segunda-feira, 6 de junho de 2022

Voltando à Siria: a leste de Aleppo.

Quando me dediquei a estudar Aleppo, a propósito do general das forças russas a comandar o esforço russo agora no Donbas e que tinha sido comandante antes na Síria, percebi que, ao contrário da sensação que perpassa da ausência de notícias, a Guerra Civil na Síria ainda não acabou. O norte da Síria nomeadamente é ainda uma manta de retalhos onde esporadicamente ainda acontecem combates. Não esquecendo que o Exército Islâmico ainda existe e, de vez em quando, ataca.


Decidi então dedicar a minha atenção ao norte da Síria a leste de Aleppo. A cidade mais importante a leste de Aleppo é Raqqa. Raqqa é uma cidade predominantemente árabe. Tem uma longa história com origens helenísticas e depois bizantinas. Chegou temporariamente a ser cabeça de califado com os Abássidas no séc. VIII-IX, no fim do califado de Harun al-Rashid. A expansão da cidade no séc XX quase obliterou os restos deste passado glorioso. 

Raqqa voltou a entrar na história internacional quando, na sequência da Guerra Civil Síria, foi tomada pelas forças oposicionistas sírias em 2013, nomeadamente por forças com inspiração mais integrista. A Síria dos Assad sempre fôra um estado secular. Em Raqqa em 2013 foi instituido o primeiro tribunal da Sharia em território sírio. As coisas pioraram ainda mais quando em 2014 Raqqa foi conquistada pelo Exército Islâmico. Durante 3 anos Raqqa foi a capital do Califado Islâmico do Levante. Seria tema para outro escrito o que sofreu Raqqa durante estes três anos. 


Raqqa foi libertada em 2017 pelas Forças Democráticas Sírias, constituidas sobretudo por curdos, curdos que tinha resistido heroicamente estes anos todos ao Exército Islâmico (EI) e que, com o apoio aéreo americano estavam a reconquistar terreno ao EI. Raqqa não é uma cidade predominantemente curda. Raqqa foi quase completamente destruída ao ser libertada. Portanto, deste 2017 pertence à Autoridade Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES), que é uma entidade dominada pelas forças curdas. Vamos perceber como têm acontecido estes últimos cinco anos em Raqqa e, sobretudo, no resto do Nordeste Sírio.

Antes do mais Raqqa tem vindo lentamente a ser reconstruída. Lentamente. Bombardear é sempre bem mais fácil do que reconstruir. Várias ONG's declararam preto no branco que os ataques aéreos contra Raqqa, conduzidos pelos Estados Unidos, pelo Reino Unido e pela França tinham causados centenas e centenas de vítimas civis. E destruído a cidade quase toda. Sendo o Estado Islâmico uma força combatente que pouco se distinguiria do povo de Raqqa, poderia ter sido diferente?

Raqqa foi reconquistada pelas Forças Democráticas da Síria (FDS). O grosso destas forças é constituído pelas Forças de Protecção Popular (FPP ou YPG), o braço armado do Comité Supremo Curdo, formado em 2012 pela fusão de 2 partidos curdos sírios. As FPP tiveram uma participação reactiva na Guerra Civil Síria. Quando grupo fundamentalistas atacaram povoações curdas defenderam-se. Ficaram conhecidas internacionalmente por aguentarem o cerco de Kobani pelo Exército Islâmico, com o apoio aéreo americano. Depois, lentamente, foram conquistando terreno ao EI, ocupando progressivamente terras para leste e para oeste, para leste até à fronteira com o Iraque, a oeste coroando pelo norte Aleppo. A AANES acabou por ocupar praticamente todo o nordeste da Síria e desarticulara o Califado Islâmico - obtendo assim o reconhecimento americano. Nestes terrenos havia curdos mas também árabes, e ainda assírios, turcomanos, arménios, circassianos...  


Este território começou a ser conhecido internacionalmente como "Rojava", que é a palavra curda para "ocidente", de Curdistão ocidental. E ganhou alguma popularidade por razões que iremos de seguida explorar. Pelo contrário, este território semi-autónomo de predomínio curdo no norte da Síria foi encarado como um inimigo pelo governo Turco, que várias vezes invadiu território Sírio para criar aquilo que os turcos chamavam "corredores de segurança", invasões cujos  nomes (por ex., "Ramo de Oliveira") não condiziam com a atitude de destruição e terror praticada no terreno.


Quase metade da população curda vive na Turquia, sobretudo no seu sudeste. Desde os anos 80 que o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, ou PKK, promove uma guerra de guerrilha contra o Estado Turco. A sua ideologia era de início marxista-leninista. O seu líder, Abdullah Öcalan, foi preso pela Turquia com a ajuda da CIA em 1999. Foi julgado e condenado a prisão perpétua. Durante 10 anos foi o único preso na ilha prisão de Imrali. Estando preso, Öcalan manteve muita actividade política, evoluindo progressivamente para uma atitude menos beligerante e procurando repetidas vezes negociações de paz. Por outro lado a sua ideologia abandonou o marxismo-leninismo e enveredou pelos caminhos de uma certa esquerda alternativa, defendendo uma espécie de democracia directa a que chamou "confederalismo democrático", promovendo a defesa de todas as minorias, das mulheres e defendendo inclusivé uma economia mais ecológica!


