domingo, 27 de março de 2016

Hotel du Lac, Anita Brookner.

"Enquanto o carro se afastava lentamente, Edith mergulhou num estado mental algo regressivo. Pormenores da frontaria da casa despertaram-lhe a atenção como se os estivesse a ver pela primeira vez. A frontaria devia ter sido pintada, pensou, realmente devia ter mandado pintá-la. Depois, reparou na extraordinária graciosidade das lojas pelas quais passava todos os dias sem as ver: a agência funerária, a farmácia, a tabacaria com a discreta exposição de revistas para adultos, cujas capas, na sua maioria, mostravam raparigas curvadas para a frente e que piscavam o olho por entre as pernas, a casa onde se vendia a lotaria, com o seu amontoado de bilhetes rasgados a juncarem o chão. À medida que o carrro a transportava ao seu destino, reparou, com profunda nostalgia, no cipriota, vendedor de hortaliças, que emergia das profundezas da loja com um balde de água, que atirou para o chão num largo movimento em arco e que provocou em Edith um choque de prazer. Viu o hospital e os jovens de bata branca a subirem as escadas, o pátio de recreio, o infantário, a praça onde se vendiam plantas, um ou dois bares e uma loja de modas bastante simpática. Depois viu o Registo Civil e uma pequena multidão a conversar no passeio diante da entrada. Como um visitante de outro planeta, viu o seu editor e o seu agente, o primo vegetariano do seu pobre pai, vários amigos e alguns vizinhos. E viu Penelope, excitada, e cujo chapéu vermelho chamava a atenção de um ou dois fotógrafos, a conversar com o padrinho e com Geoffrey. Depois, viu Geoffrey. E depois, num relâmpago, mas de uma vez por todas, viu a tímida compostura de Geoffrey na sua totalidade.
Debruçando-se, sentindo uma calma extrema, disse ao motorista:
- Pode levar-me mais adiante, por favor? Mudei de ideias.
- Certamente, minha senhora - replicou, pensando que ela era uma das convidadas por causa do seu aspecto modesto. - Para onde deseja ir?
- Talvez dar uma volta ao parque? - sugeriu ela."

sábado, 26 de março de 2016

Guimarães e a Polónia.


Guimarães património da humanidade. Dito isto, a minha opinião sobre a humanidade não sofre um acréscimo de simpatia perante o turismo "internacionalista", isto é, igual-a-todos-os-outros, que invadiu o centro histórico e o transformou num espaço sem alma... mas a facturar dinheiro. 
Valha-nos o Toural e o café Milenário.

Pelas 22h de ontem, fruto das minhas funções de taxista, assisti no bar-restaurante Ultimatum, em Guimarães, perto dos bombeiros e do estádio, a uma performance por uma jovem polaca. E gostei. A jovem tinha feito uma 'residência artística' no farol da Luz, no Porto. E apaixonara-se pelas garrafinhas de leite achocolatado da Ucal. No espaço  da performance e em cada uma das mesas havia uma garrafinha que antes fôra da Ucal, cheia de areia da praia da Luz e com um papel escrito lá dentro em inglês. O texto de partida era de Camus e falava de ondas que vinham do Oriente, nos atravessam e para Ocidente partiam. A jovem polaca tinha um aspecto frágil. A performance mudou essa minha opinião. Confesso que gostei de ver-lhe os pés sujos. 
Não percebi o haver só oito pessoas a assistir.

sábado, 19 de março de 2016

A Amendoeira em Flor.





Ele ouvira falar de um rei lá para o Algarve que, para cativar a princesa que mantinha cativa, branca rapariga das terras do norte, enchera os irregulares campos dos seus domínios de amendoeiras e amendoeiras, surpreendendo-a no fim do Inverno com aquele último nevão de flores, flores sem fim. Que exagerado, pensou ele, a amendoeira é uma árvore tão bonita que não necessita de se repetir nem de companhia e então convidou a sua princesa para um passeio e levou-a até aquela isolada amendoeira na beira da estrada, tão carregada de flores e sugeriu-lhe: "Sobe, trepa, senta-te ali onde a árvore se divide, e serás a mais bonita flor no meio de cem!" Ele não as tinha contado, as flores que a amendoeira tinha, ele só sabia que se ela subisse passaria a árvore a ter mais uma. E ela subiu. Depois desequilibrou-se e caiu ao rio, rio que era profundo e rápido e que a levou para nunca mais.
Moral da história: que não haja rios no Algarve não deixa de ser uma vantagem. 

