quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Balkh.



Cada província do Afeganistão tem uma história e uma riqueza próprias. Assim particularmente a província de Balkh. O nome advém duma cidade antiga com o mesmo nome, Balkh, a antiga Bactria.  Mas hoje o centro da província é Mazar-i-Sharif, a cidade mais importante do norte do Afeganistão, aprox meio milhão de habitantes e a 55 km da fronteira com o Uzbequistão, sendo portanto um nó comercial importantíssimo. A província consegue fazer fronteira de oeste para leste com o Turcomenistão, o Uzbequistão e o Tajiquistão. A capital deste, Dushambe fica a 250 km em limha recta. A província é um triângulo de 16186 km2 e milhão e meio de habitantes. A população tem um ligeiro predomínio tajique mas com minorias pashtun, uzbeques e hazaras importantes. Se prolongarmos as arestas do triângulo para norte encontramos no mapa Bukhara, Samarcanda, Ferghana, as grandes cidades da Rota da Seda

Vamos apresentar doze coisas a saber sobre a província de Balkh:


1 - O monumento mais importante na província fica em Mazar-i-Sharif é é a Mesquita Azul, um enorme complexo cujo nome deriva dos azulejos que a cobrem. A sua construção é do século XV, com adições várias. É para as gentes do Afeganistão o mausoléu de Ali, o 4º califa e mártir. Os xiitas acreditam que o califa Ali está enterrado em Najaf, no Iraque. Passa pelo papel do califa Ali nos inícios do Islamismo o cisma entre os sunitas e os xiitas. A Mesquita Azul é um admirável exemplo da arquitectura islâmica clássica e faz de Mazar-i-Sharif um lugar de peregrinação. A Mesquita Azul vive rodeada de uma larga população de pombas brancas. Diz a lenda que qualquer pomba não completamente branca que se aproxime da mesquita  perde qualquer laivo de cor na plumagem e fica só e apenas branca.

Em Abril de 2011, depois de um pastor evangelista Americano ter queimado publicamente um Alcorão, um protesto de alguns milhares de crentes em Mazar-i-Sharif, depois das preces de sexta-feira, invadiu a delegação das Nações Unidas e matou 11 pessoas. Assume-se que a delegação das Nações Unidas foi a primeira coisa estrangeira que encontraram pela frente.


2 - A cidade de Mashar-i-Sharif (o nome significa "túmulo de santo") está rodeada por um complexo de canais de irrigação onde "desagua" o rio Balkh, que nasce no Hindu Kush. Antes da construção destes canais desaguava no rio Amu Darya. A riqueza de Mazar-i-Sharif é não só comercial e de peregrinação mas também agrícola A cidade está a 357m de altitude, a mais baixa das grandes cidades do Afeganistão, virada em diálogo para as terras que se seguem para oeste e para norte.


3 - No início de Setembro calculava-se serem 1000 as pessoas à espera de evacuação de Mazar-i-Sharif para os Estados Unidos. Serão pessoas com nacionalidade americana e pessoas naturais do Afeganistão que colaboraram estreitamente com América nos 20 anos de presença na província de Balkh. Em Washington várias ONG's e person alidades públicas interrogavam-se da razão da demora em evacuar esta gente. O secretário Antony Blinken alegava ser difícil confirmar as credenciais das tais 1000 pessoas, pela simples razão que já não há pessoal americano em Mazar-i-Sharif para o fazer. Como resolver isto?



4 - Muito perto de Mazar-i-Sharif fica a cidade de Balkh, que dá o nome à província. Balkh é a antiga Bactria, cidade que na antiguidade deu em parte génese ao Reino Greco-Bactriano. A cidade é bastante anterior à conquista por Alexandre, o Grande, mas após a morte deste e as divisões acontecidas no que restava do seu império foi criado o que hoje se chama o Reino Greco-Bactriano, de que Balkh/Bactria foi uma das capitais. Balkh foi uma grande cidade durante o Reino Greco-Bactriano, o Inpério Kushan, a conquista árabe, etc. Era a "mãe das cidades". Gengis Khan arrasou-a por completo em 1221, uma história que se repete por toda a Ásia Central. Balkh demorou mais de um século a reerguer-se. As ruínas que são hoje Património da Humanidade certificado pela Unesco são na maioria do séc XV e depois, quando a cidade voltou a ganhar alguma proeminência. A capitalidade daquilo que se pode chamar o Turquestão do Afeganistão só passou porém para Mazar-i-Sharif em 1866. 


