terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Louvor e Defesa de Diogo Piçarra.

Eu nem sabia bem quem era o Diogo. O apelido é muito artístico, ele há outros Piçarras. Ganhou uns ídolos ou algo assim, e é giríssimo o que me enerva cada vez menos. Parecia destinado a ganhar o nosso Festival da Canção, com os votos do júri (a canção não é má) e do público/a (já expliquei o porquê. Desistiu.

A bomba surgiu pouco dias depois da meia-final: há uma canção (chamem-lhe hino) da IURD, essa simpática organização que trafica crianças, que é a música do Diogo, nota por nota. Pouco importa que a voz do pastor que canta simule uma tortura de felinos, enquanto o Diogo faz derreter os gelos da Gronelândia. A bomba tomou conta das redes sociais, redes que apanharam o nosso menino Diogo - a Eurovisão tem uma espécie de comité que analiza a originalidade de todas as canções a concurso, ergo corríamos o risco do nosso concorrente ser eliminado antes de cantar... Diogo Piçarra decidiu desistir para NOS evitar essa vergonha, e fez muito bem.



Já agora digo a minha opinião: uma canção não tem nada a ver com a outra, e acredito na inocência do Diogo. A melodia é do mais simples que há. Mas muitas baladas pop assim são. A letra está bem feita e o Diogo nem esgota os três minutos da praxe. O pequeno interlúdio musical podia ser melhorado, uns violoncelos e tal, mas a Eurovisão podia estranhar tal refinamento. Realmente o hino da IURD não se aguenta dez segundos, enquanto o Diogo Piçarra ouve-se até ao fim com prazer, e até dispensando a visão do borracho, que tem uma linda voz e é um bom intérprete. Para não ir mais longe, falando de canções "simplórias", lembro "Yellow Submarine" dos Beatles, adornada pela produção de George Martin, claro está. Ou "All You Need Is Love". Deste festival ficará a "Canção do Fim", não sei o que mais.




Já que o Diogo Piçarra desistiu fica-me o Janeiro, um  castiço que defendeu na primeira meia final meia canção (ou nem isso) mas onde navegavam estes bonitos versos:

"Há tantas coisas boas / Uma delas é estares perto / De que servem dez Lisboas / Se me sinto no deserto?"



Claro que estes versos não assentavam em canção nenhuma...

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A luva do Rui Patrício.

Então é isto. Dias e dias. Levantas-te, a água escorre no banho a que te obrigas, é engraçado como sempre começas pelos genitais e terminas no cabelo que não tens. Então é isto. Dois despertadores tocam para chegares bem cedo a um sítio onde, mais que tudo, não fazes nada. Assim começas, depois segues, terminas. Onde a diferença? Não deu, não dá, nem vai dar, esquece! Os direitos de transmissão da felicidade vendidos ao canal da concorrência, a vida um golo sofrido, sempre, quase defendido pela luva do Rui Patrício, quase, mas não, logo depois o apito final.

(...)

Vou atrás do teu carro na VCI. Sorrio, a dor de cabeça desvanece. Campeão Europeu, trago a luva do Rui Patrício comigo. Desta vez eu vou defender, eu sei.

Do tempêro.

Hoje é tudo igual. Os sítios, os procederes. Não consegues evitar pensar: "já fiz isto!" ou "já estive aqui!". E desmereces, se o pensas, a companhia que a há. Porque foi "isto", "isto" mesmo que te lembras de ter feito? E aqui estiveste antes "assim igual"?

A vida é feita de imagens culinárias. Era o tempêro o mesmo? Não, não era. Nem perto.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Álvaro Lapa em Serralves - 2 ou A Importância De Não Nos Levarmos Demasiado A Sério.

