fim de 2011. A revolta armada, em grande parte organizada por dissidentes do exército sírio, começou por ser secular, mas rapidamente a interferência de forças externas polarizaram e extremaram posições seguindo linhas religiosas. Ao fim de algum tempo as forças rebeldes seculares perderam protagonismo e o que havia em campo de um lado eram milícias ligadas à Al Qaeda e ao Exército Islâmico, que chegou a ocupar parte do território sírio e, do outro lado, milícias ligadas ao Hezbollah libanês e apoiadas pelo Irão milícias alauítas (a minoria religiosa a que pertence a família Assad) e o Exército Sírio. Há quem diga que a seguir à Primavera Árabe veio o Inverno Árabe. A Guerra Civil Síria foi efectivamente decidida quando a Rússia começou a apoiar maciçamente o governo sírio através de bombardeamentos aéreos sistemáticos e indiscriminados.

A população síria  - lembro-me de o ter lido num pequeno livro de divulgação dos anos setenta-oitenta - tinha fama de ser a mais educada do Médio Oriente. Sendo difícil encontrar números de escolaridade recentes, consegue-se perceber porém com uma pesquiza rápida que a escolaridade síria estava, antes da Guerra Civil, próxima da escolaridade turca. Não esqueçamos que a escolaridade turca não está nada longe da escolaridade portuguesa! Com uma paridade de género nada má! Foram estas gentes que a Europa não quis receber, ao confundi-los com gente outra bem diferente mais a leste (os afegãos) e por medo de eventuais infiltrações extremistas, dado o desenrolar das hostilidades.

Aleppo nunca foi capital de nenhum grande reino ou império. Mas chegou a ser a terceira cidade mais populosa do Império Otomano, depois de Constantinopla e de Cairo. 

O Centro Histórico de Aleppo é Património da Humanidade desde 1986. Imensos edifícios foram atingidos pela Guerra Civil. O seu desenho de ruas era ideal para uma guerrilha de proximidade e foi isso que aconteceu. Grande parte foi destruido. A reconstrução está acontecer lentamente.

A Cidadela de Aleppo é um enorme castelo no cimo de uma enorme colina, em parte artificial, situada no centro da cidade. Com vestígios de ocupação desde 3000 ac, terá sido uma acrópole macedónia/helenística no tempo dos descendentes de Alexandre. As paredes que subsistem datam da reconstrução feita pelo filho de Saladino, no início do séc. XIII. Nesses tempos, mais do que um castelo, era uma cidade dentro de uma cidade. Desde 2017 voltou a ser visitável.

A Grande Mesquita Omíada de Aleppo, construída pouco depois da congénere de Damasco, em terrenos que tinham sido a Ágora da Aleppo macedónia, já tem uma história de vários atentados e destruições.  A Guerra Civil Síria quase a destruiu por completo, deitando abaixo o seu elemento mais identificativo, um lindíssimo e altivo minarete do séc. XII, a época da última reconstrução da Grande Mesquita, por Saladino. Dentro da mesquita fica o Altar de Zacarias, com relíquias do mesmo, o pai de João Baptista, venerado na Bíblia e no Corão. Estará lentamente a ser reconstruída (a mesquita, o minarete suponho que não).

O Souk de Al-Madina é um conjunto de souks e caravanserais que, no seu conjunto de 13 km de sinuoso comprimento, constituem o maior mercado coberto do mundo. Constituiam. A maior parte do Souk está hoje em ruínas. Grande parte dos souks tinham a sua origem nos séculos XV, XVI, XVII. Mas já em 1184 escrevia Ibn Jubayr: "Aleppo é uma cidade proeminente e em todas as idades a sua fama tem voado alto... Está construída como uma fortaleza e a sua disposição é a adequada e de uma beleza rara, com amplos mercados dispostos em filas adjacentes, de forma a que se passa passar de uma fila de lojas e de misteres para o próximo... estes mercados têm todos telhados de madeira, de modo a que os seus ocupantes desfrutem de uma ampla sombra..."  

Um dos souks era especializado em sabão, o Sabão de Aleppo, uma receita muito antiga misturando azeite  e lixívia com o óleo de louro que o distingue dos outros sabões artesanais. Quanto mais óleo de louro melhor e mais caro.

Jdeideh é o bairro cristão de Aleppo e fica imediatamente fora das muralhas da Cidade Velha. Pouco mais de 1/10 dos Sírios são cristãos. A percentagem sobe em Aleppo. Este bairro tinha uma forte presença arménia, reforçada após o genocídio arménio na 1ª Grande Guerra e que tinham grande proeminência no comércio. Os cristãos sírios dividem-se pelas seguintes igrejas: A Igreja Grega Ortodoxa de Antioquia, a Igreja Católica Grega, a Igreja Ortodoxa Siríaca, a Igreja Apostólica Arménia, a Igreja Assíria do Leste e a Igreja Católica Caldeia. Não supreendentemente ainda subsistem neste bairro igrejas alocadas a muitos destes ramos de devoção. As mais conhecidas a Igreja de S.Elias e a Catedral Arménia dos 40 Mártires, esta completamente reconstruída a expensas da diáspora arménia. Sim, Jdeideh sofreu imenso com a Guerra Civil.

