sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

"Quadro surrealista para a sala: Perfeito."

"The Surrealists sought to channel the unconscious as a means to unlock the power of the imagination. Disdaining rationalism and literary realism, and powerfully influenced by psychoanalysis, the Surrealists believed the rational mind repressed the power of the imagination, weighing it down with taboos. Influenced also by Karl Marx they hoped that the psyche had the power to reveal the contradictions in the everyday world and spur on revolution. Their emphasis on the power of personal imagination puts them in the tradition of Romanticism, but unlike their forebears, they believed that revelations could be found on the street and in everyday life. The Surrealist impulse to tap the unconscious mind, and their interests in myth and primitivism, went on to shape many later movements, and the style remains influential to this today."
 
 
Que em 2018 a frase que faz título se ouça num reclame de rádio da Volvo significa que o surrealismo não serviu para um caralho e que estamos a viver uma nova barbárie.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Sobre o crowdfunding e outras merdas.

Olá.
Começo pelo crowdfunding. Tem provavelmente mais de cem anos a boa prática de os sindicatos criarem os chamados "strike funds" para que, durante a greve, o trabalhador não morra à fome e tenha p pão, água, luz, tecto, ao receber uma "strike pay". Que os heróicos sindicatos portugueses, quase nunca preocupados realmente com os seus representados, nunca tenham pensado nisto, enfim, a inteligência, sabemos, é bem escasso. Mas que medrou nos tais cinco enfermeiros que. Dizer que são os hospitais privados a contribuir é merda da grossa. Sobre o crowdfunding estamos conversados: boa malha.
Agora a  greve. É legal e ataca onde dói mais: nos, podemos chamar-lhes, "k's" dos hospitais, a sua produtividade cirúrgica. Nos cinco hospitais em questão os números de 2018 já foram. A sangria financeira é dupla: actual e futura, pois as cirurgias acontecerão. Quando, onde...
Cruel? Todas as cirurgias adiadas serão não urgentes. Mas há graus de não urgência. A espera implica sobretudo dor e risco. Sobre a dor, o sofrimento, tenho dito. Sobre o risco: ninguém pode garantir que aqui e ali o timing de uma promoção de uma cirurgia de não urgente a urgente falhe por tardio. Eu sei, a falha seria médica, porque o qualificativo, de urgente e não urgente, também o é. Mas não queria que fôssemos por aí. Qualquer greve no sector da saúde implica um risco e impõe um ónus de sofrimento na pessoa doente. E esta não é a primeira greve no sector da saúde. Para dar um exemplo, os meus doentes hipocoagulados com varfarina, se há uma greve nas colheitas não são controlados, logo o nível de hipocoagulação perde-se e podem acontecer embolias cerebrais, hemorragias... garantem-me que nunca aconteceram? Ou que aquele doente a que não se mediram as tensões no dia "x" porque houve uma greve não terá pago por isso?
Imaginemos que no sector da saúde se proibem as greves. Isso implicaria um estatuto compensatório similar ao dos militares, por exemplo, com salvaguardas várias. E carreiras, por exemplo.
Eu não teria coragem para fazer ESTA greve, confesso. Mas eu sou médico. Tenho prestígio, tenho uma carreira. As minhas noites, que infelizmente preciso de fazer muitas para ganhar bem, são razoavelmente bem pagas. Se eu ganhasse o que um enfermeiro do quadro do meu hospital ganha, o mesmo há vinte, trinta anos, apesar das noites, sem progressão, sem carreira, sem qualquer tipo de reconhecimento, obrigado a trabalhar noutro lugar mais vinte, trinta horas para chegar ao fim do mês sem dever, bem, não sei o que faria.

domingo, 9 de dezembro de 2018

O teu mais velho.