Sobre Álvaro Lapa outros escreverão sobre a qualidade do desenho e da composição. E também sobre esta coisa da Arte Moderna que (também) em Álvaro Lapa era haver uma Narrativa, a sua, um Projecto, o seu, um Ideal de Vida.
"Lapa detestava a vida pública; escrevia, desenhava e pintava pela sua saúde. Era mais do que um lenitivo, fazia parte da “metodologia do inadaptado”: uma coisa para si próprio"
Importante também, apesar das fortes ligações de Lapa ao misticismo e às religiões orientais, não se levar demasiado a sério, cumprir esta/essa missão, vida, arte, merda, o que seja, com um grão de sal, um só, não vá a hipertensão. Há um quadro de Álvaro Lapa onde, em fundo negro, ele cobre de branco sujo todo o texto, o texto que dizem - ele sabia que assim era - tão importante ser na sua pintura. Sobraram apenas "os", "os", "os", "os"... e um belíssimo quadro.

Álvaro Lapa em Serralves

Estão a morrer todos. Estes artistas, estas vidas. Peregrinos de um estar marginal que, paradoxalmente, este Portugal permitia. Álvaro Lapa nasceu em 1939 em Évora mas passou os últimos anos da sua vida no Porto, esta actual capital do turismo europeu, que ele apelidava de "a prisão possível". Morreu em 2006.
Bebeu aqui, ali, acolá. Vergílio Ferreira no liceu, depois Charrua, depois Areal. Aprendeu a pintar fora do sistema mas com a gente do momento. Um escritor falhado (Vergílio Ferreira meteu-lhe medo?), contou as suas histórias pintando. Surrealista a atitude, sempre. Marginal até ao fim, deu "aulas" na ESBAP. Pendurado entre o Expressionismo Abstracto americano, o Informalismo europeu, a Arte Povera e alguma imagem Pop. O seu ídolo Robert Motherwhell era um modelo, um pintor com uma formação profunda em filosofia e nas outras artes. 
Portanto, cada quadro uma narrativa. E como dizia Beckett, "Falhar melhor."











sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Eu disse 167 poetas?

Continuemos então.



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TIAGO ARAÚJO (1973-)

Um diplomata que diplomaticamente vai dizendo como as coisas não nos estão a correr bem neste novo século. Quando ele diz ao Expresso que para ele "Joy Division foi mais importante do que Fernando Pessoa" terá em atenção ter-se Ian Curtis suicidado quando o poeta tinha apenas sete anos de idade?


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a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho. ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval de notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa.



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SÓNIA BAPTISTA (1973-)

Uma performer feita no Fórum Dança. Sounds familiar. E, porém, o texto sobrevive por si. Vejam abaixo.


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Primeiro, ler.
Quando me sinto, sento, no acto da leitura é-me
demasiado presente, evidente, a posição da minha
cabeça, equilibrada no meu pescoço num compromisso
de ligeiro tombo que não é murcho mas abnegado.
E arrumo-me.

Estão tensos os ombros? Será que me esqueci de
manter as costas direitas? As minhas demasiado
direitas costas direitas?
E arrumo-me.



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RITA TABORDA DUARTE (1973-)

Escreve para crianças e isso preocupa-me. Calouste Gulbenkian, doutoramentos, etc. Mas o poema abaixo reconcilia-me.


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COMO QUEM DIZ


Passou o verão é outono já     a estação híbrida
na verdade    uma estação meia indecisa entre
o tempo que se apaga e a gravidade
de uma tristeza caíndo com a calma
das folhas, não das aves:

    os pássaros quando morrem caiem no céu

não atravessam o ar assim de encontro ao solo,
só uma pena    ou outra as acompanha, 
às folhas,
na dolência da queda.
Desvoo lento.

É outono e vale tudo agora, os últimos brilhos
largararam já os ramos e adiámos o desejo o coração
para outros séculos outras estações.
O outono pousa na paisagem, macilento.
Tudo envolve na mesma poalha baça levemente dourada.
É outono agora e nada nos soa mal
nada parece mal
sequer esta indiferença morna com que dizes querida
devagar como quem diz cabra



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MARGARIDA VALE DE GATO (1973-)

Sobretudo traduz. Confessiva, interessante. Mais? Que ultimamente saia na Douda Correria vale.


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DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES


Para aqueles que insistem em diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.