5 - Na província de Balkh terá talvez nascido, mas com certeza ensinado e falecido Zoroastro (o Zaratustra de Nietzsche), o profeta que criou a religião persa por excelência, o Zoroastrismo. O Islão tornou o Zoroastrismo pouco mais do que residual no Irão e na Índia e praticamente inexistente no Afeganistão, existindo alguma diáspora da religião no Ocidente. Ideias como o Paraíso, o Inferno,  a Ressurreição, a oposição do Bem e do Mal influenciaram as religiões subsequentes que por ali se criaram, o Judaísmo, o Cristianismo e, claro, o Islão.


6 - O poeta Rumi nasceu em 1207 na província de Balkh. O poeta persa mais conhecido da história, um best-seller ainda hoje, por exemplo, nos Estados Unidos, talvez um dos grandes poetas da História da Humanidade. Foi ao mesmo tempo um professor, um religioso, um místico, um filósofo. Quando novo fugiu com a família para o hoje Irão das tropas de Gengis Khan e não mais terá voltado a Balkh.

"O anjo salva-se pelo conhecimento, / o animal pela ignorância, / entre os dois o homem permanece em litígio."


7 - A província de Balkh foi governada pelo Canato uzbeque de Bukhara durante muitos anos até ter sido englobada no Afeganistão nascente no século XIX. Noa anos noventa do séc. XX a província de Balkh foi dominada por um General uzbeque do exército afegão, Abdul Rashid Dostum, que se revoltou em 92 e criou uma espécie de proto-estado (englobando Balkh e algumas provínicas próximas) que chegou a imprimir moeda e se manteve relativamente próspero e estável, isto enquanto a guerra civil devastava o resto do Afeganistão. A traição de um seu general em 1997 atraiu os talibã. Em 97-98 aconteceram as chamadas Batalhas de Mazar-i-Sharif, onde consoante quem vencia chacinava o opositor. Em 8 de Agosto de 98 os Talibã entraram em Mazar-i-Sharif e de cima das suas pickup atiraram em tudo o que mexia, matado milhares de pessoas, proibindo o enterro das vítimas durante seis dias para que os corpos ficassem em exposição ou fossem comidos pelos cães.


8 - Mazar-i-Sharif e Balkh, rodeadas pelos canais de irrigação onde morre o rio Balkh são uma excepção, indo os outros rios do norte do Afeganistão irrigar e morrer a oásis alheios, estrangeiros. Ou é a província de Balkh que não é bem Afeganistão?


9 - À morte de Alexandre o seu enorme império dividiu-se belicosamente entre os seus generais. A sua parte leste ficou para Seleuco, que formou o Império Selêucida. A Bactria, portanto a parte mais a oriente deste império, aproveitou a primeira crise para se separar do Império Selêucida e criar um reino que durou aprox uns dois séculos e que manteve nas terras do norte do Afeganistão, mais a norte ainda e parte da Índia/Paquistão a chama do helenismo, visível na (pouca) arte que resta. Foi a espaços um reino próspero e que mantinha relações com a Índia, os povos das estepes do norte e a própria China. A pegada grega ficou ainda a influenciar reinos e povos que vieram a seguir, mas o Reino Greco-Bactriano foi conquistado pelos Partos peri 150 AC. Curiosamente para lá do Hindu Kush e já fora do Afeganistão sobreviveram os chamados Reinos Indo-Gregos ainda mais um século, em guerras e guerrilhas que acabaram por determinar o seu fim.  Estes pequenos reinos estavam nesta fase completamente separados da Grécia-mãe e eram por esta praticamente ignorados; a Grécia já tinha sido conquistada por Roma. A escrita ainda era grega e os deuses também, numa mistura com as culturas autóctones que deixou marca.


