quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O Belmiro e o Zé Pedro.

Morreram com o intervalo de um dia e tinham dezoito anos de diferença de idade. São ambos, "à sua maneira", figuras que definiram Portugal quando este se fez como é hoje, sem remédio, ou seja, nos anos oitenta.
Começo pelo Zé Pedro. A cara mais bonita, mais new wave do que punk, dos Xutos, durante uns tempos o parceiro de vida da minha voz preferida desses tempos (a Xana dos Rádio Macau), a cara e o corpo esgalhado do Zé Pedro caucionaram uma música que de revolucionária ou brilhante teve pouco mas que forneceu num par de discos meia dúzia de hinos para os nascidos depois do 25 de Abril. Quem como eu teve que aguentar um comboio suburbano de adolescentes, que iam espalhar hormonas de fim-de-semana ao Porto, a cantar em coro Xutos E Bryan Adams entende o que eu quero dizer. Um verdadeiro cavalheiro, boa gente, dizem. Sim, mas disso tenho eu tido na minha consulta em subida dose. Zé Pedro, um abraço, pá. Foge do panteão, meu. 
Quanto a Belmiro de Azevedo, o herdeiro de Afonso Pinto de Magalhães que era o "banqueiro do povo" (do Norte?), Belmiro não era banqueiro nem nunca se preocupou com o povo. Era... engenheiro. Inventou o Continente - onde com os nossos baixos salários vamos comprar promoções que nos são vendidas por assalariados que ganham ainda menos do que nós. Percebeu que o futuro era o consumo e o resto é história. Agradeço-lhe o Público e por aí me fico. Que se levantava cedo? Eu também e dois terços de Portugal. Não me consta que frequentasse o metro ou um cacilheiro. Aproveitou a estadia de Pinto de Magalhães - discute-se a lisura - no Brasil e tornou-se imprescindível na Sonae. Criticou querer a família do mesmo suceder-lhe mas o seu sucessor é seu herdeiro e chama-se Paulo de Azevedo. É o filho. Eu de Marco de Canavezes ainda prefiro a Carmen Miranda.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Blade Runner 2049



Vi este filme quase duas vezes. A primeira na net, numa gravação pirata com malta a levantar-se a meioà frente do telemóvel que gravava e um som fatela. Eu próprio adormeci uns dez minutos. A segunda no Arrábida. Da primeira vez - onde adormeci por puro cansaço de noite prévia e não desinteresse pelo filme - fiquei entusiasmado com o argumento, parecendo-me interessantíssima a relação Harrison Ford - Ryan Gosling, onde, pareceu-me, o pai sacrificava um filho para salvar uma filha. Depois percebi que os dez minutos em que eu adormecera eram não só efectivamente importantes para o todo mas serviam para desmentir a minha hipótese de história: Gosling não é filho de Ford. O filme é muito bonito, vai buscar "n" coisas ao original de Ridley Scott e bem - até uma banda sonora Vangelis-like. Ford parece sempre estar a participar num filme alternativo pela sua forma de actuar tão à velho Indiana Jones, o que tem a sua lógica, sendo ele um anacronismo no ano 2049, ou seja, funciona. O achado maior é Gosling. Finalmente percebi o que me causava desconforto na sua prestação em La La Land: ele não é humano. A cara de Ryan Gosling tem uma amplitude expressiva muito curta e Villeneuve usa esta limitação como o maior trunfo para acompanharmos o caminho deste Blade Runner desde a sua mera função mecânica inicial até ao livre-arbítrio dos últimos minutos. Este percurso de libertação, criado à volta da esperança equivocada - dele e minha - em ser filho de alguém, é a matriz do filme, bem mais real e importante do que o milagre de haver uma replicant que nasceu de uma replicant. 
Dizem que o filme foi um fracasso de bilheteira. Compreendo. Não é Marvel, ergo... Mas, não sendo uma obra-prima, é o filme de SF mais interessante que eu vejo desde...  Arrival, também de Denis Villeneuve! Ergo... Um regalo para a vista, uma rede de mistérios bem urdida, uma actualização dos tempos capaz, LA defendida por mega-barragens de um mar subido pelo aquecimento global. Agora já sabemos porque toda a gente foge para as colónias exteriores...

