domingo, 31 de julho de 2016

A História de Portugal de Damião Peres e as Portas do Ródão.

A História de Portugal, coordenada por Damião Peres, começou a ser publicada em 1928, exactamente 800 anos após a Batalha de S.Mamede, e era claramente uma obra do regime da época, embora com ilustres colaborações como as de Jaime Cortesão. 
Li-a toda. Incluindo um curioso capítulo do 1º Volume onde Mário Vasconcelos e Sá se afadigava a explicar como a TODOS os níveis Portugal se individualizava de Espanha. Ainda sem saber o que sei hoje sobre as Raias Alentejana, Beirã e Trasmontana e as grandes parecenças das terras de cá e de lá fronteira, excluida a patine dos anos de costas voltadas, eu, nos meus, sei lá, talvez onze-doze anos, já desconfiava da coisa não ser assim tão diferente...

Um monumento natural que era muito mencionado nesse capítulo era o das Portas do Ródão, que eu hoje visitei. 
A relevância dada nascia do facto do autor opinar que ali o Tejo se fazia "nosso". Como se as Portas fossem uma fronteira natural, um obstáculo que o Tejo vencia na sua vontade para se fazer português, o rio Rio, o delta-mar interior que banhava a Capital do Império e lhe sublinhava a grandeza. Há uns quinze anos estive em Monfortinho, que fica ali perto, e a Espanha está ali à distância da travessia dum riacho que metade do ano se poderá fazer a vau. Portanto, no que diz respeito à fronteira estamos conversados. Aliás recomendo passar a fronteira de Segura para ir visitar a famosa ponte romana de Alcantara, ponte que ficava na estrada romana entre Norba Caesarina (Cáceres) e Conímbriga. Ponte que ao ser fronteiriça lhe derruiam um arco com frequência para evitar que o inimigo passasse. Quando o nosso D.Afonso V invadiu Castela fez chegar a seu rival a mensagem que passaria ao largo da famosa ponte, "pois não queria que Castela ficasse com menos aquele edifício!". Pena a Batalha de Toro...

Mas voltemos às Portas do Ródão. Ele há um muro que é a Serra das Talhadas, ou Serra de Ródão, bem visível quando a IC8 vem terminar à A23 e que o Tejo abre ao meio. Podemos adivinhar como terá sido a cachoeira há uns milhões de anos. Cachoeira que se pode ter debruçado sobre um enorme mar antigo que seria a bacia que depois acabou por secar nos Rios Sorraia-Tejo e Sado. 
No topo norte há uma torre acastelada medieval, possivelmente templária,  mas dita "do tempo dos visigodos". 

Muito giro, muito. Mas esqueçam os nacionalismos.

sábado, 30 de julho de 2016

Pier Paolo Pasolini - A Um Papa.


A UM PAPA



Poucos dias antes de morreres, a morte pousou os olhos em alguém da tua idade:

aos vinte anos tu estudavas, ele era pedreiro, tu, nobre, rico, ele um rapazote plebeu:

mas os mesmos dias douraram sobre vós a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.

Vi os seus despojos, pobre Zucchetto. Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,

e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:

durante umas horas ficou ali, sob o rodado: poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,

em silêncio: já era tarde, havia pouca gente. Um dos homens que existem para que tu existas,

um velho polícia, desbocado como todos os patifes, gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»

Depois veio uma ambulância buscá-lo: as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,

e, mais à frente, a dona de um cabaré, que o conhecia, disse a um recém-chegado

que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto. Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um

dos do teu grande rebanho romano e humano, um pobre bêbado, sem família nem leito,

que andava de noite, vivendo ao deus-dará. Tu ignoravas: como ignoravas

outros milhares e milhares de cristos como ele. Talvez seja cruel ao perguntar por que razão

a gente como Zucchetto é indigna do teu amor. Há lugares infames, onde mães e filhos

vivem na poeira antiga, na lama de outras eras. Não muito longe de onde tu viveste,

à vista da bela cúpula de San Pietro, fica um desses lugares, o Gelsomino...

Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé, entre um charco e uma fieira de prédios novos,

um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas. Bastava um gesto teu, uma palavra,

para esses teus filhos terem uma casa: nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.

Ninguém te pedia que perdoasses Markx! Uma vaga imensa que irrompe sobre milénios de vida

te separava dele, da sua religião: mas não se fala, na tua religião, de piedade?