10 - O calendário do Afeganistão marca o início do ano no equinócio da primavera (este ano foi a 20 de Março). Este calendário é partilhado com o Irão e com outros países da zona. Será anterior ao Zoroastrismo mas esta religião consolidou o seu uso. O início do ano chama-se Nauruz e a sua maior festa no país inteiro acontece em Mazar-i-Sharif com o festival Gli Surkh (ou festival das flores vermelhas) que nas primeiras semanas após o Nauruz celebra a floração das tulipas, predominantemente, vermelhas que crescem nos campos e encostas que rodeiam Mazar-i-Sharif.


11 - O Nauruz tem um componente religioso importante, que em Mazar-i-Sharif acontece na Mesquita Azul, uma lógica de encontro familiar onde os mais novos visitam os mais velhos e se come pratos típicos da ocasião, e o Buzkashi. Vou fazer minhas as palavras de Tamim Ansary a descrever este famoso jogo onde uma data de cavaleiros disputam o cadáver de uma cabra de forma a chegar com ele a  uns postes: " É um jogo num campo sem marcações, sem árbitro, sem equipas, sem faltas, cada jogador a lutar por si ou pelo dono das terras que trabalha ou pelo seu chefe de tribo."


12 - Entre 1998 e 2001 o Nauruz não foi celebrado em  Mazar-i-Sharif.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Baghlan.



A província de Baghlan fica no coração do Norte do Afeganistão, um pouco acima de Kabul, 200 km em linha recta, ou isso. Esta linha recta atravessa o Hindu Kush, ficando esta província na vertente norte deste. Pouco mais de 20000 km2, um milhão de habitantes. Ao nível das etnias muita diversidade, com bastantes Hazaras xiitas. Esta diversidade divide-se pelos vários distritos da província, com dois predominantemente Hazaras, 1 com predomínio Uzbeque, 2 de forte predomíno Pashtun, os restantes Tajiques. Só o distrito da capital, Puli Khumri, tem uma divisão quase equitativa pelas quatro etnias. Estas divisões, que resultam do facto da província ficar na fronteira entre o norte Tajique e o "corpo" Pashtun, têm feito desta província uma das zonas mais conflitivas ao longo da história do Afeganistão. 

Eis dez coisas sobre a província de Baghlan:



1 - o nome da província tem algo a ver com "templo". Em Surkh Kotal existem as ruínas mais bem preservadas e monumentais de um antigo reino, os Kushan, criado por uma tribo que desceu das estepes, adquiriu costumes do velho reino Greco-Bactriano que sobrevivia da conquista de Alexandre e se espalhou entre o 1º e 3º século DC desde o Aral até o norte da Índia. Surkh Kotal é um templo dedicado à religião iraniana de Zoroastro, com os restos de um altar do fogo sagrado. Os Kushan deram atenção a várias religiões para além dos seus deuses primitivos, provavelmente escolhendo a religião que mais lhes interessava consoante as terras de mais premente conquista: a religião iraniana se as conquistas eram para oeste, o budismo e o hinduísmo se as conquistas eram para sul, tendo no início ainda adorado Zeus, Hera, Apolo.



2 - Nas guerras várias do Afeganistão Surkh Kotal foi completamente pilhado/a. Restam no Museu Nacional em Kabul uma estátua, os restos do altar do fogo e a "Inscrição de Rabatak", um longo texto escrito no século II DC em alfabeto grego mas em língua bactriana.  A estátua chegou a ser semi-destruida pelos talibã, o que só mostra como o Museu Nacional de Kabul é seguro. 
A inscrição foi descoberta por guerrilheiros mujaheddin ao escavar uma trincheira em 93. Um inglês presenciou o feito e conseguiu perceber a importância. Muito do que sabemos deste curto mas importante império que dominou por algum tempo partes do Pakistão, Afeganistão, Tajikistão, Uzbekistão e Índia, está ali escrito. No século seguinte os Kushan inventariam o alfabeto bactriano, derivado do grego. 



