domingo, 29 de março de 2020

Paul Gauguin (1848-1903)

Como se faria hoje a narrativa bibliográfica de Paul Gauguin? Com uma ascendência colonial espanhola pela mãe, viveu em Lima, Peru, parte da infância. Marinheiro, corrector de bolsa, etc., nunca conseguiu prover ao sustento adequado da esposa e dos seus cinco filhos, que desaparecem a partir de determinado momento da sua narrativa de vida. Depois de passar como trabalhador pelo canal do Panamá e pela Martinica, foi para o Tahiti, colónia francesa na Polinésia à procura de um paraíso perdido e de companhias femininas várias, nenhuma delas com idade acima dos 15 anos. Distribuidor de sífilis ao domicílio, mitómano, morreu desgraçado e malquisto em Hiva Oa, onde o seu túmulo jaz. Aí foi também enterrado muitos anos depois Jacques Brel.

Paul Gauguin foi no início nada mais do que um dotado pintor de domingo que, por convite, participou em algumas exposições dos impressionistas. Amigo de Pissarro, que o influenciou neste primeiros anos, as suas obras não sobressaiam. Abandonou a sua família quando decidiu ser pintor a tempo inteiro. A sua estadia em Martinica abriu-lhe os olhos para uma nova forma de apresentar a luz e as cores. Logo depois, uma estadia em Pont-Aven, na Bretanha, com um pintor 20 anos mais novo, Émile Bernard, criou o clique para que a pintura de Gauguin encontrasse o seu caminho e a sua originalidade. Pelo meio complicou a cabeça a Van Gogh. O ir para o Tahiti em 1891 ofereceu-lhe toda a temática polinésia pela qual ele ficou particularmente conhecido, misturando uma espiritualidade muito particular com o viver "selvagem" dos nativos. A luz e a simplicidade do uso da cor, a liberdade criativa vs o real, tudo isso nascera em Pont-Aven, mas ganhou uma vitalidade extra na Polinésia. Os quadros de Gauguin partem do real para um já outro mundo, retratado na tela por linhas, perspectivas e organizações novas.

Este quadro de 1888, quando o pintor já tinha 40 anos, será talvez a sua 1ª obra-prima. "Vision Aprés Le Sermon" usa uma única cor de fundo e no quadro aparece apenas o que é necessário, numa composição que deve muito pouco à realidade. A "visão" de que o título fala "é" o quadro.

Paul Gauguin. Vision après le sermon (1888)


"Ia Orana Maria (Je Vous Salue Marie)" é de 1891 e será o primeiro grande quadro pintado no  Tahiti, uma recriação de um momento bíblico com personagens locais. 

Paul Gauguin. La Orana Maria (Je vous salue Marie) (1891)

"Les Contes Barbares" é de 1902 e contrapõe a beleza e a paz das nativas polinésias ao demónio ocidental, aqui em caricatura.

Paul Gauguin. Contes barbares (1902)

A pintura de Gauguin influenciou imenso o figurativismo do século XX. As suas linhas simples, a sua disposição clara da cor,  fizeram escola. Mas o que Gauguin ofereceu sobretudo à pintura foi a liberdade.


quarta-feira, 25 de março de 2020

Odilon Redon (1840-1916)

A História da Arte habitualmente apresenta-nos um fio de narrativa que se foi construindo retrospectivamente. E assim depois do  Realismo veio o Impressionismo e depois o Pos-Impressionismo, os Nabis e os Fauves e depois a explosão do Modernismo e do Cubismo. Ao lado ficam outras figuras, como ramos perdidos da espécie humana na bruma dos tempos. Assim as várias florações do Simbolismo na pintura. Com uma excepção: Odilon Redon. Contemporâneo dos Impressionistas, a sua vocação não foi tardia, mas o seu percurso e o seu reconhecimento foi. Sem dificuldades financeiras para prosseguir o seu caminho, Redon ("Odilon" porque filho de Odile) buscou activamente pintar os seus sonhos e pesadelos, como ninguém antes. Usou muito a aguarela, o pastel, a litografia. As suas cores foram depois copiadas pelos Nabis da viragem do século (Bonnard e Gauguin) e a sua imagética elogiada pelos Surrealistas de entre as Duas Guerras, vidé Max Ernst. Em paz com os seus monstros e finalmente consagrado, pintou nos últimos anos sobretudo fantásticos... vasos de flores! 