Os cristãos tinham classicamente posições de relevo na sociedade de Aleppo. A elite sunita de Aleppo por outro lado também convivia razoavelmente com a cúpula alauíta do regime de Hafez Al Assad, o pai de Bashar Al Assad. Quem em Aleppo quis uma Primavera Árabe? Com a tomada de posições pelas guerrilhas extremistas muçulmanas a população cristã de Aleppo diminuiu e muito.

Os últimos judeus de Aleppo, pouco mais de meia dúzia, abandonaram a cidade em 2016. A Grande Sinagoga de Aleppo, cabeça dos judeus na Síria, foi atacada e incendiada em 1947, um ano antes da independência de Israel. O edifício foi bastante recuperado mas já não serve como sinagoga. Nele estava guardado desde o séc XIII o chamado "Códex de Aleppo", um conjunto de textos escritos no séc. X e que são o texto mais antigo e importante a servir de base à Bíblia judaica e o Antigo Testamento. O Códex desapareceu em 1947, sendo apenas parcialmente recuperado anos depois e estando agora na posse do Estado  de Israel. Os judeus da Aleppo antiga seguiam um ritual seu específico (o "ritual velho de Aleppo") que depois se encontrou com o rito sefardita dos chegados da península ibérica.

Dizer que em Aleppo terminava uma das antigas Rotas da Seda é verdade mas também não é verdade. O mar e a costa para onde se dirigiam as caravanas que saiam de Aleppo hoje é porém turco (uma cedência dos franceses a Kemal Ataturk), e a velha cidade rival/irmã de Antioquia, cristã no tempo das Cruzadas, chama-se Antakia e é uma pálida imagem do passado. 

Pela baixa de Aleppo serpenteia um simpático rio, o Queiq. Por nascer na Turquia a progressiva retenção das suas águas fez com que ele secasse nos anos sessenta. Depois, um projecto que puxou água do Eufrates deu vida nova ao rio de Aleppo. Entre Janeiro e Março de 2013 começaram a aparecer no rio Queiq cadáveres de jovens sírios, mãos atadas atrás das costas, a boca selada com fita adesiva, um tiro na cabeça. Muitos deles com sinais de tortura. Vinham da área controlada pelo governo, varavam em terra nas áreas rebeldes. Foram mais de duzentos corpos no total. A contagem parou quando as forças rebeldes fizeram baixar o nível da água do rio para evitar que os corpos flutuassem rio abaixo.

Quase nos esquecíamos que Aleppo é cabeça da província mais populosa da Síria. A parte norte desta província está sob domínio do Exército Turco desde 2016, com uma extensão adicional em 2018. Estes territórios estão sob administração "mista" de um governo da oposição síria e das autoridades militares turcas. A Turquia tem feito aqui um esforço importante de reconstrução. Um status quo permite alguma paz nesta nova fronteira. O futuro destas terras é incerto. Serem anexadas pela Turquia seria algo mal visto pela comunidade internacional e um insucesso para a oposição síria, que ainda a há.

Na parte norte da província de Aleppo (e também no norte da província vizinha de Idlib) persistem as ruínas abandonadas de umas dez a vinte vilas do período romano-bizantino. Património da Humanidade desde 2011, nestas vilas estão as ruínas do maior conjunto de igrejas romano-bizantinas do mundo. Uma delas é a Basílica de S.Simeão Estilita, o santo que dá nome à montanha onde esta igreja se situa. S.Simeão o Estilita foi um asceta que viveu grande parte da sua vida sobre uma coluna de forma a estar mais perto de Deus. A Basílica de S.Simeão Estilita foi construída no séc V  e os seus restos foram bombardeados primeiro pelos russos em 2016 e depois pelos Turcos em 2018 (aqui para expulsar combatentes curdos da zona). Os restos do pilar de sustentação do santo desapareceram. O pouco que resta tem a seu lado um posto de observação turco. A igreja dista apenas 30 km de Aleppo mas está na zona controlada pelos turcos.

Aleppo sempre foi uma cidade multiétnica, como qualquer grande centro comercial. Já falámos sobre os judeus e sobre os cristãos. Falemos agora dos curdos e dos turcos (também chamados de turcomanos). Ambas as etnias têm uma presença importante quer na cidade quer nas zonas rurais, mais no norte. São dois grupos que a história fez rivais senão inimigos. O distrito de Afrin, no norte da provínicia, constitui uma entidade curda "independente" durante a Guerra civil síria. A intervenção turca serviu para expulsar as forças curdas de Afrin. As arbitrariedades, a violência inter-étnica, a deslocação forçada de populações aconteceu como acontece nestas terras desde sempre.

Morreram mais de 50000 pessoas na província de Aleppo na Guerra Civil Síria. Sim, a Batalha e Cerco de Aleppo durou quatro anos. Aleppo esteve quatro anos dividida como Berlim, mas em guerra. E a parte que viveu os últimos tempos cercada foi a parte leste. Esta parte leste, que esteve anos sob "governo" de guerrilhas radicais, chegou a viver sob a lei islâmica, a sharia. Lembro que o governo sírio desde a sua independência sempre foi secular e a sharia não tinha qualquer tradição na Aleppo cosmopolita.

As forças governamentais usaram gás cloro para ajudar a terminar a batalha e o cerco de Aleppo. O ISIS também utilizou gás mostarda quando em 2015 foi forçado a retirar da parte norte da provínica de Aleppo pelas outras forças de oposição.

Aleksandr Dvornikov, o actual comandante das forças russas de invasão da Ucrânia, foi o comandante das forças russas na Síria desde 2015. 


 


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