PS.: a cena de sexo, que eu não vi da primeira vez, é algo parvita. Mas preocupa-me o futuro do amor, cada vez tão mais virtual.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Outros doze poemas.

Os nomes que se seguem forneceram ao corpus da poesia portuguesa do século XX uma certeza de qualidade superlativa para além do Orpheu - e Nemésio. O grosso da produção veio dos Cadernos de Poesia e da "revolução surrealista". Outros já entraram pelos anos 50 adentro. Estamos também a falar de poetas que se notabilizaram pela atenção dada à poesia europeia, quer pelo diálogo de estilo quer pela prática iterada da tradução, vidé Sena, cujo objectivo, para além do jogo próprio era o de iluminar a paróquia. Agradecido.



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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1919-2004)

Não é fácil ser original ao comentar a obra de Sophia. Sou obrigado a falar da sobriedade e do classicismo da escrita. De tudo o que foi bebido dos clássicos. Dos temas-chave, a noite, o mar, o tempo, a liberdade. Teve também uma intervenção activa desde nova na oposição católica ao regime de Salazar (quem se lembra da Cantata para a Paz cantada pelo padre Francisco Fanhais?) e foi deputada do PS depois do 25 de Abril e muito antes de Sócrates. Tem um filho chamado Miguel. A sua poesia, resumindo, foi algo de único e irrepetido. 


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MARINHEIRO REAL


Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.



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JORGE DE SENA (1919-1978)

Que no mesmo ano tenham nascido dois gigantes deu-nos carta de alforria para o século. Sena foi homem de ódios, muitos, mas não de paixões: a sua análise dos mais variados autores de poesia criando referência, o padrão, por correcta. Tarda a reedição das Líricas Portuguesas, 3º Volume. Sena exilou-se primeiro no Brasil - onde é venerado - e depois nos Estados Unidos, donde não saiu, nem depois do 25 de Abril. Ele lá sabia. A sua morte relativamente precoce poupou-o à desilusão. O seu diálogo, ambição pouca, mais que com Pessoa, foi com Camões. Grandes poemas escreveu um sem fim. O que se segue gosto de pensar que, em sagrada antecipação, o escreveu para mim.


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EM CRETA COM O MINOTAURO.


I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.


III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.


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RAUL DE CARVALHO (1920-1984)

Um avatar na poesia portuguesa, comunista e homossexual assumido, talvez a alínea dois tenha impedido que a alínea um o qualificasse para herói da classe operária, pois sabemos como o PCP não vai muito bem com as minorias, ou ia. Poesia escrita, parece, ao correr da pena, mais do que a clássica edição completa da Caminho uma atologia bem feita era benvinda. Não consigo escapar ao seu poema-bandeira - poema que, também porque longo, considero o melhor para ser lido alto na poesia portuguesa do século XX. Ouçam Mário Viegas. Escrito só este poema e Raul Carvalho seria homem para panteão, com ou sem jantares. Morreu no meu hospital, o que acontece a demasiada gente.


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SERENIDADE ÉS MINHA.



dedicado a Fernando Pessoa

Vem, serenidade!

Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humanidade das bocas.

Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os montros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

Vem serenidade,
com o país veloz e viginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

Vem, serenidade,
com a paz e a guerra
derrubar as selvagens
florestas do instinto.

Vem, e levanta
palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.

Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas,
serena espécie de contentamento,
surpresa, plenitude.

Vem dos prédios sem almas e sem luzes,
dos números irreais de todas as semanas,
dos caixeiros sem cor e sem família,
das flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a chegada da força e da vertigem.

Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões
a cruz dos crimes sem cadeia,
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.
Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,
para junto das campas dos jovens que morreram,
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.

Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços,
grande serenidade!

E põe teus pés na terra,
e deixa que outras vozes
se comovam contigo
no Outono, no Inverno,
no Verão, na Primavera.

Vem, serenidade,
para que não se fale
nem de paz nem de guerra nem de Deus,
porque foi tudo junto
e guardado e levado
para a casa dos homens.

Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as núvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.

Vem com as meretrizes que chamam da janela,
volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,
desta roupa de imagens que me cobre
corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela,
do hálito, da fome, da doença, do crime,
com que dou vida e morte
a mim próprio e aos outros.

Vem serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.

Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mâe,
mais húmida que a pele marítima da cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais livre que uma ave em seu voo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

Vem serenidade,
para perto de mim e para nunca.

… … ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … …

De manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam por dentro da lisa e sonolenta
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais um postal da esperança enigmática,
quando os tacões furados pelos relógios podres,
pelas tardes por trás das grades e dos muros,
pelas convencionais visitas aos enfermos,
formam, em densos ângulos de humano desespero,
uma núvem que aumenta a vâ periferia
que rodeia a cidade,
é então que eu peço como quem pede amor:
Vem serenidade!
Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!

Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,
o riso que não é da boca nem dos dentes
mas que se espalha, inteiro,
num corpo alucinado de bandeira.

Vem serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gás
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes, 
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagon de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.
A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços,
crianças criminosas fugidas à polícia,
moços contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados políticos que vão
em busca da perdida liberdade.
Vem, serenidade
e leva-me contigo.



Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem
os frutos e a justiça.



Serenidade, eu rezo:
Acorda minha mãe quando ela dorme,
quando ela tem no rosto a solidão completa
de quem passou a noite perguntando por mim,
de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem serenidade
e absolve os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.

E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da Índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.
E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caoss e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente
Serenidade, és minha.


 

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NATÉRCIA FREIRE (1920-2004)

Natércia Freire, um ano mais novo do que Sophia, é dona de uma poesia mais terrena mas que podemos fazer mais próxima de nós. Não percebo o seu quase anonimato. Assim tão ricos somos? Ou faltou a esta mulher ter erguido o punho revolucionário?


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NÃO


Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir em paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias.
Que penetraram no espaço.
De eventos primaveris.
E dar as mãos aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.



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CARLOS DE OLIVEIRA (1921-1981)

O melhor poeta a sair das fileiras do neo-realismo, começou a publicar reveladoramente na colecção "Novo  Cancioneiro" mas em 1960 com o livro "Cantata" actualizou fortemente forma e conteúdo. A sua obra em prosa é também muito importante. Outro homem do partido, o volume único das obras completas da Caminho é um must, pela qualidade que se encontra sob aquela capinha bojuda azul. Os poemas dos últimos anos pesquizam. Mas mais do que as palavras procuram outra coisa.


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V


No ritmo cardíaco
o desdobramento do primeiro
ruído não se acentuou;
mas como tudo pulsa,
o cansaço geral; a erosão;
prossegue ao ritmo da noite;
cada vez mais lento, o ar
desce nos brônquios; este
poema sufocado
respira apenas as sílabas
precisas; digitalis;
digital: o dedo aponta
o coração; a ponta do estilete
apoiada no peito;
ou o cano ósseo do revólver;
acentuou-se, claro; mas,
no meio céu, a lua sobe
sem desdobrar o seu ruído.



 
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EUGÉNO DE ANDRADE (1923-2005)

Natural do concelho do Fundão, viveu a maior parte da sua vida por obrigação profissional no Porto, onde veio a falecer. Os primeiros poemas foram mostrados a António Botto. Vítima de alguma forma do enorme sucesso do seu livro "As Mãos e Os Frutos", de 1948, é enorme a tentação de antologiar desse livro. Mas não, Eugénio de Andrade tem a originalidade adicional de dialogar com a poesia espanhola contemporânea. A aura que ganhou nos últimos anos justificou um livro belíssimo de poemas que saiu na Modo de Ler, dedicado à sua cuidadora. Sinal dos tempos que a obra poética tenha viajado para a Assírio & Alvim.


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Cala-te, a luz arde entre os lábios

e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca, 
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca, 
também, a terra morre.



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MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS (1923-2006)


Grande parte do Olimpo da nossa poesia nasceu realmente por estes tempos. Cesariny foi efectivamente, entre Lisboa e Paris, a coluna vertebral ou, como Sena lhe chamou o "corifeu ortodoxo" do surrealismo português. Mais consensual como poeta do que como gente, com apresentações semanais ao Limoeiro por uma condenação por atentado ao pudor, a verdade é que produziu durante duas a três décadas obra maiúscula que merece ser lida toda e não aos pulos, como infelizmente sugere o livro "Os Poemas Maiores" da Assírio & Alvim. Idem a sua exploração pela mesma editora via Poemário, Fraldário, Anuário e Culinário, pouco depois da sua morte, pareceu-me obscena. O ódio de Cesariny a Pessoa resultou no livro "O Virgem Negra". O seu amor por Pascoaes no bonito livro "Aforismos". A ver a "Autografia", documentário de Miguel Gonçalves. A ouvir a sua inimitável voz a ler a sua poesia. O resto é... paisagem lisboeta. 
PS.: para quando a sua pintura em Serralves?