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DANIEL JONAS (1973-)

Este homem não me acaba de convencer mas compreendo, muito treino no regresso à realidade pode condicionar, ele há realidades alternativas, já se sabe. Nascido no Porto foi beber Milton a Lisboa. É efectivamente uma espécie de profeta e isto está para além do nome. Estudemos portanto.


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CARRO


Tu para aí sentada
e eu para aqui sentado,
os dois para aqui sentidos
sem nada a dizer.
Levantas-te, e dizes:
dá-me a chave do
carro

(e eu pergunto-me
o que irás fazer ao
carro
e tenho um medo de mil anos)

Percebo agora que
nada foste fazer ao
carro
excepto mijar à porta
mas foi a forma como disseste:
dá-me a chave do
carro



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RUI LAGE (1975-)

Rui, nasceste na Quasi mas lá te conseguiste safar. Nem sempre saímos das flores habituais, mas aqui e ali subimos o degrau. O facto, Rui, de darmos atenção ao arraial, à verbena, à feira concorrida, não automatiza o aparecer poesia. Isso só tu. Anda, então, trabalha. O real não chega.


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CM 122


A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro.

Radiador vazio,
o meu coração sobreaqueceu.

Desço o vidro e ponho a cabeça de fora
a ver se o vento ma limpa
ou ma leva.

O gelo reduz no asfalto.

O cigarro que lhe atiro:
há instantes apenas acendido
pela tua mão soberana,
provinciana, emigrante.


A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro

e a minha alma um cinzeiro
que não posso despejar.



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MIGUEL CARDOSO (1976-)

Se este rapaz já mereceu um posfácio da Regina Guimarães, atenção! Não escreve curto e é, muitas vezes, exclamativo! Declama, interpreta! Nota-se que ele quer chegar a algum lado e tem os meios para tal.


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E A PALIDEZ DAS MANHÃS EM QUE SE PARTE


Então

é isso: de pouca vida em pouca vida
uns frascos uns relógios que brilham
e uns tubérculos secos

É isso: de pouca vida em pouca vida
uns frascos uns relógios que já não brilham
e uns tubérculos secos

e farto de saber sacudir flores estou eu.

Não sei é para que servem estes botões que piscam.

Sei outras coisas porque li eliot
e uns franceses que ele lia.
Sei que o tempo vai estar frouxo
com possibilidade de trevas.

Sei marcar o compasso porque comprei um agrafador.

O que estiver mais à mão da nua tarde.

Vi funcionários a fazê-lo e enlouquecem

como os restantes nos intervalos das horas
para expediente basta
um gramofone ao fundo
espalhar uns papéis de embrulho
como cacos de outra vida com mais fome.

Não há como

os clássicos modernos
esses armazéns de espécies
botânicas apropriadas ao turismo de ecos
e guinchos com secura de pontas
de cigarros e pobres fins de mundos e nisto
vem claro sem surpresa o verão
de novo abaixo. É dos nervos
que ficaram invernais e pouco
adianta ir para sul ir tomar o café lá fora
atiçar Oh Oh Oh

o açúcar os mortos outras especiarias granuladas
ou despirmo-nos muito milimetricamente
debaixo dos círculos de gritos das gaivotas.

Está é preciso dizê-lo devidamente inverno
para coisas destas.

E livrar-mo-nos das pálpebras
junto ao rio escuro e dizer: está na hora
sai-me mas é da frente e entretanto pinga
qualquer coisa repetidamente deve ser do tempo

e dizer sou Tirésias sai da frente
vou para ali deitar-me no divã pôr um disco
com som de chuva
enquanto espero pelos anúncios.

Não se chega de repente ao futuro
e raramente vem ao fim de semana.
Vá. Anunciem anúncios.
Desejos tenho eu.

Será uma especiaria o açúcar
pois olha como se espalha pelo chão.

*

Vêm-se as riscas dos pijamas
por dentro da pele onde chovem
os dias muito muito miudinhos.

Conta-me a história conta-me
nas gotas nas gotas ou entre as gotas.

Conta-me como acaba
aquele anúncio a baudelaires
cheios de acessórios inúteis.

Povoar o interior
Povoar o interior.

Como é que se diz.
Como é que se diz.

Isso é na teoria.

