sábado, 15 de setembro de 2018

No semáforo a ouvir os Tortoise.



Estou parado no semáforo do Bessa, a janela aberta, à espera de virar para casa. Estou a ouvir Tortoise. Noite, meados de Setembro de 2018. Algumas coisas tenho feito que foram bem feitas.

sábado, 8 de setembro de 2018

Olha voltei a escolher Poesia, e chegámos ao 179!

Estamos quase a acabar. O século é novo, o século é outro. Estes poemas são agora para este século. Espero que sirvam. Tem pinta, o século, de precisar de poesia e bastante.




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RENATA COELHO BOTELHO (1977-)

Açoriana, filha de poeta açoriano já por aqui antologiado. Já publicou com ele, o que é curioso. Adora Yourcenar, o que é correcto. Psicóloga, já andou pelo Porto e desandou dele. Acontece. Poesia delicada.


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CARTA PARA A.

viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.



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MARGARIDA FERRA (1977- )

Licenciada em Comunicação. Trabalhou numa pizzaria e  no Palácio da Ajuda. Agora trabalha na Bertrand. Bummer! A segunda parte do seu livro de "abertura", "Curso Intensivo de Jardinagem", muito louvado, chama-se "Isto Não São Versos" e o segundo livro "Sorte de Principiante". Será?


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MORADA

Habitamos 
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois 
de fecharmos a porta.



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PEDRO SENA-LINO (1977-)

Vive em Berlim: fixe! Ensina escrita criativa: um insulto! Quem ensina escrita criativa devia ser proibido de escrever. Já agora, ensinar escrita criativa não é uma forma de pleonasmo? Mas gosto do poema abaixo.


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[Nollendorfplatz. Berlin lovesong]

é para ti, cidade, no teu anjo

como uma ruína morre e se torna vida. foi isto, tu comigo, nós.

não páras de te criar, cidade velha e nova, noiva. nunca chego suficientemente à tua boca, nunca te tomo todos os lábios de pedra.

começas no fim, inventas um rio, guardas o sol num quadro. queres amantes insones, que desfaçam as palavras todas contra o teu corpo. queres o seu fluído limpo, catedral, desejo absoluto. queres a fome dos loucos, que gera toda a gramática do futuro.

mas dobro-te as pernas com o meu amor, tomo-te os lugares onde nunca foste amada, bebida, desdobrada. dou-te o meu coração de sangue, se o quiseres - faz com ele uma esquina onde nunca mais um abraço de pedra e carne termine.

não te tenho nunca, e é por essa sede que me procuras, ruas. pontes onde nunca mais haja um muro que não seja invisível, arco. como são escadas as tuas águas, ó sempre grávida do futuro.

não páras de me criar, luta, amante. queres-me sempre mais além do que eu imagino ser eu. tão simples na tua natureza nua de milagre.

nas tuas ruas corre o meu sangue, nunca suficiente. só tu o bebes e ardes, música de água.

sei que nunca vamos chegar um ao outro. é por isso que quero que morramos juntos - dois tempos sobrepostos, como as galáxias amam.



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PAULO TAVARES (1977-)

A sua poesia nasceu do "Poema do Funcionário Cansado" de António Ramos Rosa. Deixou de ser funcionário, hoje ensina português. O título de um livro seu chama-se "Linhas de Hartmann", uma dura ironia talvez... e voltemos a Berlim.


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EM BERLIM, O INVERNO

Em Berlim o inverno dura sete
ou oito meses, e dizes que a cidade,
ainda um pouco porvinciana nos
seus tiques bipolares, vive e brilha
para os meses de verão. no centro,
os corvos propagam-se em redor
de catedral - e por esta altura,
na cidade materna, são os pombos
e alguns melros que se aglomeram
nas praças e nos jardins quase desertos,
como uma praga de pássaros um pouco
mais silenciosos, dizes que é impossível
um bater de asas no exílio, ou tirar
uma fotografia sorridente junto ao muro
de berlim. e no entanto, vendo-as
mais de perto, com a democrática
garantia de que nenhum monumento
se abate duas vezes sobre um corpo,
todas as caras sorriem para a objectiva.



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MARTA CHAVES (1978-)

Dona de um site, parece ser uma psicóloga exultante. Tenho dúvidas, pois as unanimidades... Diz que "vive por causa do amor". Certo... a rever. É que para além do amor e da alegria, ele há mais coisas.