3 - Surkh Kotal fica um pouco desviada da estrada que liga as duas principais cidade da província, a capital Puli Khumri e Baghlan, a outra cidade importante da província. Ambas têm mais de cem mil habitantes e estão nas margens do rio Kunduz, que desce do Hindu Kush para norte, sendo tributário do Amu Darya. Mais uma vez, nestas terras de chuva escassa, um rio decide onde viver.



4 - Puli Khumri está para a província de Baghlan como Fayzabad para o norte do Badakhshan: fica localizada num rio logo onde a montanha termina e a estepe começa, aproveitando o melhor de dois mundos. As terras por aqui são férteis e produzem trigo e arroz!
Em Puli Khumri foi construída a primeira fábrica de cimento do Afeganistão, em 1954, com apoio da Checoslováquia. Ainda funciona.



5 - Perto de Puli Khumri está a única mina de carvão do Afeganistão, em Kar Kar. Funciona em condições miseráveis. Num texto publicado em 2016 no "Pacific Standard", uma revista americana preocupada com o ambiente que entretanto acabou, era referido que a América tinha gasto meio bilião de dólares no Afeganistão para recuperar a sua indústria extractiva, com utilidade zero, custos inflacionados, etc. Uma fotografia da mina de carvão de Kar Kar ilustrava a reportagem. 



6 - A cidade de Baghlan é o centro no Afeganistão da produção de açúcar-de-beterraba, com a beterraba produzida ali localmente. Numa visita oficial de parlamentares em 2007 a uma fábrica de produção em açúcar em Baghlan um bombista suicida matou mais de cem pessoas.



7 - No distrito de Andarab, na parte sul da província, no fim de Agosto os Talibã tinham sido expulsos e a resistência continuava. Foi partilhado um vídeo dos resistentes pela jornalista australiana nascida em Kabul Yalda Hakim, que trabalha para a BBC. Um mês depois, não há mais notícias. Yalda Hakim tem uma Fundação que ajudava jovens afegãs a estudar na Universidade Americana de Kabul. Tudo indica que esta universidade fechou - o site da universidade está em baixo. As bolsas da Fundação Yalda Hakim já estavam ultimamente a ser desviadas para o Qatar e o Reino Unido. Yalda Hakim não aparece com o cabelo coberto em nenhuma fotografia.



8 - A província é atravessada pela Auto-Estrada (ou seja, uma estrada alcatroada) que liga Kabul a Kunduz e Mazar-i-Sharif. Nos últimos anos, os talibã, que dominavam os campos e as montanhas, montavam portagens na estrada para extorquir dinheiro. Diziam porém que só o faziam quando a mercadoria transportada era importada. 