Para chocalhar as flores
como deve ser é melhor
começar pelas raízes.

Estão desalmados os meus interiores
como convém.

Para isto não há engenhocas que me valham.
Valha-me ao menos isso.

Inverno, Verão.

Espreito as meninas a segurar perfumes
os meninos de jaqueta ao relento em jipes .

Inverno, Verão.

Já não sei ver.
Parece-me que estes motores
me extraíram o forro ao corpo.

E cá vou eu por vias de extinção.

*

E assim sendo, migrar para onde?




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ANTÓNIO CARLOS CORTEZ (1976-)


Crítico e poeta, professor na conhecido Colégio Moderno. Declara-se discípulo de Gastão Cruz, o que é do maior bom gosto. Como este venera a palavra. 


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A palavra eu acredito nela
Na sua pedra rugosa na sua superfície
De astro inominável como o fogo
A palavra eu acredito na sua sombra
Na sua medida singular
Na sua circunferência exacta quando arde
Na vida com seus animais urbanos
Evolando-se os animais no verbo escuro
Acreditar no infinitivo lodo do seu jogo
E não permanecer na sua cegueira incerta
A poesia quando se rende ao real literal
Ausente da vida que a perfura
A palavra eu acredito nela e na sua luz secreta
Entre o seu fazer e o ser dita na leitura



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INÊS DIAS (1976-)

A parceira de Manuel Freitas na Averno tem poesia muito interessante e com uma temperatura diferente.


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LA COLOMBA FERITA


a António Barahona


Quando me cansar de voar ou
a ferida estiver finalmente visível,
promete-me que a faca
será afiada e silenciosa.
Que eu não a veja chegar,
como se não tivesse passado
uma vida a pressenti-la nas dobras
do lençol, mortalha de tantas noites.
E antes, dá-me de beber
entre as mãos, conta-me
de céus azuis, sem garras
e sem abismos. Espera que
o meu coração de novo pequenino
se aninhe no calor das tuas veias
e se torne apenas a memória de
um sobressalto contra a tua pele.
Por este livro, por este poema, regresso a Campolide.



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ROSALINA MARSHALL (1976-)

Traduz, vive em Londres. A sua poesia tem piada. E às vezes acerta.


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ALTAS MADRUGADAS FRIAS


os dois amantes não sabem o que é ter família
param num café qualquer
capuletos escondem-se atrás das árvores
um dia as árvores morrerão também
e a noite furiosa
em passos largos
tomará a avenida da república
e na passadeira
esperaremos que tudo passe



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PATRÍCIA BALTAZAR (1977-)

Finalmente uma mulher do Barreiro. Paulo José Miranda escreveu sobre ela uma página muito bonita no "Hoje Macau". Era o ano de 2016 e o Governo de Macau, ao lado, promete arrefecer o mercado da habitação.


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IX


Pára para tempo. Não gosta de nada. Nada gosta dela. Ela tem os braços caídos, baba na saia. Não queria aquele fio de cabelo. Não era aquele. Ela tem raiva no sítio do açúcar. Ela enganou-se e enganou um caminho.

Uma vez dançou. Mas foi só uma vez. Logo a seguir rezou trinta avé marias mesmo sem saber o que eram. Disse ao mundo que levantava voo e depois caiu e teve muita vergonha. Ela é só um colibri. Ela queria dizer que havia política e depois rendeu-se à evidência de um santo já podre. Uma coisa supra.

Ela cravou os olhos numa ponte e disse: um dia salto. E não saltou. Não teve tempo. Uma vez teve a barriga cheia de flores. Hoje tem os olhos azuis. Carne. Ela chorou tanto que a amiga a levou ao colo. Nunca mais chorou. Cicatriz. Ela reiterando que era ela, que era ela e ainda não sabe quem é. Ela vestiu um vestido preto, mas o homem ainda falava. Fez luto na mesma, sem saber de quê. E afinal era dela.

Fugiu do casamento e atropelou um bêbado. Destrambelhada. Grita tanto todos os dias que os vizinhos invocam mortos para lhe arrancarem o cabelo. Comprimidos.