Milhares de homens sob o teu pontificado, diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.

Tu sabias que pecar não é fazer o mal: não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.

Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste: não houve quem mais pecasse do que tu.







Pier Paolo Pasolini, in La Religione Del Mio Tempo, ed 1961

(trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo para POEMAS - Pier Paolo Pasolini, ed Assírio & Alvim, 2005)

quinta-feira, 28 de julho de 2016

A Enfermeira Alexandrina.

Havia uma dúzia de pessoas, de profissionais falo, que porque por ali estavam me diziam ser o meu o hospital certo. A Enfermeira Alexandrina reformou-se-me à sorrelfa e agora, subitamente, morreu.
Quem me resta neste meu hospital para me dar essa réstea de certeza de que trabalho no sítio certo?

N2 - A Vila Velha de Vila Real.

Vista do Marão Vila Real parece ficar num vale. Não será bem. Ou então é necessária aquela reserva mental - a do saber - para nos lembrar que bem para baixo existe num canhão um rio, com despenhadeiros de mais de cem metros de altura, ali junto ao centro da agora Cidade. Sim, que o ser Cidade em Vila Real tem menos de cem anos.
A N2 entra por Vila Real adentro e vai ter à base da Avenida Carvalho Araújo, uma espécie de Aliados com árvores. À direita a Câmara. Poucos saberão o que está para trás da Câmara Municipal de Vila Real: A cidade parece começar dali para a esquerda. Mas não.
A N2 veio a ladear o rio Corgo sem muito se aperceber dele. Recebe à sua esquerda a alta ponte de ferro que antigamente ligava à estação - hoje um monumento à saudade.
Ao contrário da antiga Chaves, Vila Real foi fundada tarde e por desígnio régio - o nome o afirma. Era precisa uma terra que fosse cabeça de casal das velhas Terras de Panóias. Vila Real  foi fundada por D.Dinis, num esporão rochoso virado a sul entre despenhadeiros, onde o Cabril se junta ao Corgo. A Vila Velha era isso, a Vila Real de antigamente, murada até ao séc. XVIII, e ocupava o estreito espaço que fica para trás da Câmara e do Liceu Camilo Castelo Branco. Hoje nada resta. Minto, há um Museu sobre e um jardim, restos das fundações das muralhas. E um passadiço que rodeia em sub-cota o esporão até começar a descer em ziguezague para os rios. Com vista para a ETAR de Vila Real que, dedicada, abraça e portanto quase tapa o Cabril. Que bem escondida está esta ETAR!





Voltemos ao Corgo: que belo desfiladeiro! Os moços de Vila Real não estarão convencidos: não há um banco no passadiço que não esteja vandalizado.

N2 - A Barragem da Falperra ou do Alvão.

O Alvão é hoje também uma espécie de marca que vende. Talvez por isso existam três barragens três que reclamam o nome de "Alvão". Já mencionei as duas que ficam no planalto cimeiro da serra. Vou agora referir a Barragem da Falperra, a poente de Vila Pouca de Aguiar, e que, recentemente optimizada, foi rebaptizada de - com o seu  entorno - Parque de Lazer da Barragem do Alvão. A barragem represa as águas dum afluente do Tâmega, o Torno. No meio da vila deixamos a N2 e depois vamos passar sob duas auto-estradas duas para encontrar à esquerda da estrada o espelho de água. A optimização foi o passeio pedestre em madeira que circunda o lago. O restaurante de apoio está aberto ou fechado segundo imponderáveis. O piquenique e o churrasco devem ser por ali as opções mais frequentes. Metade do percurso tem um coberto vegetal acompanhante muito bom. A outra metade é ao sol e em diálogo com o granito. Aqui e ali há algum empedrado




para me convidar a tomar posse de algum granito que emerge da água.

Sim, concedo, o Alvão começa aqui.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

N2 - Pedras Salgadas.

Em tempos que já lá vão Vidago e as Pedras Salgadas eram o início e o fim de um contra-relógio que era frequente na Volta a Portugal. A estrada sobe de Vidago para as Pedras. Era selectivo. 