O prédio onde habito fica na urbanização do Foco. Antigamente os grandes condomínios chamavam-se urbanizações e não eram fechados, antes ofereciam às gentes do exterior um jardim central que hoje ainda é um dos espaços públicos mais bonitos da cidade do Porto. Entro para a garagem pelo topo sul onde há uma barreira que ora sobe ora desce. O meu apartamento fica no topo norte. Faço quase meio quilómetro subterrâneo para chegar ao lugar que, alugado, é meu.
Junto à dita barreira está sempre alguém, chamemos-lhe segurança. Que não é de empresa nenhuma mas sim um empregado do condomínio. Conheço-os, cumprimento-os. São dois irmãos, completamente diferentes um do outro. E depois há um terceiro que me parece não jogar com todo o baralho de cartas. Há ainda outro que só faz noites, que é mais moreno.
Contrataram agora um rapaz novo. Digo rapaz porque não terá trinta anos. As funções ali na barreira são escassas. A minha urbanização abunda em idosos.  Os problemas com as entradas, as saídas, os comandos, etc serão frequentes. Às vezes alguém carrega, alguém descarrega. E é só. O rapaz, branco de cara, cabelo um pouco encaracolado, barba feita, por ali está, sério, fumando um e outro cigarro. Nunca o vi sorrir. Cumprimenta-me desde o primeiro dia, vendo em mim talvez um aliado, ou um igual. Que vida mais triste. Sei que terá uma paga fixa ao fim de cada mês, e isso à superfície de toda a terra ou indo por todas as ruas desta cidade, nem toda a gente tem. Mas porque isto não é só, por pouco que seja, dinheiro, que vida triste!
O rapaz costuma pôr um pé sobre um pino que há ali, apoia o cotovelo na perna e fica assim a olhar. Parece interrogar a esfinge. Ou então senta-se na beira de um murete que fica ao lado e apenas olha, também. Nunca o vi falar com ninguém de fora, nunca notei que o procurassem nem lhe notei pressa para sair, ir embora, partir. Uma vez dirigiu-me a palavra e a sua voz era estranha, fendida, como se por falta de uso.
 
No olhar lembra-me o teu mais velho.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Jane Austen - Sense and Sensibility ("diffident / driving a barouche")

"Edward Ferrars was not recommended to their good opinion by any peculiar graces of person or address. He was not handsome, and his manners required intimacy to make them pleasing. He was too diffident to do justice to himself; but when his natural shyness was overcome, his behaviour gave every indication of an open, affectionate heart. His understanding was good, and his education had given it solid improvement. But he was neither fitted by abilities nor disposition to answer the wishes of his mother and sister, who longed to see him distinguished—as—they hardly knew what. They wanted him to make a fine figure in the world in some manner or other. His mother wished to interest him in political concerns, to get him into parliament, or to see him connected with some of the great men of the day. Mrs. John Dashwood wished it likewise; but in the mean while, till one of these superior blessings could be attained, it would have quieted her ambition to see him driving a barouche. But Edward had no turn for great men or barouches. All his wishes centered in domestic Comfort and the quiet of private life.
Fortunately he had a younger brother who was more promising."

domingo, 2 de dezembro de 2018

Os pontos altos e um aniversário.

Eu sei que tu reparaste porque tu és daqueles que reparam: o cinzento a dominar o dia, as nuvens, só nuvens sobre a paisagem, esta reduzida a quase não ter cor.
Num dia assim os pontos altos podem nem acontecer, podemos estar reduzidos a ficar sempre pelo meio das coisas. Onde os pontos altos não estão.
Mas a puta da vida, felizmente, tem a sua versão pessoal para cada um de nós. E tu e eu sabemos que ela é para rir. Como aquele miúdo ontem na televisão a dizer que "assédio" é quando "alguém diz alguma coisa estranha e nós não sabemos o que é e perguntamos: A sédio?"
E felizmente fazes tu anos hoje, Nelson, e isso e umas poucas coisas mais servem para salvar este dia cinzento, haver pontos altos e estarmos todos de parabéns!

domingo, 18 de novembro de 2018

Aiaiaiaiaiai!

Nesta nossa sociedade nova e limpa resiste uma pequena mancha: são os ciganos. Há uma publicidade a uma rábula de humor na hora nobre da TSF onde acho que é o Eduardo Madeira a fazer uma imitação: "Aiaiaiaiaiaiai! - é a Ford Transit do cigano que custa a pegar de manhã!"