Ela teve tanto medo um dia que o medo fugiu dela. Raposa. Lobo. Doce. Anda aos trambolhões na madrugada dos outros e deixa a cidade à guerra com o rio. Vento. Água. Pedra.

Uma vez ela quis ver que raízes tinha e apodreceu. Caiu-lhe o cabelo. Disse mãe. Disse fruta. Disse morrer-te nos braços.



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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Médico? Só?

Estava previsto, aconteceu. Ao que parece o nosso ministério quer criar uma bolsa de milhares de médicos sem qualquer tipo de diferenciação e usá-los a seu bel-prazer para colmatar - mal - as distorções do SNS e responder aos humores da opinião pública. 
Quem sabe sabe que um médico, feito o Ano Comum, redução a um ano (porquê) do antigo Internato Geral, não está capacitado para fazer consulta num Centro de Saúde. Dizer o contrário é menosprezar definitivamente a carreira de Medicina Geral e Familiar. O interior e o subúrbios de Lisboa e Porto merecem a melhor medicina. Assim não. 
A bondade de estarmos a produzir médicos a mais há mais de dez anos finalmente revelou-se. Engraçado isto, a direita seca-nos as mucosas ie, os recursos, mas é sempre a esquerda que no final nos fode e, no que à saúde diz respeito, aos portugueses.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Olha, 156!

Agora que entramos nos anos mais recentes a escolha do tempo ainda está, em grande parte, por acontecer, até pela visibilidade diferenciada de uns e de outros. Resta a minha.



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ANTÓNIO GREGÓRIO (1970-)

Parece que só escreveu um livro de poemas, e ainda por cima publicou-o na Quasi, mas o poema abaixo lembrou-me tempos antigos: uma vez eu quase marquei um golo, não fosse o Manel João.


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A TRAIÇÃO DO CELSO


Jogava comigo na defesa reduto
dos inábeis dos impopulares (abaixo
de nós só o guarda-redes); o Celso e eu
vendo a glória avançada e esperando os embates
entre o medo de sempre e o desejo da acção
heróica redentora. Mas como no amor
cabia-nos menos defender antes ser
repositório de culpas pelos falhanços
colectivos e como um amante traiu-me

quando atrás de não sei que instinto (parecia
doido) subiu à baliza dos outros e
marcou o melhor golo da terceira classe.



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JORGE MELÍCIAS (1970-)

Este não praticante da licenciatura em História trabalha ou trabalhou para a Cosmorama, que é a Editora da Católica. Portanto, logicamente, a sua poesia segue um caminho cabalístico e anti-crístico. Pudera! 


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O animal recolhe-se na lâmina.
Não há resistência ou retracção.
Ele é agora a extremidade viva
de uma metalurgia brutal,
a mecânica vocalização do horror.
Sobre a coalescência do sangue
a blasfémia e a sua têmpera.



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NUNO MOURA (1970-)

É um doudo. Por isso tem uma editora chamada "Douda Correria". Iconoclasta por feitio e opção, poeta anárquico da palavra, assisti a uma declamação sua na Flanêur aqui no Porto e fiquei cliente. Eu não sei nadar. Ele já foi professor da natação.


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Uma mulher vai na parte mais bonita da rua.

O seu gelado passa de boca em boca no passeio contrário
mas pouco dos galos a combusta.

Apetece-lhe chegar a casa e pôr a cabeça sobre os pêlos -
do peito.

Ficava-lhe bem uma barba postiça lá para baixo
mas há muito tempo que não o faz.

Um cigarro antes de dormir.
Um beijo para acordar o charlie brown.
A camisola de ginástica perto do saco perdido de frio.




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ALEXANDRE SARRAZOLA (1970-)

Foi para Lisboa aos 5 anos e é arqueólogo. A sua poesia é viajante e descritiva e é como se o Gil de Carvalho tivesse desatado a contar coisas. Numa crítica escrita na revista Caliban utilizam "sobre" a palavra "zeugma", que eu não sei o que é.