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hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros


ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir


preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado


Sem Jeito para o Negócio




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NATÁLIA CORREIA (1923-1993)

Açoriana de S.Miguel, o mito da figura que dominou a noite literária lisboeta já ultrapassou em muito o interesse, hoje não muito grande, pela sua poesia. Excessiva esta, torna-se difícil de ultrapassar nela um prazer lexical que pode atrapalhar o fluir da linha poética. Posto isto, nada que uma boa antologia não resolva. A consultar obrigatoriamente as suas Antologias da Poesia Erótica e Satírica (associação mais do que lógica) e do Surrealismo na Poesia Portuguesa. Foi a editora das famosas "Novas Cartas Portuguesas". Não consigo fugir ao "Auto-Retrato" que faz lombada na sua Antologia Poética publicada pela D.Quixote.


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AUTO-RETRATO



Espáduas brancas palpitantes:

asas num exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.



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ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA (1923-2010)

Deve-se a Joaquim Manuel Magalhães a reablilitação deste poeta, do lado errado da barricada antes do 25 de Abril. Nos anos 60 a intelectualidade do regime ensaiou uma revista literária chamada "Tempo Presente", onde Couto Viana colaborou e era presença assídua. Aparecia lá por casa. A sua forma tradicional não é tradicionalista, atenção.


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INTERIOR



Por trás dos muros da nossa casa

Estamos tão juntos que nos tocamos.
O vento é brisa e a brisa é asa.
Por trás dos muros da nossa casa
Todos os frutos ficam nos ramos.

Vivamos pois, dentro de nós,

Deixando aos outros o gosto e a voz.



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ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013)

Publicou tarde mas cedo começou a colaborar na revista Árvore. De início perto do neorrealismo, rapidamente se encaminhou para outros lados, em busca de uma poesia mais poesia, e esteve bastante em sintonia com os caminhos poéticos dos anos sessenta portugueses. A reacção quase violenta que houve contra estes caminhos fez com que Ramos Rosa passasse a ser um nome que se propunha para o Nobel mas de leitura pouco frequente. O poeta também não facilitava, publicando compulsiva e anualmente. As Líricas Portuguesas, 4ª Série são de sua "escolha" e comentário. O poema abaixo ainda ressoa a neorrealismo mas é bem melhor.



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O BOI DA PACIÊNCIA


Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!
Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina 
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?
Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros.Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo
recomeçar 
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:Dêem árvores para um novo 
recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me limpe o sangue!
Recomeçar!
Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas 
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças 
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele
Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como perservar este amor
ostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve 
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão

A
 tua marcha lenta enerva-me e satura-me

As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!




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ALEXANDRE O'NEILL (1924-1986)


Alexandre O'Neill forneceu a costela cómica a nosso surrealismo. Cómica no entido de irónica, sarcástica. O'Neill alterna um lirismo melanvólicoe sincero com um humor de facas afiadas. Ainda o conheci na Cornélia com o Solnado. Em má hora a esposa do José Manuel Durão Barroso dedicou ao marido um dos melhores poemas do O'Neill, ainda por cima em público!


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A MEU FAVOR



A meu favor

Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor

As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.



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SEBASTIÃO DA GAMA (1924-1952)

Conheço Sebastião da Gama, confesso, do cantinho literário da revista Modas e Bordados que a minha mãe comprava. E só este reparo já explica um pouco o problema com este poeta. Com uma popularidade enorme em tempos idos, agravada pela morte precoce por tuberculose e alicerçada numa poesia "fácil" de recorte tradicional, inteligível, a verdade é que não se lhe pode negar qualidade e altura, buscando. A sua serra foi a Arrábida e o seu mote o saber que ia morrer novo. Não consigo fugir ao seu poema mais conhecido.


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PELO SONHO É QUE VAMOS


Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?
Partimos Vamos. Somos.