Praticamente desde o seu início a Volta à França tornou-se na prova mais importante do calendário velocipédico internacional. O ciclismo de estrada tem Campeonatos do Mundo, Europeus, etc., mas a multiplicidade das suas provas, de um dia, uma semana, três semanas, percursos planos, montanhosos, em paralelo, rugosos, com calor, com frio, com vento, fazem com que uma época tenha uma longa e sinuosa narrativa, composta por várias sub-histórias, com um pico em terras de França - le Tour - mas que permite no fim do ano, quando as chuvas e o frio fecham as estradas ao desporto, longas conversas sobre quem foi o melhor no ano, quem foi o patrão do pelotão.
Em 1956 o calendário era já parecido ao de hoje. Havia duas provas de três semanas a dominar o calendário, com o Giro com uma importância então relativamente mais próxima ao Tour do que hoje. Havia também uma Vuelta a España, mas sem a tradição e o peso das outras duas e, o que era pior, acontecendo imediatamente antes no calendário ao Giro de Itália, Os espanhóis pagavam forte para conseguir algumas estrelas na sua prova, mas tinha então um percurso que, comparando, era bem mais fácil do que o Giro ou o Tour,
O ciclismo tinha no início do decénio vivido um período de grande domínio italiano. Coppi fora o primeiro ciclista a conseguir a dobradinha Giro-Tour, primeiro em 1949, depois em 1952. O seu grande adversãrio em 1949 tinha sido outro italiano, Bartali, vencedor do Tour em 1948. Em 1952 não houve adversário à altura. Coppi não voltou mais ao Tour. Uma estrela em ascenção em França. Louison Bobet, ganhou 53, 54 e 55. Em 1955 Bobet era o melhor ciclista do pelotão. Para além do Tour tinha ganho a Volta à Flandres na primavera e, antes do Tour, o Dauphiné, uma prova de uma semana ainda com pouca história mas que já se entendia como preparação para o Tour.
O Tour tinha criado a sua especificidade nos anos trinta ao funcionar com equipas representando os diferentes países, enquanto o Giro sempre correra com equipas comerciais. Isso tinha qualidades e defeitos. Permitira um bom número de vitórias francesas nos anos trinta, com Leducq, Magne e Speicher. E agora permitira a Bobet o primeiro naipe de três vitórias seguidas, algo nunca antes acontecido.
Como seria em 1956? Louison Bobet tinha terminado o ano de 1955 no bloco operatório, drenando um abcesso nadegueiro complicadito, coisa que afligia frequentemente os ciclistas. Em 1956 voltou a correr tarde mas o suficiente para ganhar a Paris-Poubaix. Uma recidiva dos problemas nadegueiros fizeram-no parar. O Tour teria um novo vencedor.
A vitória no Giro fora enfaticamente conquistada por Charly Gaul, um eremita luxemburguês de 24 anos considerado o melhor escalador do pelotão internacional. Iria Charly Gaul repetir em França? Ele tinha sido terceiro em 55. As principais equipas, a francesa, a belga, a italiana, não tinham nenhum consagrado a dominar as apostas. Vivíamos tempos de transição. O belga Brankart tinha sido segundo em 55, Os franceses Rolland e Geminiani respectivamente quinto e sexto, o italiano Fornara tinha sido quarto com apenas 20 anos de idade. As casas de apostas estavam confusas.
A equipa de Charly Gaul chamava-se "Luxembourg-Mixte", pois o Luxemburgo não tinha ciclistas suficientes de qualidade para formar uma equipa. Completavam a equipa o pioneiro inglês Brian Robinson e... o português Alves Barbosa. Pela primeira vez um português corria o Tour! Não sei como Alves Barbosa chegou a esta equipa mas posso adivinhar: dois meses antes Alves Barbosa tinha acabado oitavo nos 4 Jours de Dunkerque, uma prova muito competitiva para roladores. Só Agostinho e Rui Costa fariam melhor. Como chegara ali? Mas chegara e prestara provas.
O pelotão do Tour em 1956 era predominantemente francês. Para além da selecção propriamente dita, a França fornecia mais cinco selecções regionais, algumas delas com algumas figuras de peso, como Jean Dotto, o vencedor da Vuelta. Já agora, a Espanha levava os rivais Bahamontes e Loroño, escaladores eméritos, e Miquel Poblet, classicómano que também sabia subir.
A primeira etapa aconteceu entre Reims e Liége, 223km. Uma etapa remexida como uma clássica belga. Ganhou Darrigade, uma das figuras da equipa francesa e especialmente fadado para estas estradas. Ganhou o sprint numa fuga onde em sexto lugar chegou... Alves Barbosa! Na primeira etapa corrida no Tour por um português este conseguia um top dez! Quase todos os favoritos chegaram com o pelotão, sete minutos depois. Atrasados? Os italianos Fornara e Nencini, os espanhóis Bahamontes e Loroño.