O primeiro exemplo de Redon, "Les Yeux Clos", de 1890 marca um momento em que o artista volta à cor. Os olhos fechados são aqui um manifesto bem como a ilusão de onde sai o busto, estátua viva.


De bastante antes, 1878, "L'Esprit Gardien des Eaux", exemplo da sua série "Noirs" que primeiro o celebrizaram. Compreensível o entusiasmo dos Surrealistas.

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Podia terminar com um vaso de flores mas prefiro este retrato do filho  segundo, Ari, pintado em 1898. O motivo floral está aqui bem como toda a paz que os filhos trouxeram a Redon, resgatando-o dos seus demónios, mas não dos seus sonhos.

Portrait of Ari Redon, c.1898 - Odilon Redon


Paul Cézanne (1839-1906)

Paul Cézanne pertence ao mesmo quadro etário dos impressionistas. Nascido na burguesia de uma pequena cidade, Aix-en-Provence, privou de perto com Pissarro e foi muito próximo de Zola. A sua aprendizagem do métier foi lenta e difícil. Deixou de falar com Zola quando este o tomou como inspiração para o personagem de um pintor falhado num dos seus livros. A sua pintura era ainda mais "grosseira" e "feia" do que a dos outros impressionistas. O seu reconhecimento foi tardio, numa exposição em 1895, onde uma nova geração se reviu na sua diferença. Muita da obra de Cézanne foi conhecida aí pela primeira vez, a sua independência financeira não o obrigara expor e a vender muito, cansado das rejeições da juventude. 

O quadro abaixo, "Le Pont de Maincy", é de 1879-1880 e aqui já encontramos o mundo Cézanne: a geometria tensa, uma paleta de cores restrita, aqui variando nos verdes, a composição grave do quadro. Quando dizem que Cézanne antecipou o Cubismo pensam em quadros como este.


"Le Grand Baigneur", de 1887, mostra uma gama de azuis que é de uso frequente em Cézanne. A figura do homem que hesita e pára é de uma solenidade ou tristeza ou... que se encontra também em todos os retratos de Cézanne. A vida difícil apresenta-se aqui perante nós: devemos banhar-nos nela? 

Le Grand Baigneur (The Large Bather) by Paul Cézanne
Cézanne era um pintor lento, trabalhoso. Deu-nos uma forma diferente de compor o quadro e nele aparecerem as cores e as formas. A partir  dele grande parte da pintura do século XX foi feita.
Um dos seus últimos quadros é este "Le Paysage Bleu" 1904-6, sílabas de cor sobrepostas numa fala que se vai sucedendo até se mostrar tudo o que o pintor, um tardio génio, vê.

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Foi escrito que Picasso olhou para Cézanne e, adicionando a arte africana, criou as "Demoiselles d'Avignon".

terça-feira, 24 de março de 2020

A única escultura que Edgar Degas expôs.

Na Sexta Exposição Impressionista, que aconteceu em 1881, Edgar Degas foi a figura dominante nos quadros que apresentou e nos convites que fez. A obra que marcou porém a exposição foi porém uma escultura sua, a única que apresentou em vida.


 
Marie van Goethem teria 14 anos quando posou para a escultura. Não era a primeira vez que posava para o artista. Filha de uma lavadeira, viúva de um alfaiate, era a irmã do meio de um conjunto de três que tentavam a sua sorte nos Ballets de Paris. Chamavam a estas pequenas adolescentes à procura de sucesso "Les petit rats". A sua vida cruzava-se frequentemente com a prostituição.
A escultura chama-se "La Petite Danseuse de Quatorze Ans", é em cera, material curioso, como se fosse um ex-voto. Tem por cima um tutu, um corpete, e um laço no cabelo; este é verdadeiro, cabelo humano verdadeiro. A figura da rapariga  quase desenha uma figura de ballet, a quarta posição, numa cara de esforço. O corpo é recém-púbere, magro.
Houve quem lhe chamasse a "primeira escultura moderna". Outros viam na figura o "vício" da possível história do modelo, do "petit rat", da prostituta.