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HOTEL MADRID


à beira da estrada para Meknès, por detrás do mato, escondida assistias
(demasiado perto da sua Toyota Hilux) ao buliçoso trabalho das três prostitutas;
na sombra fresca do quarto, de manhã ou depois da sesta, as quatro trocavam
djellabas coloridas e babouches bordadas com lantejoulas, para a Primavera

esta noite descemos, à luz de um petromax, os degraus que levam,
entre águas, gatos e urina, à estrada do Hotel Madrid e um homem
(que se enamorou de teus cabelos de prata) avisa-te de mão estendida
dos «borrachos della calle de arriba», «voleurs» que não são dignos
de que pises em seu quelho de lixo e memórias obliteradas
pelo vidro quebrado das garrafas proibidas

a floresta de faróis volta a enovelar-se de palavras
e da poeira do tempo - o homem desaparece na escuridão da mesma rua
deitamo-nos na açoteia  e falas de Batuta, Polo, Loti e Wilde, o morrão incandescente
na tua mala a cassete com as suras; as palavras (insististe) ditas por um ancient
para ouvirmos amanhã no leitor do carro; a lua ocre liquesce e não adormecemos

de volta da nossa bagagem as crianças e o riso das mulheres sob a árvore do jasmim
«bonne route», sempre um anjo da guarda e gatos a fugir sobre os telhados do hotel
depois do terceiro sebsi, o homem levanta-se da soleira e debruça-se na tua janela
óculos de massa, caspa nas sobrancelhas, fato branco e uma camisa de polyester
com suspensórios escoceses; os sapos sujos de lama e meias de garridas cores;
enxota com as unhas encardidas um mendigo e aperta-te a mão do lado do sol

os olhos e a voz: não te focavam e escondiam-se na luz que entretanto já apaguei;
tu bem sabes: «é que me arrancaram pela nuca a língua que usava para escrever
aqueles outros poemas»



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LUÍS SERRA (1970-)

Homem de pequenos poemas coligidos em plaquettes, antologiou na Companhia das Ilhas, e que é bom. O poema que mais aparece na net termina assim "um motor imóvel a dar um baile / uma vontade de foder". Na realidade citei metade do poema.


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DESVENTURA


no fim da rua um naufrágio
a noite cerrada de vinganças

o cinema sem índios



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DANIEL FARIA (1971-1999)

Não vai ser fácil o caminho desta poesia, uns vão adorá-la em altar, outros esquecê-la. Mas o Daniel Faria foi o poeta mais importante a nascer-nos nos anos setenta. Morreu na minha segunda casa, e não me curo disso.


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Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser-lhe a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera. Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.


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RUI ALMEIDA (1972-)

Nasceu em Lisboa e sorri para as fotografias. Ganhou o primeiro prémio Manuel Alegre, o que não tem lógica. Poesia contida, meditabunda. Gosto do abaixo.


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DEZ PECADINHOS MORTAIS AO ACASO


Suavíssimos pretextos para nada;

O medo de ouvir falar do vento;

O avanço das armas escondidas;

Os tesouros perdidos frontalmente;

Sinceridades sem razão de ser;

A violência de conter o murro;

Segredos que se dizem sem ouvidos;

Os silêncios que mascaram as sombras;

O vil excesso de um pão sem fome;

As palavras escritas com maiúsculas.




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RUI COSTA (1972-2002)


"Tem uma definição de poesia?" "Nem as sardinhas se definem. Sobretudo, não pertenço a nenhuma “escola”. Seja mais metafórica ou mais “da experiência”, o que deve importar é a qualidade (que também não se define). Mas digo ainda: gostava que houvesse menos vaidade entre os poetas. Mais capacidade de gostar das coisas que os outros fazem, ainda que “diferentes”. Os preconceitos tendem a vir de pessoas incapazes de vibrar fora do bafo da sua própria respiração." O seu corpo apareceu morto e dado à costa na Foz do Douro, metáfora para o que são as nossas vidas, julgo que o autor do gesto teria preferido entrar pelo mar dentro. A sua antologia "Mike Tyson para principiantes" está a ser um justo best-seller.