As Pedras Salgadas tornaram-se famosas antes de Vidago. D.Carlos estanciava no Hotel de Avelames, um hotel fundado em 1896 e de que hoje não resta pedra sobre pedra. O comboio chegou em 1907, o Casino em 1910, embora nunca legalizado pela República. O parque está recuperado, é extenso, rugoso, e contem as requintadas "casas na árvore" que ganharam prémios bem como as as outras que estão no chão. É confuso, pois se não tens dinheiro para uma das "na árvore" vais ficar nas "terminações"? A sério, as casas "de cima" são giras, caras, claro! O parque é visitável pelo público, ainda. Ao contrário de Vidago, na prática hoje não há mais onde ficar nas Pedras. Pena o Avelames ter ido abaixo.

Pedras Salgadas fica no concelho de Vila Pouca de Aguiar, freguesia de Bornes de Aguiar, num planalto que liga o que resta do Alvão à Serra da Padrela. Um nativo de Chaves não bebe Água das Pedras, sim Água de Vidago, por uma questão de patriotismo.

Hoje em dia as Águas das Pedras e as Águas de Vidago pertencem à mesma empresa, a Unicer. Foda-se: como pode haver competição. Pedir uma "Água das Pedras" já não é a mesma coisa. Esqueci-me de dizer que em Vidago existe também a Marca Campilho, da Nestlé. Agora que penso, um nativo de Chaves bebia Vidago Salus...




Antigamente a linha do Corgo fornecia um apeadeiro a cada balneário de Vidago, aos três, por ordem sul-norte: Salus, Vidago, Campilho. Em Vidago substitem as ruínas de velhos hotéis. Nas Pedras não.

No extremo norte do Parque das Pedras Salgadas um belo edifício existe encimado pela palavra que se repete: "Garage". Isso é que foram tempos!


N2 - Vidago.

É uma esplanada virada para um parque. Uma água de Vidago. Um verde glorioso, o som de água. A perfeição de um hotel criado por um rei para a realeza e eis que.

Vidago era antigamente um simples lugar da freguesia de Arcossó do concelho de Chaves. Mereceu porém uma atenção especial do Rei D.Carlos que em Vidago mandou construir um Hotel de luxo para nele poder receber a realeza europeia. Suprema ironia, o Hotel foi inaugurado em seis de Outubro de… 1910, na primeira manhã republicana do país. O pai do Rei D.Carlos, D. Luís, frequentara a estância termal. A sorte de Vidago tem variado ao longo dos anos. Recebeu o comboio em 1910 mas já o perdeu. Toda uma região, aliás. A sua sorte flutuou a par e em rivalidade com as Pedras Salgadas. O Casino era nas Pedras e nunca foi legalizado embora, enfim, funcionasse. Hoje está em Chaves, cidade.

O Hotel reabriu em 2010, ainda mais luxuoso. O parque das termas pertence-lhe mas (ainda) é visitável pelo pobre público. Com um módico consumo pode aceder-se à esplanada do bar e fazer de conta que chegámos dias antes de Baden-Baden ou de St. Moritz. Mesmo quando relampeja e uma faísca acerta no para-raios do Hotel e estilhaça uma lâmpada na esquina da esplanada, num curto-circuito de fracções de segundo. Uma coisa assim acontece e sentimos que alguém faltou ao respeito à nossa resplandecente e melancólica figura, a beber um sumo ou uma água de Vidago numa esplanada virada para um parque que é verde e fornece aquele eterno som de água, água dominada, água muito diferente da que caiu depois, em golfadas, do zangado céu.



domingo, 24 de julho de 2016

N2 - Chaves e a Ilha do Cavaleiro.

Já escrevi tanto sobre Chaves que me é difícil inovar. Esforçemo-nos. Dando umas voltas no centro antigo de Chaves a dado momento encontra-se um letreiro que aponta para a direita e que diz "Ilha do Cavaleiro". O que é hoje um restaurante e sítio para copos e uns petiscos era até há poucos anos uma abandonada ilha, aparentemente a única documentada em Chaves, chamada "do cavaleiro" por, conta uma antiga tradição", determinado cavaleiro apaixonado ter tentado saltar a muralha com o seu cavalo e ter ficado dependurado ou "ilhado", mais seu cavalo. Umas moças bem dispostas safaram-no da aventura.
É a Ilha do Cavaleiro intra-muros e tem uma fantástica vista da esplanada sobre as serranias em frente - a do Brunheiro e o topo norte da Pradela. Come-se bem, bebe-se bem, o ambiente é do melhor. 


sábado, 23 de julho de 2016

A N2 e o que está antes: Verín.