9 - Um ponto de partida para estas incursões era o vale de Kayan, tomado pelos Talibã em 2019. No Afeganistão cada vale é um mundo. Neste vale vivem sobretudo Hazaras xiitas ismaelitas, muito orgulhosos da sua herança cultural. Têm um líder espiritual, Sayed Mansoor Naderi. Este líder espiritual trabalhou e governou com os governantes de Afeganistão sempre com bom entendimento e proveito próprio, excepto com os talibã. Os Sayed são descendentes de Hussein, neto de Maomé, filho de Fátima. Há uma reportagem sobre uma visita de Hamid Karzai em 2009 a Kayan, onde foi apresentar os seus cumprimentos a Sayed Mansoor Naderi. O vale de Kayan terá votado maciçamente nele. Karzai foi reeleito. 
Sayed Mansoor Naderi tem três filhos. Falemos deles. Sayed Jafar Naderi nasceu em 1965, foi novo estudar para a América, tocou numa banda de heavy-metal, ganhou dinheiro, voltou para Baghlan para ser ostensivamente o que o seu pai era de uma forma mais disfarçada: um senhor da guerra. Lutou contra tudo o que lhe aparecia pela frente e ganhou direito a um documentário, "Warlord of Kayan", filmado em 1989 (tinha ele 24 anos) e disponível no Amazon Prime. Um bruto temível, dizem dele. Sadat Mansoor Naderi nasceu em 1977 e aos 12 anos de idade foi estudar para o Reino Unido. Licenciou-se em Economia e Gestão. Voltou ao Afeganistão em 2003 e investiu sucessivamente na distribuição de combustíveis, montou a primeira seguradora privada e depois investiu na distribuição para a classe alta e os expatriados. Foi Ministro do Urbanismo e Desenvolvimento com Ashraf Ghani e, a partir de 2020, Ministro para a Paz, participando nas negociações de Doha. Várias vezes afirmou publicamente que os talibã não queriam a paz. 
Farkhunda Zahra Naderi nasceu em 1981. Os seus estudos evoluiram também para o Reino Unido e terminaram em Tashkent, no Uzbekistão. Foi deputada (por Kabul) no parlamento do Afeganistão de 2010 a 2015 e estabeleceu relações internacionais com outros/as parlamentares através do globo, com presença na Inter-Parliamentary Union. Recebeu um N-Peace Award em 2012. As suas acções em prol da educação, da mulher e da cultura têm sido inúmeras. Está presentemente fora do Afeganistão, entrevistada pela BBC em 28/08, dizia, entre lágrimas, querer regressar. 



10 - A casa, ou melhor, o palácio de Sayed Mansoor Naderi ficava numa encosta do vale de Kayan, seria uma casa luxuosa como seria próprio de um líder espiritual de um povo, e era encimada por uma (muito kitsch) águia esculpida. Esta águia foi destruida pelos talibã enquanto Sayed se refugiou no Uzbekistão, se não me engano em 1998.

domingo, 19 de setembro de 2021

Bagdhis.



Bagdhis é uma província do noroeste do Afeganistão. São 20591 km2, pouco mais de meio milhão de habitantes. A população é uma mistura de várias etnias, com algum predomínio tajik. É das províncias mais pobres, em grande parte por uma seca que já dura há várias décadas e que levou bastante população a fugir para as cidades mais populosas, sobretudo Herat, a mais próxima. É das províncias com maior iliteracia. Faz fronteira com o Turcomenistão, ou melhor, com um deserto, o deserto de Karakum que preenche a metade sul do país referido e ocupa a totalidade desta fronteira.

Eis seis coisas sobre a província de Bagdhis.


1 - A província de Bagdhis é ou era a província que produzia (e exportava) mais pistachios. As florestas de árvores de pistachios são nativas da Ásia Central e aguentam bem o intenso calor destas terras e quase não precisam de manutenção.. Precisam sim de um pouco mais de água da que agora há. Em 2018 era notícia: "Residents of the northwestern province of Baghdis, home to Afghanistan's highest concentration of pistachio forests, warn that armed gangs and Taleban fighters have taken over the precious natural resource and now make millions of dollars from selling the nuts." Em Outubro de 2019 era notícia: "Pistachio Forest to be Restored in Badghis". Não se sabe como estará hoje a coisa.


2 - A capital da provínica é Qala I Naw mas a cidade mais populosa é Bala Murghab, cuja riqueza é ficar nas margens do rio Murghab. Perto estão as ruínas da cidade de Marw al-Rudh. Esta cidade de Marw al-Rudh terá sido fundada pelos Sassânidas e foi uma próspera cidade agrícola durante quase mil anos, localizada na zona onde o rio Murghab desce das montanhas e entra na estepe. O nome Marw al-Rudh dialoga com o nome Marw al-Shahijan, a antiga Merv localizada no oásis mais famoso do Turcomenistão, de que falaremos a seguir. O nome Marw al-Rudh dava também o nome a um bairro da antiga Bagdad, pela importância das relações comerciais tidas ou por migração de gentes para... 