A 2ª etapa foi mais do mesmo. Ganhou o belga De Bruyne, também escapado, e o pelotão chegou pouco depois, partido. Perderam algum tempo os franceses Geminiani e Dotto. Alves Barbosa perdeu mais de 12 minutos.e desceu de 6º para 60º. Terá caído? O ritmo e o esforço do dia anterior demasiados?
A 3ª etapa era entre Lille e Rouen. Chegaram à meta 9 escapados com mais de 15 minutos de avanço sobre o pelotão. o 8º neste grupo? Alves Barbosa! Uma fuga com sucesso que cubrira mais de 150 km dos 225 da etapa. Ninguém dos favoritos perdera tempo. Alves Barbosa voltara ao... 6º lugar da geral!
O 4º dia teve duas etapas, uma coisa que nestes tempos era frequente. De manhã um contra-relógio de 15 km em circuito. Ganhou Charly Gaul, que além de trepador exímio também rolava bem. A seguir classificados ficaram o belga Brankart, o espanhol Bahamontes e o belga campeão do mundo Ockers. Estes lugares funcionaram como um statement, para dizer quem eram os mais fortes. O melhor francês foi Raymond Elena, uma figura secundária, mas interessante sim logo a seguir estar Bauvin, um potencial líder. Dos italianos Fornara fora oitavo. Alves Barbosa num honroso 19º lugar. À tarde em 125km até Caen novo golpe de teatro, com nova fuga a ganhar 15 minutos ao pelotão mas com um grupo intermédio de notáveis a apenas perder uns dois minutos - neste grupo estavam Bauvin, Ockers, Fornara, Nencini, Wagtmans. Mas não Charly Gaul nem Bahamontes nem Brankart. Com esta confusão toda dos favoritos estava só Bauvin em 10º, Ockers em 11º. Alves Barbosa descera a 14º.
A 5ª etapa foi ganha outra vez pela fuga mas todos os mais recolheram-se no pelotão. Sem qualquer história este dia pode ter sido dos mais importantes deste Tour. Pelos minutos ganhos por secundárias figuras. A 6ª etapa foi também ganha pela fuga. Vivia-se uma paz podre. Ninguém mais perdia tempo. Mas não havia um patrão. Gaul perdera imenso tempo na etapa 4b, talvez demasiado. Idem Brankart.
A 7ª etapa foi ainda mais louca. Nos 244 km entre Lorient e Angers, trinta homens meteram 18 minutos ao pelotão. Na escapada seguiram seis italianos... mas não Fornara. Dos franceses cabeça de cartaz só Bauvin. Dos belgas vários nomes também mas Ockers não nem Brankart. Ninguém mandava, ou ninguém obedecia. Alves Barbosa recebera carta-branca da equipa - dizem - e entrara na fuga também. Charly Gaul não. Nem nenhum espanhol. Alves Barbosa era 14º a 18 minutos dum tal de Roger Walkowiak, um francês duma selecção regional. Todos os favoritos favoritos estavam bem para trás, muito para trás. Alguns nomes começavam a aparecer como candidatos: os franceses Bauvin e Lauredi, o holandês Wagtmans, o belga Adriaensens.
Na 8ª etapa ganhou Poblet, uma pequena vingança dos espanhós. Voltou a ganhar uma fuga e nos escapados que ganharam tempo figuravam Adriaensens, Wagtmans, Bahamontes, Loroño. A 9ª etapa até Bordéus quase não teve história. A etapa 10, que levou o Tour até Bayonne e, portanto, às portas dos Pirenéus, teve novo grupo de escapados onde apareciam os mesmos nomes, Bauvin, Adriaensens... um novo camisola amarela, o holandês Gerrit Voorting. Barbosa chegara intermédio no dia - ? - e estava em 12º! Todos os favoritos à partida estavam a mais de quarenta minutos de distância naquele que até agora tinha sido o Tour mais rápido da história!
As etapas 11 e 12 foram as etapas pirenaicas. Na primeira passava-se o Aubisque, na segunda o Peyresourde. Gaul e Bahamontes mostraram os dentes, o francês Darrigade segurou-se à boleia dos demais e surpreendentemente voltava à camisola amarela na 11ª etapa. Barbosa perdeu muito tempo na 11ª etapa para Pau mas fez top dez na 12ª para Luchon. Em Luchon porém Darrigade estourou e havia um novo camisola amarela, o jovem belga Adriaensens. A menos de 5 minutos dois franceses de 2ª linha que pareciam ser as únicas ameaças reais: Lauredi e Bauvin. Barbosa era 12º a 20 minutos, 25 minutos à frente do seu chefe de fila, Charly Gaul.