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Depois da morte de Degas foram fundidas várias réplicas em bronze.
Uma delas devia estar no átrio da Opera de Paris e saudar todos os que ali se deslocam para ver um espectáculo de ballet.
Marie van Goethem deixou de ir às aulas no fim de 1882 e ninguém mais soube dela. Pouco antes a irmã mais velha fora presa por furto. A irmã mais nova chegou a ser bailarina e professora nos Ballets da Opera de Paris.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Edgar Degas (1834-1917)

O impressionismo aglomerou não só a tríade de paisagistas constituída por Monet, Renoir e Pissarro, acompanhada de algumas segundas figuras, mas também alguns outros pintores que, não partilhando a temática, seguiam o passo que era dado ao ir mais além do que o realismo, realismo que, se tinha quebrado tabus na temática pictórica, não era suficientemente livre no gesto de pintar.
Degas, seis anos mais velho do que Monet, está na temática da pintura no espectro oposto deste mas viajou no mesmo comboio portanto. Nascido em família abastada só tardiamente necessitou de vender quadros para sobreviver. Viajou até Itália para estudar os clássicos. Era e sempre foi um exímio desenhista, com a cor a sublinhar apenas o que o desenho do quadro pretendia dizer. Relacionou-se portanto mais com Manet do que com Monet.
A sua temática era a das formas, do movimento e da complicada geometria das mesmas. Daí as bailarinas, os cavalos e as corridas, os nus na sua higiene íntima, mas "daí" porque nestas séries Degas buscava o desenho e a composição original, crua mas virtuosa. A beleza nos quadros de Degas é a do quadro, não a dos objectos do mesmo. Marcou portanto Toulouse- Lautrec.
Acabou por cegar completamente em 1911, pintando pastéis até quando pôde.
O primeiro quadro é dos seus mais conhecidos e será um retrato de um lugar e de uma época. "Dans un Café" ou "L'Absinthe" foi visto como uma denúncia da conhecida bebida, ou não, apenas um retrato seria. Pintado em 1875-76, foi vaiado na sua primeira exposição e usado como cartaz para a proibição do absinto, muito para desgosto do próprio pintor.
Edgar Degas - In a Café - Google Art Project 2.jpg
Por ver cada vez pior, a técnica de pintura de Degas foi-se tornando cada vez mais "rude", preferindo a pintura a pastel. Este é um óleo pintado em 1890 que parece um pastel. A composição perfeita com o uso esparso da cor quase nos faz não reparar na esguia sombra de um homem que, com o seu chapéu alto, vagueia entre as bailarinas, um patrono que, pela sua qualidade/dinheiro tinha este direito ao voyeurismo. Degas retrata-se ou critica ferozmente? Possivelmente a última hipótese. Muitas bailarinas eram obrigadas a encontrar um "protector", ou seja, prostituir-se.
Isto das bailarinas como tema preferido por Degas e a razão de o ser complica-se com uma série de pastéis que Degas pinta sobre a mulher a banhar-se. Nenhuma delas é bonita, elegante, cativante sequer, ou se-lo-á apenas pela evidente nudez ou pelas posições captadas. Um exemplo abaixo, "Le Tub", 1885-6. A alegada misoginia destes quadros choca com as bailarinas acima. Degas não teve nenhum relacionamento fixo conhecido, feminino ou outro durante toda a sua vida. Alegava só ter um coração e por isso não poder suportar duas paixões. Morreu sozinho seis anos depois de cegar por completo.  

Claude Monet (1940-1926)

Claude Monet foi o pintor do quadro que deu o nome ao impressionismo. Porém, quando o mesmo quadro conheceu a luz do dia, no ano de 1874, já o mesmo pintor tinha 34 anos, e um percurso de aprendizagem da pintura ao livre, nomeadamente com o holandês Jongkind, e de apresentação e/ou recusa de apresentação das suas obras no Salon de Paris. As primeiras obras, de um realismo livre, foram evoluindo. O quadro "Impression, soleil levant", 

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o tal que deu o nome à coisa, acontece no meio de obras ainda não tão "soltas". Mas poucos anos depois já o estilo tomou completamente conta do seu autor, como uma década depois tomaria conta dos gostos dos parisienses e não só. Monet levou o estudo da cor e da... "impressão" causada pelos objectos de atenção ao paroxismo, criando séries onde pintava o mesmo tema - a Gare Saint-Lazare, a Catedral de Rouen, um par de de fardos de palha em Giverny - sob tempos e luzes diferentes. Sobre a Catedral de Rouen foram dezoito telas.
Monet comprou em Giverny, na Normandia, uma casa cujos jardins foram o tema de grande parte da sua obra até falecer, fiel a um estilo que sempre honrou. A visita ao museu de L'Orangerie em Paris mostra o grande projecto de Monet "Les Nymphéas", iniciado a 1914 e aplicado sob directrizes precisas do pintor às paredes das salas ovais do museu que abriu ao público no ano a seguir à morte do pintor. As cores e os nenúfares de Giverny rodeiam-nos, criando uma impressão indelével.