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Estamos quase de viagem
para chegar aos pretextos
com que ordenar o real.

Aos nossos olhos a vida
arriscando-se numa curva
que fazemos inteira
sem perder a mão.

A minha fé aumenta
à medida que perco os medos
e ganho aos pequenos deuses
do dia-a-dia.

Disse-te isto e compreenderás
que o mistério que me cerca
vai sendo este modo discreto
de gostar de ti.

Imagino para o caminho,
a tonalidade desta aurora,
e nos teus ombros estreitos vejo
- troçando de mim - 
a alegria.



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JOSÉ LUÍS COSTA (1978- )

Será tradutor no Parlamento Europeu. Portanto de duas coisas nele gosto: sabe grego e promoveu uma leitura pública de António Gedeão. Diz que preferia, adolescente, ler a poesia na rua, no Terreiro do Paço. E chovendo? Ah, as arcadas...


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ACROBATA
Antes do primeiro passo, lembra a fartura da rede dos tempos de aprendiz: Estepe de Almofadas, Oceano Salvífico. Vinho que não bebeu: nunca caiu. Hoje, nada a salvaria. A cidade veio toda. Se mar há que a submerja, é o do apetite da cidade para quedas, quebras, feras – lajes de granito querendo o seu cristão.

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VASCO GATO (1978- )
Traduz. Tem a poesia reunida da nova colecção Plural da INCM. Descende, dizem, de Herberto Helder.

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17

Estás no meu pensamento como a flecha no flanco vivo da presa.
Porque tu sabes que o homem é uma pirâmide onde dorme um animal raro. Sabes que há uma aliança secreta entre a carne e o violino de Deus.
Que a morte embebeda.



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JOÃO MIGUEL HENRIQUES (1978- )
Tens sorte, João Miguel, porque ultimamente eu e os benfiquistas...


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ROTEIRO

lestos, farejantes
avançando na tua pegada
bordejamos o rio
na conquista do vale

levamos o vento pelo braço
a erva alta junto ao flanco
seguimos-te o passo

contornamos penedos
por entre saltos de lebre
sobre largos troncos caídos

subimos contigo uma colina
suspeitando à nossa ilharga
o ocaso sereno do dia

e a um vislumbre de oliveiras
suspendes o andamento

levas o lenço à testa
e voltas a face
com os lábios em sangue:

"estamos perto"




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GOLGONA ANGHEL (1979- )

"Antes que instalar-se num lugar, a tarefa é tentar sair." Assim o site das Quintas de Leitura apresentava a poeta no início deste ano. Romena radicada em Portugal desde o século passado, impregnada no país e no seu pathos, escreve num português impecável sobre as desgraças de todos os dias, misturando um certo namedropping cultural com brutalidades várias, não lembrando Fátima Maldonado porque as turbinas não aquecem tanto, fazendo pouco dela e de nós. Quem inventou (ou usou pela primeira vez num poema) a expressão "ridiculum vitae" é para mim uma amiga. A cabeça pequena como a Comaneci...

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Não me interessa o que
dizem os dissidentes da ditadura.
Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no Natal.
Não acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.

Não vou pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos económicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.

O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba solitária,
neste caniche de apartamento que vos fala agora?  



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RAQUEL NOBRE GUERRA (1979- )

Doutorou-se em Pessoa, não mandou ninguém ir por ela. Palavras-chave? Gatos, cozinha, onde escreve. Um lirismo desalinhado, diria eu. Tudo o que escreveu no início seguiu para a cova com a avó, numa disquette nas mãos da falecida, 2008. Se fosse hoje seria uma pen. 


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Uma vez ofereceste-me bananas
flores para ti, vinha escrito.

Percebo bem a inutilidade da poesia
como de resto a literatura que finge
a mínima desordem dos mundos
o que importa é fingir uma pose.

Explico.

O mais extremo acto de egoísmo:
ter a dimensão própria da caricatura
e endossá-la aos outros.

O que toca a afinal e a quem, que sejamos sinistros?
E o amor um candeeiro de rua frouxo que à nossa passagem se desliga.

Dou conta dos perecíveis.