3 - O rio Murghab é a artéria principal da província. O seu correr vê-se no Google Earth como um grosso traço verde - as terras irrigadas à volta - no meio do ocre do restante terreno. O grosso da água do rio Murghab vai desaguar no deserto de Karakum do Turcomenistão, dando vida a um dos mais famosos oásis da Ásia Central, o oásis de Merv, já mencionado acima. A antiga cidade de Merv, anterior a Alexandre mas que se chegou a chamar (como muitas outras) Alexandria, está rodeada pelas mais férteis terras. Merv seria nos séculos XII-XIII das cidades mais populosas do mundo, com eventualmente meio milhão de habitantes. Em 1221 foi completamente arrasada pelos Mongóis e provavelmente a maior parte da população assassinada. Nunca mais foi a mesma. Restam algumas majestosas ruínas.


4- Bagdhis quer dizer, em persa, "fonte do vento", dos ventos que sopram do deserto que existe do outro lado da fronteira.


5 - Cada província do Afeganistão teve entre 2002 e 2013 uma entidade chamada "Provincial Reconstruction Team" (PRT), um misto de militares e civis empenhados no desenvolvimento da província em conjunto com as autoridades afegãs. O sucesso destas entidades foi muito variável, muito oneroso, e muito discutido. A maior parte dos PRT eram de responsabilidade americana. O PRT de Bagdhis era o único sob comando espanhol (!). As tropas espanholas saíram de Bagdhis em 2013, entregando a base que tinham construído em Qala I Naw ao exército afegão.


6 - Sabzak Pass fica na estrada entre Herat e Qalah I Naw, a 2517m de altura. Herat é a a cidade grande mais próxima de Bagdhis e este desfiladeiro estratégico terá causado muito derramamento de sangue nestas duas décadas. Na Wikipedia aparece uma referência a uma "Batalha de Sabzak", entre o exército espanhol e insurrectos talibãs e tajikes, acontecida em 2009. Ficou um soldado espanhol ferido e morreram 13 dos combatentes talibãs e tajikes que os tinham emboscado. No site do exército espanhol pode-se ler um texto descrevendo a emboscada e o ferimento do sargento Jose Enrique Serantes, conhecido como Apache, que seria operado a um tiro numa perna por cirurgiões militares Búlgaros em Herat. Quando os espanhóis saíram de Bagdhis em 2013 foi por Sabzak que saíram. Ficaram apenas umas centenas de soldados espanhóis depois em Herat. Os últimos soldados espanhóis a deixar o Afeganistão chegaram a Espanha em Maio de 2021. Esclareça-se que morreram no Afeganistão 102 soldados espanhóis.

   

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Badakhshan

 


O Badakhshan é a província mais oriental do Afeganistão. São 44059 km2 e pouco mais de um milhão de habitantes. É a província mais montanhosa, a mais remota. Parte da província corresponde aquele bico comprido que foi criado no séc XIX como buffer entre a Rússia (hoje o Tajikistão) e o Império Britânico (hoje o Pakistâo). O mesmo bico termina em 90 km de uma fronteira agreste com um terceiro império, a China. O Badakhshan antigamente era entendido como uma região bem maior, compreendendo a parte leste mais rugosa do Tajikistão e umas periferias da China e do Paquistão, tudo isto correspondendo ao todo que é o maciço Pamir.

Nesta província parece que o Afeganistão acaba. Será aqui que ele começa? Só 18% da popiulação está acima da linha de pobreza. Só 5% das mulheres sabem ler e escrever.

Eis doze coisas sobre o Badakhshan.




1 - O Badakhshan antigo era portanto bem maior do que esta província do Afeganistão. Correspondia grosso modo ao todo do maciço do Pamir. Mas o que é o Pamir? Dito o "Tecto do Mundo", porque nele convergem as grandes cadeias que desenham a Ásia Central: O Hindu Kush, O Karakorum, Kunlun, os Himalaias, Tian Shan. Se não me engano, aqui compreendidas todas as altitudes acima dos 7000 metros do planeta Terra. É o "Pamir Knot". Por outro lado a palavra "Pamir" parece referir-se aos longos e largos vales que caracterizam esta região, vales altíssimos, zonas de preciosa pastagem, caminhos de passagem. Há o Grande e o Pequeno Pamir… Por outro lado existem os povos Pamir, definidos distrito a distrito, quase vale a vale. Uma família de línguas diferente, curiosamente aparentada ao pashto.