Os ciganos são maltratados, segregados e menosprezados desde "sempre". A par com os judeus na Segunda Guerra os nazis mataram talvez meio milhão de ciganos, um genocídio de que ninguém fala. Maltratados, segregados e menosprezados desde "sempre" ainda queríamos nós que eles se portassem bem! Lido frequentemente com eles no ambiente onde trabalho. Gregários até ao excesso, furam as regras para estarem sempre juntos. Intimidam se fôr preciso, pois sabem que lhes temos medo. Toda a gente diz: "Não têm trabalho, olha para eles para ali parados!" quando eles o que fazem é parar a dita Ford Transit dentro do Hospital, furando mais uma vez as regras, não ir à feira e acampar à porta de todo o Hospital onde há cigano doente. Acampar é fixe  e verde e ecológico excepto quando é um acampamento cigano e na relva em frente de nossa casa ou do nosso trabalho. Sim, nunca tive problemas com eles nem na consulta nem no internamento. Não, não fico exultante quando eles são meus doentes: o diálogo nunca é fácil. Falar com eles é sempre negociar. Nunca confiam. No internamento comem apenas da panela deles, furando pela quarta vez as regras. Ou será a quinta vez?

Nunca deixam um deles para trás. Se fôsse pelos ciganos a "indústria" dos Cuidados Continuados tinha morrido à nascença.

O Rendimento Mínimo Garantido não se chama Rendimento Para o Cigano Garantido. Eu gosto dos ciganos. Não os queria talvez para vizinhos. A minha culpa é esta. Não termina aqui. A piada do Eduardo Madeira, impossível de fazer se aplicável a outras minorias, devia desaparecer do mapa. E assim não temos legitimidade, "nós", para exigir que "eles" se portem bem connosco.

Da Tourada.



Nunca entrei numa praça de touros. Não quero entrar. Considero a tourada um espectáculo onde algo de belo pode às vezes acontecer mas onde o sofrimento de um animal acontece sempre. Acho que com o tempo a tourada vai desaparecer e ainda bem. 

A tourada é herdeira directa a um tempo do circo romano e dos matadouros - porque o touro quase sempre morre no fim. O seu refinar criou uma linguagem e uma estética que foi cantada durante séculos. Pode ou não definir muito do que é "Ser Espanha", por ex., Ortega y Gasset achava que sim. A tauromaquia foi desenhada e pintada por Goya e Picasso, cantada por Machado e Lorca. Ditos estes não precisamos de Hemingway para nada. Em Portugal, por ex., António Osório. 
Manolete, Ordoñez, Dominguín, o toureio apeado criou heróis para o povo, a coragem e a vertigem logo ali. E depois cantaram-se os heróis. Sobre Ordoñez: "(...) Com a capa, toureando com verónicas, Antonio Ordoñez anula os melhores. Verónicas com um grande jogo de braços, suaves e espectaculares, lentas, magníficas, verónicas densas, dramáticas e profundas, carrregando a sorte, verónicas alegres, aladas e palpitantes com os pés juntos, meias verónicas amplas, fechadas com petulância sobre o corpo, como uma flor misteriosa. Com o capote, para adornar, é límpido, matemático, preciso. (...)".
O touro é um espelho do homem, o animal bravo por definição, que o homem quer vencer e mata. Porque todos os touros são de morte. Não houvesse o homem não havia o touro. Sempre vimos os animais em função de nós. O touro é o caso mais extremo, mais brutal. O toureio apeado teve também dias de glória em Portugal, vidé a rivalidade entre Manuel dos Santos e Diamantino Viseu. O toureio a cavalo, coisa mais nossa e mais de nobres e príncipes, não tem o perigo tão ali, e adiciona à crueldade ao touro aplicada o terrível adestramento de um cavalo para vencer o maior dos medos. No entanto, com Manuel dos Santos, Mestre João Núncio, cavaleiro Maior, foi uma das figuras do nosso século XX. A reforma agrária matou-o. Os forcados, já agora, são ou eram eram os criados ou mais simplesmente os homens do nobre que para mostrar valentia dominavam o touro no fim de uma lide onde este já sofreu muito. 