De ti sabe-se que tinhas um jeito especial
de dar bailinho aos deuses com as mãos
enquanto eu de nariz espetado nesse cima
preferia o abandono onde nada me faltava.

Entendo agora que as bananas dormem com as tuas mãos debaixo da terra e que o nosso amor flutua                                                                                                                                         ainda na calcite.
O mundo, seja como for, cabe nisto.

E eu corro para casa com um bouquet de flores mas tu não estás.

Nada que não estivesse previsto,
heartbreakers, love comes in spurts.



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FILIPA LEAL (1979-)

"Nunca gostei da realidade e não pretendo gostar." É uma boa frase, dita por uma mulher que quis ser palhaço e escreveu sobre o humor em O'Neill, Jorge Sousa Braga e Adília Lopes. No Google aparecem demasiadas fotografias e ela faz demasiadas coisas, e começou a escrever demasiado cedo, e o valter hugo mãe (ou já era o Valter Hugo Mãe?) escreveu sobre ela, e o EPC, e o FJV, etc., etc, só defeitos, o amor coisinho a ser escrito por todo o lado mas gosto do poema abaixo...


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ESTÁTUA DA LIBERDADE

E ali estava - nós a atravessarmos de barco
a alegria: o pai ainda de bigode, de chapéu castanho,
a mãe de óculos e écharpe, a Marta que em breve seria mãe também
mas não sabia que transportava no útero mais um passageiro,
o Miguel, pequenino e corajoso, sempre a tentar que os pés não doessem
de tantas avenidas, e o João Pedro, tão recém-casado, tão recém-feliz,
tão quase pai também sem o saber;
nós ao sol, de costas para ela, de frente uns para os outros, pressentindo
que Nova Iorque só interessaria por ali termos estado muito juntos,
e que na passagem dos anos apenas isso importaria, apenas isso:
termos ali estado distraídos, sentadíssimos, confortáveis
como os nossos corações.
E de repente ali estava ela a imitar os montes, de um verde indecifrável,
ali estava a imitar os homens invadidos, pesada, com picos na cabeça,
de braço esticado a tentar a luz, de livro pendurado,
ali estava séria, muda, quieta,
toda feita de pausa como um susto, como se jogássemos mímica,
como se a seguir nos pregasse uma partida, um grito,
e desfizesse a pose e risse de boca muito aberta à brincadeira,
livre então dos curiosos que empunhavam câmaras como se vê-la
assim, parada e incapaz, fosse espectáculo digno de registo.

Nós a chegarmos à ilha, a desembarcarmos do alheamento,
nós do tamanho familiar, todos de cabeça ao alto na inacessível sombra,
nós a rirmos das pessoas que lhe descobríamos na cabeça,
eles literalmente à varanda da cabeça, os visitantes,
ignorando que um futuro dia de Setembro inibiria aquela subida aos céus.

E ali estava ela de nariz empinado, recusando o gesto de anfitriã:

alta e ofendida
estátua
que era preciso limpar.


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MIGUEL-MANSO (1979- )
Nascido em Santarém, infância em Almeirim, fuga para Lx. Várias profissões, várias derivas. Há aquela história de uns carimbos comprados numa loja de Gent, e que para cada carimbo o poeta começou a escrever livros de poemas. Retirado do mundo na Sertã, não tão marginal assim, disse-me a Dina da Poetria que era a revelação dos últimos anos. Habilidade para a coisa há muita, não me reata a dúvida. Entusiasmado sim e muito, entusiasmante às vezes. Às vezes faltando-lhe a "grande razão" sem a qual não vale a pena escrever. Últimamente os títulos dos livros são menos fixes. Sabedor da arte do poema longo, do vocabulário arcaico e do salto mortal, o poema abaixo é contido e certo. E muito bom.