2 - A maior parte da população é Muçulmana Xiita Ismaelita, fazendo isto parte da identidade do Pamirs. Assim sendo a leitura dos procedimentos adequados ao dia-a-dia dentro do cânone religioso é mais permissiva, a mulher mais presente, mais visível. Muitas das fotografias da mulher afegã onde se vê a cara são de alguma destas minorias, menos sensíveis à proibição da visão da mulher.


3 - Esta província é riquíssima em pedras semi-preciosas. O melhor lápis lazuli do mundo é aqui extraído desde sempre (neste caso o "desde sempre" é há dez mil anos, parece), em Sar-e-Sang, nas encostas do Hindu Kush. As melhores turmalinas azuis são obtidas ali perto. Existe uma pedra semi-preciosa que se chama afganite. O acesso a estas riquezas condicionou sempre o interesse de muitos senhores, senhores da guerra. Os talibã tiveram-nas sempre como objectivo, falhado na primeira leva, conseguido agora em 2021. O governo central e as populações locais nunca obtiveram grande benefício desta riqueza imensa.





4 - O corredor Wakhan, o tal "bico para leste", é o fenómeno geográfico que mais chama a atenção nesta província. A sua origem está explicada acima. A fronteira sul é o Hindu Kush e o início do Karakorum. A leste está a China. A norte o Tajikistão, com a fronteira a cruzar o planalto Pamir e depois em direcção a oeste a encontrar o rio Panj, que depois no seu deambular para norte desenha grande parte do resto da província de Badakhshan. É a mais desolada das terras e a mais paradisíaca das terras. Já foi acessível a algum turismo agreste. Em 2014 todo o distrito foi constituido como Parque Nacional. Não sei o que isso significará no Afeganistão. Poderá ajudar à conservação do Leopardo-das-Neves, do Urso Castanho, do Lince, do Lobo, do Carneiro de Marco Polo. Os Wakhi são a população predominante aqui, embora a sua presença ultrapasse as fronteiras referidas. Serão e não serão tajiks, as opiniões dividem-se. Têm língua própria, serão umas dezenas de milhar. São predominantemente nómadas e podem ter uma residência de verão e outra de inverno. Na zona leste aparecem também Quirgizes, nómadas também. O corredor Wakhan é percorrido por uma estrada própria só para todo-terrenos, e apenas parcialmente. A comunicação com os países vizinhos faz-se por difíceis passagens abertas quase todas acima dos 4000m de altitude, abertas só no verão e acessíveis a poucos veículos, animais ou a pé. O Nova Rota da Seda que a China quer inventar não vai conseguir passar por aqui, embora, em sentido contrário, por aqui andaram Marco Polo e o português Bento de Goes.



5 - Qari Fasihuddin é o Chefe das Forças Talibã e é originário de Badakhshan. Dizem dele ser Tajik. Dado como morto várias vezes nos últimos anos, foi o responsável pela invasão com sucesso do Vale de Panjshir, agora já em Setembro e antes a rápida conquista das províncias do norte do Afeganistão, isto em colaboração aparente com Muhammad Sharifov, o chefe dum grupo extremista tajik que atravessou a fronteira e se pôs ao serviço dos Talibã. O governo do Tajikistão está inquieto. Qari Fasihuddin aparecia num canal de televisão Pakistanês como o "Conquistador dos Cinco Leões", sendo "cinco leões" o significado da palavra persa "Panjshir". Quem habita o vale de Panjshir? Tajikes.



6 - O Broghil Pass liga à altitude (relativamente baixa) de 3798m o corredor Wakhan com os terrenos altos do Pakistão a sul. Segundo um projecto da National Geographic, o Genographic Project, há 40000 anos uma dezena ou pouco mais de humanos passou por Boghril e depois derivou para oeste, portando uma determinada mutação que, evoluida, hoje se apresenta em quase toda a população da Europa Ocidental. Por ali começámos, Ocidente.