Sim, a tourada vai acabar por desaparecer, está na sua hora. Mas vai ser o tempo das gentes a decidir isso, e não um decreto. Fica este poema de Alberto Lacerda, bem mais autêntico e sentido do que a medalha que António Costa terá dado a um forcado há uns poucos de anos:

*

PEGA DE CARAS


Ó fila varonil de olhos pregados
No touro a distância pouca e monstra
Ó homens apostados em pegar
De caras pelos cornos Minotauro

Silêncio ansioso aço quebrado
Pelos gritos do primeiro forcado

Arranque súbito da fera frente a frente
Leve tremor de terra
Que pesa brutal
Sobre o forcado
Arremessado ao ar mas que não larga
Os dois cornos como dois troféus

Dos lados pendem farpas humanas
Que largam de repente o touro negro
Quieto por instantes 
Seguro pelo rabo
Por um forcado um só

*

(ou este ainda, sobre o touro)

*

TOURO PARADO NA ARENA


Resumo brutal 
Das forças sem pergunta nem resposta

Mancha solar 
De luto por si própria.

*


terça-feira, 6 de novembro de 2018

A barba.

Hoje fiz a barba ao meu pai. Podia dizer que foi um dia para não esquecer mas vou passar a fazer-lhe a barba todas as semanas portanto haverá muitos mais dias para não esquecer.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Um Amor Sublime.

80 anos é afinal a melhor idade. É a idade em que ainda podemos sonhar com o corpo coberto de rosas. Com uma luz ainda mais forte do que o Sol. O medo não desapareceu nem desaparecerá, somos muito pequenos, enchem-nos de desgostos. Temos também a idade certa para pensar em acabar com tudo, até porque já aconteceu bastante. Mas ainda aspiramos por um amor sublime. 
Tudo isto eu aprendi ontem com uma doente minha.
Falta-me ler a "Cidadela", de Saint-Éxupery.

A Sara Sofia.

Hoje a Sara Sofia voltou a cortar o toro de pescada congelada em quatro no Pingo Doce onde fui fazer compras com a minha mãe. Não era a primeira vez.
Aprendi o seu nome a semana passada. Também estava na peixaria, dessa vez pesando e preparando duas douradas e um robalo para nós. A minha mãe tratou-a pelo nome e ela sorriu um sorriso aberto: "Pensei que não me reconhecesse!" "Então não? Estás igual?" "Estou nada!" E para a colega do lado disse da minha mãe: "Esta senhora foi a minha mestra! Fizemo-la passar uns maus bocados!" "Queria eu voltar a esses tempos!", respondeu a minha mãe. "E reconheceu-me! A mim que já tenho 37!" E sempre o sorriso aberto, enquanto escamava e estripava o peixe. 
A Sara Sofia quando novinha, foi-me depois contado, não queria muito ou quase nada com os estudos! Era conhecida pela "Boca de Riso". Deixou a escola e enrolou-se com um rapaz que não era do agrado da família. Desempregados os dois chegaram  a arrumar carros. A minha mãe viu-a um dia entrar num supermercado com um saco cheio de moedas e sair pouco depois com uma nota. Tem dois filhos e agora trabalha na peixaria do Pingo Doce e tem um sorriso tão aberto... embora os olhos, cheios de memória, desçam até ao chão. 

domingo, 28 de outubro de 2018

Intro.


Encontrei uma coisa nova. Não estava e não estou preparado para ela, a coisa nova. É uma coisa mesmo nova. E não estou preparado. Que saudades eu tinha de uma coisa assim tão nova. De não estar preparado. Deste medo ao novo.
O medo é bom e eu não sabia.

Os Tribalistas, o Coliseu e Bolsonaro.



Foi na terça-feira o espectáculo dos Tribalistas no Coliseu do Porto. Submeti-me ao seu domínio, o que exclui qualquer crítica. Obedeci, adorei. E subscrevo. Por uma noite pertencemos todos à mesma tribo.
Os Tribalistas são o grupo mais feliz do mundo. Vendem a melhor das felicidades, o mais verdadeiro amor, a mais certeira das vidas. São brasileiros. Mas a vida quase nunca é assim. Menos ainda no Brasil. No brasileiro estado do Rio de Janeiro em 2017 foram assassinada mais de cinco mil pessoas. Destas uma centena foram polícias, já agora. Nos vinte e um anos de ditatura, entre 1964 e 1985, no Brasil, o regime assassinou ou fez desaparecer entre quatrocentas e quinhentas pessoas. Percebem agora porque amanhã Jair Bolsonaro vai vencer as eleições brasileiras? Chegar vivo ao fim do dia está à frente da democracia. O desespero amanhã vai a votos.