A etapa 13 terminava em Toulouse. Tinha bastante montanha na primeira metade da etapa mas tudo terminou em pelotão. Gaul lutava agora apenas pela camisola de Rei da Montanha. Na etapa 14 nova fuga com mais de uma dezena de minutos de vantagem. Wout Wagtmans, holandês que já fora 5º no Tour em 53, é agora segundo. Bahamontes incorporou-se na fuga e assim conseguiu ficar a apenas 27' da liderança! Faltavam os Alpes e o Puy de Dome. Ou as fugas em plano decidiriam a contenda? Na etapa a seguir o pelotão volta a a partir-se. Adriaensens tem um dia mau e Wagtmans herda a amarela. Bahamontes volta a estar no grupo da frente e sobe a 14º, a apenas... 27' de Wagtmans! Barbosa chegara com Bahamontes e mantém-se em 12º.
Depois do único dia de descanso, a primeira etapa alpina. Terminava em Gap. Em 1956 ainda não havia chegadas em alto, por questões logísticas e financeiras. A vantagem dos trepadores era portanto sempre um pouco atenuada. Mas Alves Barbosa neste dia foi valente. Colocou-se no grupo de escapados logo no início, e aguentou até ao fim, tendo sido terceiro na meta. No primeiro grupo chegava Bahamontes que a pulso tinha trepado sozinho até aos escapados. Os oito minutos para o pelotão resultaram em Barbosa subir de 12º a 10º, Bahamontes de 14º a 13º. As diferenças havidas antes eram muito grandes. Quem dos "vencedores" das fugas e que compunham o top dez do Tour resistisse melhor daqui para a frente ia ganhar a prova,
A etapa rainha era agora: Gap-Turim, com o Izoard e Sestriéres pelo meio. Bahamontes voltou a ser o destaque nos escaladores. A Turim, porém, chegarm juntos dezasseis homens, incluindo Bauvin, Wagtmans e Walkowiak, este um rolador francês anónimo de uma equipa regional que até já tinha estado de amarelo. Eram agora o top três. A etapa a seguir terminava em Grenoble e ainda continha muitos Alpes. Charly Gaul, para seu prórpio consolo, ganhou-a destacado, aproveitando um problema mecânico de Bahamontes. Dos três referidos atrás Walkoviak chegou primeiro, ao lado de Bahamontes (os espanhóis dizem que com a ajuda do público, claro). Barbosa tinha feito estas duas etapas de uma forma mais modesta, perdendo uns dez minutos por dia. Mas em balanço, tendo em atenção que a outros a coisa até tinha corrido pior, Barbosa em Grenoble ainda era 10º! Os três da frente ainda eram os mesmos, mas agora a amarela era de... Walkoviak! O que podia ainda acontecer até Paris? Walkoviak, o resistente, ia ganhar um Tour?
A etapa 19, até Saint-Etienne, voltou a ver uma batalha entre Bahamontes e Charly Gaul pelo prémio da montanha e com Bahamontes a querer recuperar mais tempo. Mas Walkoviak e Bauvin perderam pouco deste, as montanhas já não eram assim tão grandes nem as diferenças causadas. Bahamontes era agora quinto mas a onze minutos de Walkoviak. Alves Barbosa distraíra-se e descera para o 11º lugar. No dia a seguir um contra-relógio "decisivo" de 72 km. Walkoviak perdeu tempo mas não demasiado. Bauvin ficou a 1.25, um ressurgido Adriaensens a 3.07. Bahamontes subira a quarto lugar mas a mais de 10 minutos, ultrapassando Wagtmans. Um CR razoável devolvera Alves Barbosa ao seu décimo lugar. O seu capitão Gaul, apesar das montanhas, só subira até 13º, a cinco minutos!
A penúltima etapa pouco mudou. Os favoritos chegaram num primeiro grupo de uns vinte, que Barbosa não falhou. Adriaensens sim, perdendo uns segundos. Para a última etapa franceses e belgas ainda prometiam luta. Que não aconteceu. A única escaramuça? O italiano Defilippis a tentar roubar o quarto posto a Bahamontes, sem sucesso. Dos favoritos Bahamontes era o que terminava à frente, em quarto lugar, mas "tarde demais"! Alves Barbosa, que era um corredor "completo", isto é, bom rolador, com boa ponta final, trepador interessante e contra-relogista razoável, tinha conseguido um feito histórico numa Volta à França sem patrão e onde os roladores tinham enganado as figuras. Walkoviak era um rei envergonhado que rapidamente voltaria ao esquecimento.
No Tour de 57 a história seria outra: ia aparecer um novo patrão e ele teria um nome, Anquetil!
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