7 - O Dorah Pass fica na parte sul da província e fica a mais de 4300m de altitude. É uma estrada não pavimentada acessível no verão apenas a todos-terreno. do outro lado estã também o Pakistão e foi nos anos oitenta e noventa a principal porta de entrada de armas para os mujaheddin.



8 - Os rios de Badakhshan dão o grosso da água ao rio mais importante da Ásia Central, o Amu Darya, o Oxus descrito pelos gregos. A água imensa do Pamir, que no lado do Tajikistão possui os glaciares mais extensos do mundo fora dos polos, não consegue porém chegar ao seu destino. O Amu Darya desaguava antigamente na margem sul do Mar de Aral. Só que a parte sul do Mar de Aral já não existe. O Amu Darya, ressequido pelas plantações de algodão criadas nos tempos soviéticos morre nos desertos do Uzbequistão, depois de ter desenhado a fronteira entre o Afeganistão e o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Turcomenistão.



9 - A província de Badakhshan, lembro, é a parte que restou para o Afeganistão de uma entidade étnica bem maior. Que ultrapassa fronteiras montanhosas bem difíceis como o Pakistão e a China. Com o Tajikistão a fronteira é bem mais porosa e, durante umas centenas de kms, é um rio, o rio Panj, que depois vai ser o Amu Darya. Não há muitas pontes ainda a atravessar este rio mas onde as há, às vezes ligando povoações irmãs contendo o mesmo povo, a fronteira pode ou não estar aberta, consoante a estabilidade ou instabilidade guerreira. Fechada a fronteira a passagem será feita de uma outra maneira. Vidé Ishkashim, na curva para norte do rio Panj, do outro lado uma terra com exactamente o mesmo nome, uma ponte só construida em 2006. Para norte o rio Panj separa o distrito Shighnan no Afeganistão do distrito Shughnon no Tajikistão, e logo acima o subdistrito Rushan tem um com nome exactamente igual do outro lado. Gente a mesma, línguas da família Pamir, a cidade mais importante Khogur, do outro lado da fronteira, do outro lado do rio.





10 - A capital do Badakhshan é Fayzabad, uma cidade que fica a meio da zona norte da província, apenas a 1250 m de altitude, logo à saída das grandes montanhas. Fica junto a um rio e tem um pequeno aeroporto e, dizem, uma universidade. É o centro comercial desta parte ocidental do Pamir, no interface entre a montanha e a estepe. Ficou ligada a Kabul por estrada alcatroada apenas há 2-3 anos. Tem a sua história. Aqui esteve uma relíquia muçulmana, o "Manto de Maomé", que hoje é venerado em Kandahar. Assistiu a algumas manifestações anti-talibã nos últimos dias, não se sabe se houve mortos.



11 - O Afeganistão produz 3/4 do ópio mundial. É também talvez o país com mais toxicodependentes, percentualmente 10% ou mais da população total. Assim será em Badakhshan. Badakhshan tem também uma grande produção de papoilas. Aqui não há heroína como em Kabul. O ópio é fumado ou mastigado. Uma parte importante dos consumidores são mulheres. O opio será o único analgésico e calmante disponível, depois vem a adição. Embora relativamente barato para os padrões ocidentais, o consumo do ópio leva à venda dos animais, da mobília, de casas, das terras. Há bebés que nascem dependentes, pelo consumo das mães grávidas. Ou então as mães sopram o fumo para a cara dos mais pequenos, para os acalmar, não tendo outros meios, sem comida, sem leite, sem nada.


12 - O Noshaq é o ponto mais alto do Afeganistão, com 7492m e fica no Hindu Kush, na fronteira sul da província com o Pakistão. É o pico acima de 7000m mais a oeste do planeta Terra. Em 2016 foi escalado pela primeira vez por uma mulher afegã montanhista. Numa expedição de 2018 uma das mulheres afegãs a subir tinha 18 anos. Suponho que fez a escalada sem burka nem niqab.

 

 

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