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TEORIA LÍRICA
(policial)


1. A idade certa para casar é ele com 34 anos e ela com 27. Sobretudo num comboio como este, que não pára em nenhuma estação ou apeadeiro.

2. De repente um enorme campo de arroz, um homem e uma mulher. O homem segura a mulher como um utensílio agrícola. Uma pequena pá, talvez, ou um objecto mais suave que não sofre com a força da mão.

3. Admitindo que o comboio não avança em piloto automático, um terceiro elemento existe: o condutor. É ele quem sai agora da sua cabine com uma caneta na mão.

4. No campo de arroz, a mulher encomenda uma estação favorável abrindo muito as pernas. Desta vez não sente prazer, não quer, acontece-lhe apenas uma vez por ano. É uma mulher feliz.

5. O comboio prossegue, sozinho, sobre a imensa recta do país plano.

O condutor do combio vê a mulher ao fundo do corredor e escreve: vejo a mulher ao fundo do corredor e escrevo; não sei se a amo, é a primeira mulher que vejo em toda a minha vida.

6. A imagem seguinte é a de uma cabeça deitada na mesa, sobre os braços, o cabelo castanho tapando-lhe os olhos.

7. Nessa noite o condutor do combio vê: o campo alagado, visões brancas e algo baças como figuras projectadas através de uma folha transparente. 

8. Nenhum alerta veio ou sinal de inquérito. O comboio pára ali; as quatro mãos morenas interrompem o trabalho e olham.

9. Na janela do comboio os dois, apenas os dois. 

10. Nenhum crime, nenhuma dor, nenhuma lembrança. Que melhor podes ter para começar. 



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MANUEL DE FREITAS (1972-)

Este ribatejano que gosta de polemizar já escreveu no Expresso e já ganho o prémio PEN clube de poesia - que não recusou. É sua a editora Averno e antologiou os "Poetas Sem Qualidades" e "A Perspectiva da Morte. 20 (+2) Poetas Portugueses do Sec. XX", sendo que nesta não foge nem um milímetro do cânone. Pergunto-me como seria a sua poesia com menos cerveja e com menos fuminhos. Lamenta-se, divide. E a sua poesia aparece na "Ler".


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GENEALOGIA


Para a Céu


Tinha medo de morrer, a minha avó.
A minha mãe não, nunca teve,
e o meu pai tem desde que me lembro
um talento inato para contornar a questão.

Era um medo simples e espontâneo,
o da minha avó. Receava
não acabar o bordado infinito
e o alheamento de tudo,
com a vaga excepção do afecto.
Queria apenas encontrar a manhã,
o pequeno missal junto à cabeceira
- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».

Arrependi-me, tantos anos depois,
de julgar que a vida se podia - querendo
ou não querendo - deitar fora.
Ainda aqui estou, vivo e descontente.
Não esqueço a antiga criada (foi mais
do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me
num sorriso se eu, no fundo, desejava
a morte que a avó não queria desejar.

E poluo essas memórias, talvez
por saber que não voltarei a atravessar
com ela a rua onde mais vezes caiu,
onde era senhora distante de um mundo
acabado, vagamente aristocrático
e, por sorte, ainda sem muito trânsito.

Ninguém, mesmo que queira,
quer morrer. E, do mais, ficam-nos
vislumbres, pormenores, anotações
cujo sentido descobrimos demasiado tarde.

Não sei se a cultura ajuda. Preferia
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra de pinheiros.

Era isso.



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PEDRO MEXIA (1972-)

Podia inventar-se um livro-espelho daquele que foi criado à volta da Adília Lopes, desta vez sobre o Pedro Mexia: "quem quer casar com o poeta?" Todos conhecem o Pedro Mexia, certo, a sua cara branquinha, a barba rala, como as suas curtas intervenções no "Governo Sombra" calam a sialorreia do João Miguel Tavares. O seu livro "Avalanche", editado pela Quasi, tem uma capa assassina. Pedro, coragem!


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ANOITECE


Anoitece, o táxi atravessa
a metrópole, o coração,
detector de minas, reconhece, 
um a um, os bairros
onde viviam, talvez vivam,
quatro ou cinco raparigas.



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