Huawei but No Way.

"Posso ligar?" dezoito minutos "Pode" cento e seis minutos "E agora? Ainda dá? São só breves minutos!" trinta e nove minutos " Vi agora. Falamos amanhã!".onze minutos "Ok. Parabéns!".

domingo, 13 de março de 2016

The Night Of The Hunter, Charles Laughton - 1955.

Charles Laughton era um actor inglês naturalizado americano com 56 anos quando este seu único filme apareceu. Conhecido como actor "de composição" - e os americanos gostavam muito dos actores ingleses para fazerem trabalhos de "composição" à volta das suas estrelas de primeira grandeza, Laughton fez um filme de que então ninguém gostou, mas que hoje é considerado um dos marcos do cinema americano dos anos cinquenta. E fez só este filme, não mais. Morreu sete anos depois.
Talvez seja por "The Night Of The Hunter" que tantos actores de cinema passam para trás das câmaras. Infelizmente.
Os actores principais são Robert Mitchum, Shelley Winters e Liliam Gish. A história passa-se no Sul religioso nos tempos da Depressão. Mitchum é um pregador que vai seduzindo e assassinando viúvas pelo caminho e que vai parar á prisão por ter roubado um carro. Coincide na cela com um homem que assaltou um banco e matou duas pessoas. Este diz-lhe que tem dez mil dólares escondidos em casa antes de ser enforcado. Mitchum pouco depois é solto e vai à procura dessa nova viúva e do seu dinheiro. Encontra-a e percebe que ela não sabe do dinheiro mas os dois filhos do defunto sabem. 
 "The Night Of The Hunter" não é um filme de terror mas um filme de horrores. A Depressão e o mal que fez à sociedade americana; o horror da religião plana e fácil explorada pelos pregadores, a violência a que mulheres e crianças fácilmente foram sujeitas nesses tempos. Não há um homem bom nesta história. E mulher há uma só, Liliam Gish, que no fim acolhe as crianças e que as defende de carabina em punho. Tudo o mais é mau ou fraco. Ou são crianças.
 "The Night Of The Hunter" é um filme filmado a preto-e-branco bebendo no expressionismo germânico dos anos vinte e trinta, está bom de ver. Mas não vamos esquecer que Laughton era um homem nascido no teatro, daí talvez o aspecto artificial e metafórico da accão, que se amplia à medida que o filme vai  crescendo em suspense. 
 "The Night Of The Hunter" ofereceu várias imagens e sequências que ficaram para a história dos filmes, conhecidas mesmo por quem nunca viu o filme todo. As letras LOVE/HATE tatuadas nos dedos de Mitchum mais a devida explicacão, a voz deste a chamar as criancas quando desce ao armazém: "oh chil....dren!". Shelley Winters no fundo do rio no velho carro, Liliam Gish em contraluz, a carabina no colo. Acrescento uma mais, a dos animais que vamos vendo à medida que as criancas descem o rio no bote pela noite dentro, uma tartaruga, uma rã, um coelho. Uma teia de aranha. Testemunhas silenciosas da inocência em fuga. Mas uma coruja mergulha e mata o coelho. "These are hard times for little things!" Todos aqueles animais buscavam também um esconderijo na noite. Mas o pregador, como a coruja, trabalha de noite: "Does he ever sleep?" - pergunta o rapaz. E o pregador ameaca: "I'll be back! With the night!"
 "The Night Of The Hunter" é ainda muito mais do que isto. Mas vê-lo uma só vez não chega. Donald Trump também devia vê-lo. Correcção: já o viu.





terça-feira, 8 de março de 2016

Não Oito mas Sete de Março.