A Nacional 2 (N2) está na moda. Vai ser a nossa Route 66. Começa em Chaves e termina em Faro. Percorre o País pelo meio sempre, sempre.
Começa em Chaves? Sim, mais precisamente na Madalena, que é Chaves do outro lado do rio Tâmega, a Este, uma extensão do burgo com características antiga e e um jardim romântico que hoje foi muito e bem alargado. As primeiras centenas de metros da N2 é conhecida localmente como a Recta do Raio X - e  nunca consegui apurar porquê. No cruzamento original se virarmos as costas à N2 o caminho é Espanha. Em trinta km estamos em Verín. 


Vou esquecer que a primeira localidade galega que se nos apresenta depois da fronteira - que eu passei quando ainda fronteira era - chama-se Santa Maria de Feces de Abaixo, banhada pelo rio de Feces. Verín fica num entroncamento de estradas, aquele onde a "Estrada de Chaves" desemboca na N-525, que liga Santiago e Ourense a Sanabria e Benavente. Hoje em dia há cómodas auto-estradas que replicam este entroncamento. 
Verín e Chaves formam uma "Euro-Cidade", mas não são aquilo que se possa chamar cidades-irmãs. Verín é bem mais pequena, uma vila-de-estrada, centro de uma veiga farta e ampla essa sim irmã da de Chaves. Enquanto Chaves tem um castelo no centro da povoação, castelo que nunca foi moradia de grandes senhores mas sim e só guarda de fronteira, Verín não tem castelo. Como assim, perguntarão? Tem Monterrei, povoação ali ao lado que, num alto cabeço tem muralha, castelo e palácio dos senhores de Monterrei, uns dos grandes da Galiza. O cabeço acastelado domina a veiga de Verín. Na encosta está o Parador de Verín - uma pseudo-residência senhorial edificada nos anos sessenta que tem as vistas do castelo mas que não é bonita. Talvez por isso já ameaçou fechar. Monterrei dá o nome a um vinho local com DO - não tenho opinião sobre. 
Verín tem na Praza Garcia Barbón o seu centro cívico, uma praça galega típica, com casas antigas com galerias no piso de cima e soportales para proteger da chuva. Há espaços no centro histórico de Chaves muito parecidos mas com outro relevo, havendo ruas que sobem e descem e se cruzam: Verín é plana e não tem densidade para ter um centro antigo como Chaves tem. Chaves consegue ter casas antigas dignas de uma cidade e de uma vila e de uma aldeia. A umas dezenas de metros da Praza Garcia Barzón o Tâmega passa prazenteiro, metade do largo que vai ser em Chaves. À volta de Verín são engarrafadas três águas: Cabreiroá, Fontenova e Sousas. A Cabreiroá tem as garrafas mais bonitas. Em Verín começa a falha tectónica que se prolonga até Penacova, em Coimbra, e que fornece todo um manancial de fontes termais, a começar por estas e a terminar no Luso, passando pelas Pedras Salgadas e pelas arruinadas Caldas do Moledo, por ex. O castelo de Monterei terá sido mandado construir por D.Afonso Henriques. A fronteira aqui então era bastante móvel. 
Na Praza Garcia Barzón come-se bem debaixo dos soportales.

Mais? Trinta quilómetros para sul começa a portuguesa N2.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Semestre - um balanço.

É habitual balançar o acontecido. Vamos aos primeiros seis meses:

Revisão da filmografia de Moretti.

Giorgio Griffa - Serralves.

Salzedas, Ucanha, Tarouca.

Projecto Tati - ACE

Tati no Jardim. - ACE, Serralves em Festa.

Ler 'The Age of Inocence'.

A neve no planalto da Serra da Freita.

Revisão da filmografia de Tati.

Campo Benfeito e a Gralheira - o teatro, a comida e o mais.

EN 304, de Campeã até Ermelo.

Samuel Úria - Casa da Música.

domingo, 17 de julho de 2016

Regoufe não existe.

Regoufe não existe, portanto, é um sítio que vale a pena visitar. Mas cuidado... pode querer lá ficar a viver...