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Despeço-me de Monet com aquele que para mim é o seu quadro mais bonito, "La Promenade", e que é de 1875.

Claude Monet - Woman with a Parasol - Madame Monet and Her Son - Google Art Project.jpg

Os Meus Pintores. 1874 e depois.

Em 1874 foi exposto o quadro "Impression, soleil levant" de Claude Monet. Vou reiniciar aqui a minha pessoal escolha de pintores e terminar na actualidade, assim me permita o vírus.
Comecemos.

terça-feira, 10 de março de 2020

I'll Give You... Fever!

Há limites! Há limites!
 
Alguns conhecerão uma app com o nome acima e que ultimamente tem vindo a publicitar uma epidemia que dá pelo nome de concertos de música clássica à luz das velas. Como se a boa música  precisasse do lubrificante das velas e tal...
Eu confesso: eles anunciavam Mozart e mais: o Requiem - que eu assumi que seriam excertos. Mas era o Requiem! Também percebi que a interpretação seria por um número pequeno de executantes, mas pronto! Local, o Ateneu Comercial do Porto, sítio que eu só tinha visitado uma vez no século passado, uma curiosa história que ficará para outro dia.
Lá fiz o download da app, sine qua non para comprar bilhete, e lá nos apresentámos, 21h30m, para assistir ao espectáculo, telemóvel em punho.
O Ateneu ainda precisa de uma lavadela aos cromados. As paredes, os dourados, os espelhos estão mesmo a pedir ajuda. Sentia-me contente por acreditar estar a contribuir. Subimos por uma escadaria e entrámos. As velas não eram velas mas umas fiadas de lampadinhas pequenas a fazer de velas. Assumi que não poderia ser de outra forma, os alarmes de incêndio, as madeiras por todo o lado, o fumo, as doenças respiratórias. Entraram os músicos.
Não tínhamos recebido nenhuma pagela à entrada e nos cartazes não havia nenhuma informação. Quem eram estes músicos? Estes três músicos que eu estava preventivamente a aplaudir não tinham nome. E continuariam sem o ter, porque ninguém os apresentou, nem no intervalo, que houve, nem no aplauso final. Nunca me tinha acontecido nada assim, uma arte tão anónima. E começaram com Mozart. Sim, era Mozart... mas não o Requiem. Pelo menos não a parte que eu mais conhecia do Requiem. E depois... começaram a tocar "As quatro Estações" de Vivaldi!
A publicidade que corria no Facebook, etc. prometia espectáculos de Mozart, de Vivaldi, de Beethoven, tudo à luz das velas! Naquele momento deu-me um flash: o espectáculo era o mesmo, anunciado de forma diferente para apanhar o maior número de clientela possível! Estivesse eu não acompanhado e possivelmente teria pensado em levantar-me e sair. Ouvi "As Quatro Estações" - uma bonita peça que sofre pelos interlúdios telefónicos que ocupa por esse mundo fora - moderadamente bem tocadas. Alguém perto de mim distribuía "Bravos!" a cada pausa. Teria vindo para o espectáculo do Vivaldi, o que não era o meu caso. Depois, claro, veio Beethoven e, no fim, talvez tenha sido Haydn, que eu conheço pior. Do Requiem nickles, népia, nada de nada!
Acabou o concerto e ovação de pé! Os nomes dos dois rapazes e da rapariga por saber. Suponho que viveriam, emigrantes clandestinos, num camião TIR em Leixões e que só os deixavam sair para tocar, a comida e um penico à espera no TIR à volta. Pensei em telefonar à Polícia das Fronteiras - existe, não existe? Ao sair, e saímos efectivamente de um bonito salão algo a precisar de cuidados onde com toda a simpatia tínhamos sido burlados, ainda perguntei a uma amiga minha que á saída percebi que comigo coincidira naquele embuste, ela bem mais conhecedora do que eu: "Ó Susana, o Requiem?" Ela também não ouvira Requiem nenhum e descia a escadaria entre o divertida e o revoltada. Fez-me um elogio à cafetaria do Ateneu, onde o café seria bom. Café bom tenho eu em casa, pensei eu, e uma boa gravação em CD do Requiem, portanto, isto de sair de casa na minha idade, é para ser cada vez mais bem pensado...