A rapariga trazia a avó à consulta. Tinha uns olhos finos e o cabelo preto apanhado num puxo, como a minha filha tem, às vezes, depois do banho. Preparava-me para auscultar a avó quando ela deixou escapar, rindo: "Acho isso muito giro, curto bué essa cena!" - e apontou para o estetoscópio. Eu parei e perguntei, para confirmar: "O quê?" "Auscultar, essa coisa de pôr nos ouvidos e ouvir! Quando era miúda brincava muito aos médicos!" E era a inocência a falar, juro! Rimo-nos os dois, portanto. Auscultei o que tinha que auscultar e depois sentei-me e perguntei: "E o que faz?" "Sou empregada de limpeza no Norteshopping!" "Então com certeza já me viu sem me ver, e eu já a vi sem a ver!", respondi. ""É capaz." "Vemo-nos no Norteshopping!", disse, no fim da consulta! "Sim, mas coma coisas saudáveis, não hamburgures ou pizzas...", disse-me ela a mim. E sorria, os olhos finos.

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"Não sei como convencer a minha tia a não lhe oferecer aquele desenho a carvão! Ela diz que é um corpo, um corpo, um corpo bonito! E quer oferecer-lho!" Falávamos de uma simpatiquíssima octagenária mais viajada, vivida e sabedora do que eu alguma vez serei, dona de uma epilepsia vascular, de um vitiligo e de um sorriso enorme e um rir em cascata, malandro. "Mas na próxima consulta não se safa!". Eu tinha feito cara de incómodo, começara a rir com a palavra "corpo", essa palavra tão complicada de dizer, deixara escapar um "enfim" e uma careta. Depois percebi que o problema estava em ser uma velha a oferecer-me, uma velha hipocoagulada e com uma hiponatremia recorrente. E se fosse uma nova mas com vitiligo e hiponatremia ou uma nova com epilepsia vascular e apenas uma ligeira cifose? E se fosse... Subitamente estatelei-me por completo no chão de tão envergonhado e lá corrigi em parte o trajecto: "Terei muito gosto em receber o desenho, o que farei com ele depois...". Do outro lado asseguravam-me: "Não tem cabeca, o desenho não tem cabeca!". E senti-me não velho mas acabado, quero eu dizer, como no fim dos meus dias.

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Uma enfermeira pouco depois de reforma-se teve uma hemorragia cereberal talâmica direita, hipertensiva. Ficou com um défice motor esquerdo discreto mas com quase anestesia do mesmo lado. Ganhei-lhe amizade ao conhecer melhor a sua história de vida, mas ela, a amizade, foi-se desvanecendo á medida que a primeira, a história de vida, não se resolvia e, pelo contrário, mais se embrulhava. Casada com "o homem da sua vida", este resolvera deixá-la por Lisboa e uma amante, há muitos anos. Portugal não tem a "Big Apple" mas tem uma alface que é a nossa capital. Apesar do enorme desgosto, nunca houve uma separacão em papel e ele vinha ao Porto frequentemente e ela lavava-lhe a roupa, passajava-lhe as meias. Trocavam umas palavras, ora amargas ora de circunstância, ele voltava a desaparecer. Num dia de maior amargura o AVC aconteceu. Como não culpá-lo a ele? Permiti a culpa, até pela antipatia que o sujeito me causava. Anos passados e o imbróglio familiar não se resolvia: "foi o homem da minha vida", "as contas bancárias estão todas no nome dele", "se o divórcio for litigioso sei lá o que ele me pode fazer", " o filho não lhe fala", "ele agora voltou para casa e o advogado diz-me que não o posso expulsar". Cada consulta era mais do mesmo e era preparada com um suspiro e despedida com uma careta e o doente a seguir já à porta a bater. Negociávamos antidepressivos e calmantes. Ontem perguntou-me, estava eu já a passar a receita de Cipralex: "Senhor Doutor, posso fazer Sky Diving?" Espantado, lembrei-me num flash de uma das razões antigas da minha simpatia: ela tinha sido Enfermeira Para-Quedista! E queria, hemiparética, voltar a saltar! "Claro!", respondi! "Mas quero documentação fotográfica!" "Ah, terá, terá!" E com olhar de desafio terminou a consulta, o olhar de desafio que eu tinha captado logo na primeira consulta e que, porém, de nada lhe terá servido perante a horrível vida, a prisão dos dias, o amor deitado ao lixo. Mas ela ia voltar a saltar! Buscando a sua única liberdade possível, e entre amigos... homens!

sexta-feira, 4 de março de 2016

A galinha da vizinha.