De Regoufe partem dois caminhos que são objectivos: o PR13 para Covelo de Paivó e o PR14 para Drave. Bom pretexto para, de carro, ir fazer um reconhecimento da base de partida. Arouca, Arouca, Arouca. Arouca de Baixo é a mais acessível Serra da Freita. Arouca de Cima é o Montemuro que fica para lá do Paiva, esse rio imerso em eucaliptais e gente que quer dizer que já passou nos passadiços. Arouca do Meio é a Serra da Arada e o rio Paivó, mais difícil de lá chegar. O caminho é sempre o mesmo, direcção Arouca, pouco antes derivar para Moldes, procurar  a ponte que passa o Paivó na Celadinha de Moldes. Depois é subir a Serra da Arada, sentido S.Pedro do Sul, até encontrar um desvio que diga "Regoufe". As serranias de Arouca estão eucaliptadas ou despidas. Escuso de dizer o que prefiro. Pouco depois de começar a ascenção os eucaliptos acabaram. Os vales cortados mostram pequenas aldeias logo ali abaixo - Silveiras, por ex. Hora e meia depois da partida começamos a descer para Regoufe. O carro ficou à porta das Minas. Sim, porque aqui há as ruínas de umas antigas minas de volfrâmio, bem visíveis. Regoufe lembrou-me a idade que tenho, também porque é terra de muito descer -  e subir. A pergunta que se faz ao entrar numa aldeia destas é "se está viva!". Os milheirais com irrigação automática ao fundo no vale e uma pequena oficina de reparação de automóveis - com a sua típica anarquia - á esquerda quem desce, disseram-me que sim. Apitando, o padeiro vinha distribuindo o pão - ao Domingo! Desço e desço e desço. Casas há de várias qualidades e idades e harmonias. Não interessa. Rodo para a esquerda e uma latada atravessa a calçada de pedra antiga onde galinhas penicam por entre a palha. Outra latada abaixo para a direita cobre outra rua onde patos procuram destino. Habitantes da aldeia - ou familiares de visita voltam do campo. Abstenho-me da fotografia e penso: "isto não existe". Há o som de água, há as casas, a latada, os animais, as vozes da gente. A tarde termina, nada está errado, o calor cede finalmente. Não estava previsto que Regoufe fosse assim, que fosse tudo isto. Atrás de mim um pequeno rebanho de cabras volta para casa literalmente trepando os pedregulhos que entraremos a aldeia. Numa varanda ali cima uma jovem atende um telemóvel. O padeiro volta a apitar, a rega ouve-se como um insecto que não para. Em frente a uma capela um terreiro cimentado para as festas que as haverá, cobre por alto o ribeiro da aldeia. Não importa. Os letreiros logo ali dizem que estou no km zero dos tais percursos que um dia farei. Há que subir, há que subir. Entro num café. O padeiro toma um copo de branco e peço uma água fresca à dona, completamente desprovida dos incisivos de cima. Um dia faremos o estudo de como a perda dos dentes pode contar alguma coisa sobre a história de alguém. O padeiro mete conversa: "Então um rapaz da minha idade mata a sede com água?" Regoufe a lembrar-me a idade que tenho. O Sr. Alfredo é padeiro em Reriz, Castro Daire - do outro lado da montanha portanto. Foi comando em Angola e só quando me questionou se "eu tinha lá estado" percebeu que eu era - um pouco - mais novo. Perguntou-me o que era uma guerra certa e uma guerra errada e eu não lhe soube responder. Disse que a diplomacia devia resolver tudo e assim não haveria mais guerras. Acabaria por se despedir de mim definindo-se como o "tolo de Reriz". Olhe que não, sr. Alfredo. Uma vez mataram cinco mercenários, cinco. Ele ficou de guarda  a um deles toda a noite: "ele era mercenário, não era angolano, pois nunca falou, nunca disse nada, eu perguntava-lhe "onde é o teu quartel, doi-te alguma coisa" e nada, só disse de onde era no último suspiro". Não havia médico nem enfermeiros, nem para os nossos quanto mais, uma injecções e umas pastilhas para as dores, "eu nem gosto muito de lembrar isto" - no fim enterraram-se os cinco, eles não os enterraram, que eram comandos, veio a outra tropa enterrá-los, a cabeça de fora - não por maldade mas sim para que depois alguém os identificasse e soubesse, morreu o "x", o "y". "Deixa o homem ir, que ainda vai para o Porto", dizia a mulher sem incisivos de cima, e ele deixou, quis comprar-lhe dois pães para viagem, ofereceu-me três, o Sr.Alfredo, o padeiro "tolo" de Reriz. Podia ter-me dado boleia até ao meu carro, isso sim. O Sr. Alfredo contou-me ainda outra história que a internet depois me confirmou; as minas de Regoufe foram exploradas pelos ingleses, enquanto outras minas muito perto - as de Rio de Frades - eram exploradas pelos alemães. Parte da estrada que acedia às duas  minas era, naquele tempo, comum, pelo que os que eram inimigos na Guerra em curso, dividiam sem mais os custos da manutenção da estrada. E pronto! Sr. Alfredo, um abraço! 
Ao voltar à estrada de cima e ao entroncamento que nos pretende devolver ao destino, veio a curiosidade adicional de ir espreitar o Portal do Inferno, uma passagem estreita asfaltada que faz a ponte, parece-me, entre a Serrra da Arada e  a Serra de S.Macário, os distritos de Aveiro e de Viseu. Para sul o rio Paivó, para norte Covas do Monte. 
A volta foi feita exactamente pelo mesmo caminho. Uma chamada de atenção para Celadinha de Moldes: tem um bairro empinado no monte de uma dúzia e meia de casas quase a cair sobre o rio Paivó, bairrro para onde se entra só por um ou dois quelhos. Na estrada nacional os carros estacionados de toda a gente: compreende-se, onde os iam pôr?
 