O que um prisioneiro escreve só ganhará importância quando alguém lhe prestar atenção. No caso de Öcalan, apesar desta sua nova moderação, o PKK continuou a ser considerado uma organização terrorista pela União Europeia, pelos Estados Unidos. O PKK nos anos 80 e 90 tivera as suas bases na Síria. Quando em 2014-2015 começaram a aparecer nos media ocidentais as primeiras reportagens sobre Rojava e as suas particularidades a confusão instalou-se. Que particularidades?

Nos territórios da AANES, criou-se um modelo de comunalismo e de poder descentralizado, a forma de um poder curdo melhor lidar com populações que frequentemente não eram curdas. Rojava foi dividida em três e depois sete regiões. Cada uma destas tem o seu governo eleito. Rojava tornou-se cedo conhecida pela sua milícia armada feminina. Mas depois tornou-se também conhecido que os direitos das mulheres, nomeadamente a igualdade da sua palavra como testemunho, etc., foram reconhecidos em lei. Algumas das regiões inclusivé chegaram a ter um governador homem e uma governadora  mulher. Cada região fazia um esforço máximo para dar representação a todas as minorias e religiões. Em algumas regiões portanto a igualdade das mulheres não foi completamente adoptada... porque o povo não concordava! Ó ensino foi reformado para acontecer nas línguas-mãe dos territórios em questão: árabe, curdo, assírio, turco, optando muitas escolas por serem  bilingues. Por outro lado na reconstrução da economia da região algumas opções "ecológicas" foram tomadas, criando-se uma nova agricultura mais sustentável. O nordeste da Síria era o celeiro de trigo do país. Tentou-se diversificar as produções. Donde vinham todas estas originalidades? Os retratos pendurados nas paredes por aqui e por ali não desmentiam: de Öcalan. O terrorista preso numa ilha na Turquia inspirava a governação de uma frágil ilha de diferença - Rojava - que emergia da mais brutal das guerras civis. 



Rojava é objecto de estudo internacional. Publicam-se artigos sobre artigos, fazem-se congressos e simpósios, acredito até que haverá doutoramentos sobre Rojava. Mas "dos que importam" ninguém gosta de Rojava. A liderança síria da oposição no exílio critica a Rojava o "separatismo" e o ter criado uma "Constituição" própria antes de se ter acordado uma nova Constituição para a Síria. Os Curdos do Iraque, cujo sistema de governo não tem nada a ver com o de Rojava, não são muito solidários com os seus irmãos sírios. O Estado Turco tem um ódio visceral por Rojava e já atacou os seus territórios várias vezes. Donald Trump esqueceu-se do papel da AANES na derrota do EI e em 2019 decidiu unilateralmente retirar a presença americana no terreno, levando imediatamente a um ataque turco. Depois voltou atrás, tarde demais. Mesmo o PKK não tem relações lineares com a AANES, criticando a sua aliança estratégica com os americanos (se esquecermos o episódio Trump). A autonomia de Rojava só é reconhecida oficialmente... pelo Parlamento Catalão!

Rojava tem sido criticada também por algumas ONG's que dizem que Rojava não é o apregoado paraíso na terra. Que ainda há demasiada preponderância curda nos comandos de decisão. Que a democracia de base não substitui a democracia mais acima. Que o culto de personalidade em torno de Öcalan preocupa. Que a liberdade de imprensa não é a ideal. Que aqui e ali algumas minorias foram violentamente atacadas. Mas não há nenhuma ONG que não faça a ressalva de dizer que  "não se compara com o terror que acontece no resto da Síria...."  

As incursões turcas levaram a que a AANES contractualizasse com o Exército Sírio a presença deste em edifícios e quartéis-chave em várias povoações fronteiriças, de forma a que os turcos ao atacar não quisessem atacar... o Exército Sírio. Isto sem qualquer interferência de novo na autonomia de facto de Rojava. A AANES aliás aboliu oficialmente a palavra "Rojava" da denominação oficial da região (ou federação de regiões...) de modo a que a imagem "curda" ficasse diluída. O pendor ecológico de Rojava perde-se um pouco devido à sua independência económica depender e muito dos poços de petróleo que existem a leste. O petróleo, a electricidade produzida no Eufrates e o reviver da agricultura garantem portanto o sobreviver deste quase-estado, que de apoios externos apenas recebe algumas migalhas dos Estados Unidos.  


 A leste de Aleppo, incluindo martirizada cidade de Raqqa, acontece um quase-estado, uma experiência estranha de auto-governo em terras muçulmanas. Até quando durará...

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