"Por tensões altas no ambulatorio substituiu lisinopril por perindopril 5mg + indapamida 1.25 (Medicina Interna hospital) que lhe provocaram boca seca e cefaleias , parou 10 dias depois e iniciou comp. de vizinha mesmas substâncias mas 8mg +2,5mg. Agora bem."


terça-feira, 1 de março de 2016

The Big Chill - 1983.

Whatever happened to Lawrence Kasdan? O  ano passado co-escreveu o argumento do último Star Wars. Pelo que o dinheiro deve estar ok. Mas a sua carreira como realizador está parada após alguns tiros no pé. Enfim, muitos. Kasdan comecara com argumentista para... George Lucas e Steven Spielberg mas... nos anos 80 quem iria adivinhar este desfecho? Em 1983 "The Big Chill" foi um dos filmes do ano. Foi nomeado para dois óscares e não ganhou nenhum. Em Portugal marcou um tempo e definiu uma geração, a geração dos "Amigos de Alex" que, muito provavelmente, pouco terão tido em comum com o mundo descrito ao detalhe pelo filme em questão.



A história do filme é simples: seis amigos do tempo da universidade reencontram-se num fim-de-semana porque um dos dos seu grupo, Alex - a ser representado por Kevin Costner em cenas que posteriormente foram cortadas - se suicidou. No cast estão Kevin Kline, Tom Berenger, Jeff Goldblum, Glenn Close, JoBeth Williams. Como a namorada mais nova de Alex aparece Meg Tilly. Todos eles seguiram os seus caminhos, bons ou maus, e cada personagem é na realidade parte de uma mitologia, de uma hipótese de trabalho sobre como sobreviver aos anos sessenta - coisa que Alex não terá conseguido. O filme consegue e não consegue ultrapassar o esquematismo dos personagens. Kasdan é sobretudo um argumentista, um brilhante escritor de diálogos, e nota-se. E o filme, lembram-se, tem aquela óptima banda sonora. Eu acho que este filme fez mais em Portugal pelo revivalismo da soul americana do que qualquer programa de rádio. Os portugueses redescobriram Marvin Gaye, Smokey Robinson, Otis Redding e por aí adiante. Há uma questão lá pelo meio do filme onde eventualmente nós não conseguimos acompanhar o argumento, sim, é quando "When A Man Loves A Woman" aparece. Mas o resto é razoavelmente credível. A solução William Hurt/Meg Tilly também é estranha mas, pronto, eu adoro William Hurt. Chloe, interpretada por Meg Tilly, é uma imagem de um futuro possível e, "abandonada" pelo idealizado Alex, vai "acolher" o mais magoado de todos, Nick. Há também aquela mistura entre a nostalgia de "todas-aquelas-drogas" e a novidade de "vamos-fazer-um-vídeo-confessional". O personagem mais odiado de todos é Richard, interpretado por Don Galloway, o marido de Karen/JoBeth Williams. O filme detesta-o pois ele pertenceu à geração mas "não esteve lá" porque não quis. E diz isto: "And that's the way life is. I wonder if your friend Alex knew that. One thing's for sure, he couldn't live with it. I know I shouldn't talk; you guys knew him. But the thing is... no one ever said it would be fun. At least... no one ever said it to me." 
Esta tirada divide "a malta" naqueles que "wanted to have fun" e os que não. Percebemos de que lado está o filme, e de que lado queremos estar nós, tão boa é a música e tão bem escritos os diálogos, tão "certos".

Este filme envelheceu mas ainda se vê bem e ouve-se melhor. 
Em Portugal, quem foram os nossos amigos de Alex? Querem um exemplo? António Guterres nasceu em 1949. António Mega Ferreira também. Fuck! Querem um exemplo para fazer de Richard e todos o odiarmos? Fernado Nogueira: nasceu em 1950. 
Agora a verdade é que a geracão dos "Amigos de Alex" portuguesa foi a geracão dos adolescentes que viram este filme e acreditaram em toda a sua mitologia - e isso atrasou-nos uns bons anos e fez-nos votar duas vezes em Guterres, se não me engano.