Uma sugestão: a M537.

A Avis Rent a Car considerou a N222 a melhor estrada para conduzir do mundo, à frente da "Big Sur" da Califórnia. Em Portugal já o sabíamos e a N222 é mais conhecida como "aquela fantástica estrada para o Pinhão". Pedem-se porém várias correcções: primeiro, a N222 começa em Vila Nova de Gaia e demora um bocado a, por entre casas dispersas e eucaliptais, ganhar o Douro. Quando o encontra acompanha-o do alto, só se aproximando da margem junto à Régua. A "estrada premiada" só começa aqui e segue até ao Pinhão, mas a N222 nâo, desiste do Pinhão, meia dúzia de kms antes,  logo passada a foz do afluente chamado rio Torto (ele há tantos), mete para dentro e para cima até S.João da Pesqueira, indo acabar longe, para lá do Côa, em Almendra. 
Sugiro hoje uma alternativa. Comecemos em S.Martinho de Mouros. Subir à igreja, perceber onde estamos: o Douro lá em baixo, as Meadas atrás de nós, o Bestança a trazer as águas do Montemuro para o Grande Rio as levar até ao mar. Seguimos para este na N222 e, passados poucos kms, num gancho para a esquerda guinamos ainda mais num exagero para uma estreita estrada - a M537. Estamos a entrar no Alto Douro Vinhateiro, avisam-nos. A estrada desce e desce, o Rio começa a ficar próximo, do outro lado a estrada irmã da N222, a N108 também optou por se aproximar do rio, idem a linha férrea. E é isto, está ali o  Rio. A vinha começa a tomar conta de tudo dum e do outro lado, e o espanto não cessa. Como etcéteras o parque semi-arruinado das Caldas do Moledo, as termas d'A Ferreirinha, e as vicissitudes, apeadeiros e estações, pontes e túneis, da linha do Douro. Depois da Curvaceira, lugar que - só, apenas - me soa a vinho não me lembro porquê, a M537 despede-se do rio, sobe, sobe, até se encontrar com a N222 e o nó de estradas que antecede a ponte para a Régua, ou a descida... para "aquela fantástica estrada para o Pinhão".
Viver é acrescentar.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O Douro antes do Douro: S.Martinho de Mouros.

S.Martinho de Mouros pertence ao concelho de Resende, o vinho é Verde, a maior indústria a cereja. Abaixo está o Douro para onde o Bestança corre rapidinho. Atrás de mim, lá em cima, as Meadas, um resto do Montemuro que segue até Lamego a esconder o Douro das Beiras, um resto de montanha que ultrapassa os 1100 m. 
E, a presidir a tudo isto, uma pequena igreja fortificada, um monolito românico virado para o rio, um achado arquitectónico criado no princípio da Nacionalidade. Não entrei, fechada que estava. É dito que transposta a porta a grossura da entrada suporta um esboço de três naves que rapidamente se resolve terminando num par adicional e isolado de colunas, uma originalidade. Fotografias antigas mostram casas adossadas à igreja, diminuindo a monumentalidade que agora se apresenta. Ou humanizando, sei lá. Por cima a Lua, crescente, o Tempo.