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O TEMPO CIRCULAR

há uma fotografia de ruy belo
e há também aquela praia muito ténue de “não há morte
nem princípio”

ou há uma fotografia do meu pai numa
beira-mar de moçambique

sentado com um outro que nunca soube
quem era, óculos escuros – a mocidade

– esse outro

o meu pai olhando o mar para lá do
fotógrafo como se o fotógrafo

e
agora
quem vê a fotografia segurando-a
com a mão vindoura

como se não existissem
não existíssemos mas que fosse minha
também

aquela praia onde ruy belo
ainda não usava barba e cabelo à ruy belo
à

allen ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)
tudo gente que habitou longamente
em algum momento uma praia

uma praia

que eu sei que há e que aconteceu
também quando eu morri

quando eu também fui jovem
e poeta numa fotografia ou num reflexo

de garrafa

a minha imagem
a beira de um verão segurando

desde o peito a vida


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TIAGO PATRÍCIO (1979- )

Ora aqui temos um trasmontano (nascido no Funchal) apaixonado pela República Checa. E cheio de dinamismo, ou não fosse farmacêutico. Ele é romances, ele é teatro, ele é... o poema abaixo, o mais certo dos que lhe li. Tão só pelas duas últimas linhas.


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OS PINTASSILGOS DE MIRANDELA

Nasci numa casa com gaiolas brancas
espalhadas pelo Verão
Era o meu pai vivo e o meu avô estival
entrava pela hora mais terna
enquanto encarregado das gaiolas
e a minha infância inteira decrescia
no canto da casa dos pássaros

O alpendre era de uma inclinação natural
com avô e pássaros encostados à sombra dos álamos
e as gaiolas casas que os abrigavam
do frio, da fome e dos gatos bravos
A minha alegria era quente como a terra
e contava ensinar ao meu filho bisneto
a atracção pelos grilos, caracóis
e pintassilgos na doçura das borboletas

Em Mirandela havia um vale junto a um rio
com pomares e o cheiro de figos fáceis
Os pintassilgos divididos na abundância
eram como crianças atrás de amoras
que inspiram as flores de uma música sucessiva

O Pintassilgo é a mais bela ave silvestre
e se não pudesse manter as gaiolas em casa
era como se não houvesse onde permanecer
Eles amotinam-se nas minhas barbas
desalojam corvos e os dragões dos poemas
fazem a tarde parecer tão antiga e adormecer
como a infanta primavera em que o meu avô
era o estio e os bisnetos existiam mesmo
e os nossos olhos acariciavam os pássaros,
que é tão tarde agora para dizer aqueles que morriam
exaustos a contar os meses atrás das grades


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Um pólipo de nada! Ou a vida é para os que esperam.

À espera para um exame é como se estivéssemos à espera mesmo para um exame. Iremos passar? Esperava, na terça-feira que passou. Esperava acompanhando. Que na medicina sempre é preciso rever, comparar, comprovar. Com a minha farda de militar entrei pela porta da Gastro e perguntei alguma coisa, um estrondo atrás de mim. "Caiu, doutor?" - perguntaram-me na brincadeira. Caíra sim, um acompanhante septuagenário de uma senhora septuagenária que vinha retirar um pólipo. Desamparado mas não muito magoado estava o senhor, a não querer sentar-se: "não posso, dói-me o cu, estou assim há muito tempo, tenho umas bolhas!" "Devias ter ficado em casa, homem!", dizia a senhora, um olho que não vê, e cega por perder o protagonismo que a polipectomia lhe prometia. Em maca entrou o acompanhante para dentro antes do que a doente encartada a polipectomizar. A minha farda de militar obrigou-me a auxílio e em auxílio lá voltei a entrar. Coloquei a voz, vimos os vitais (quase) todos. Ele explicou-me: entupido uns largos dias, tomara uns medicamentos e ficara com o cú um pandeiro, não se podia sentar, uma cruz! A mulher entretanto entrara e desanimada já dizia "que não me tirem o pólipo!". O senhor tinha esgrimido a famosa password "sou diabético!" - ora glicemias bem ,um pouco hipertenso, taquicárdico, barriga penetrável. "Vai passar!" Mas a pressa no coração mantinha-se, a cara de doente não enganava, havia marosca. Dois telefonemas, convencer uma auxiliar a auxiliar, despachado o artista para a urgência. Conversa a descarregar o stress, a brincadeira, o inesperado. Apesar de tudo havia um exame por acontecer... Passaríamos? 
Ligo para a Colega e Amiga da urgência e ela diz-me "pois, com quarenta de febre!". Tínhamos visto os vitais QUASE todos! Ai esta medicina quase perfeita...

Foi operado à tarde, drenagem de abcesso poliloculado no mais íntimo do traseiro. A esposa, polipectomizada, voltou sózinha para casa de táxi. 

Quanto ao exame, passámos!