domingo, 14 de outubro de 2018

Jane Austen - Pride and Prejudice ( "my happiness / herself" )

"- You are then resolved to have him? 
- I have said no such thing. I am only resolved to act in that manner, which will, in my own opinion, constitute my happiness, without reference to you, or to any person so wholly unconnected with me. -- It is well. You refuse, then, to oblige me. You refuse to obey the claims of duty, honour, and gratitude. You are determined to ruin him in the opinion of all his friends, and make him the contempt of the world. 
- Neither duty, nor honour, nor gratitude - replied Elizabeth - have any possible claim on me, in the present instance. No principle of either would be violated by my marriage with Mr. Darcy. And with regard to the resentment of his family, or the indignation of the world, if the former were excited by his marrying me, it would not give me one moment’s concern—and the world in general would have too much sense to join in the scorn. 
- And this is your real opinion! This is your final resolve! Very well. I shall now know how to act. Do not imagine, Miss Bennet, that your ambition will ever be gratified. I came to try you. I hoped to find you reasonable; but, depend upon it, I will carry my point.
In this manner Lady Catherine talked on, till they were at the door of the carriage, when, turning hastily round, she added:
- I take no leave of you, Miss Bennet. I send no compliments to your mother. You deserve no such attention. I am most seriously displeased.
Elizabeth made no answer; and without attempting to persuade her ladyship to return into the house, walked quietly into it herself."

Jane Austen - Persuasion ( "we never shall" ).


"Well, Miss Elliot, (lowering his voice,) as I was saying we shall never agree, I suppose, upon this point. No man and woman, would, probably. But let me observe that all histories are against you—all stories, prose and verse. If I had such a memory as Benwick, I could bring you fifty quotations in a moment on my side the argument, and I do not think I ever opened a book in my life which had not something to say upon woman’s inconstancy. Songs and proverbs, all talk of woman’s fickleness. But perhaps you will say, these were all written by men.
Perhaps I shall. Yes, yes, if you please, no reference to examples in books. Men have had every advantage of us in telling their own story. Education has been theirs in so much higher a degree; the pen has been in their hands. I will not allow books to prove anything.
But how shall we prove anything?
We never shall."

sábado, 15 de setembro de 2018

No semáforo a ouvir os Tortoise.



Estou parado no semáforo do Bessa, a janela aberta, à espera de virar para casa. Estou a ouvir Tortoise. Noite, meados de Setembro de 2018. Algumas coisas tenho feito que foram bem feitas.

sábado, 8 de setembro de 2018

Olha voltei a escolher Poesia, e chegámos ao 179!

Estamos quase a acabar. O século é novo, o século é outro. Estes poemas são agora para este século. Espero que sirvam. Tem pinta, o século, de precisar de poesia e bastante.




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RENATA COELHO BOTELHO (1977-)

Açoriana, filha de poeta açoriano já por aqui antologiado. Já publicou com ele, o que é curioso. Adora Yourcenar, o que é correcto. Psicóloga, já andou pelo Porto e desandou dele. Acontece. Poesia delicada.


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CARTA PARA A.

viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.



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MARGARIDA FERRA (1977- )

Licenciada em Comunicação. Trabalhou numa pizzaria e  no Palácio da Ajuda. Agora trabalha na Bertrand. Bummer! A segunda parte do seu livro de "abertura", "Curso Intensivo de Jardinagem", muito louvado, chama-se "Isto Não São Versos" e o segundo livro "Sorte de Principiante". Será?


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MORADA

Habitamos 
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois 
de fecharmos a porta.



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PEDRO SENA-LINO (1977-)

Vive em Berlim: fixe! Ensina escrita criativa: um insulto! Quem ensina escrita criativa devia ser proibido de escrever. Já agora, ensinar escrita criativa não é uma forma de pleonasmo? Mas gosto do poema abaixo.


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[Nollendorfplatz. Berlin lovesong]

é para ti, cidade, no teu anjo

como uma ruína morre e se torna vida. foi isto, tu comigo, nós.

não páras de te criar, cidade velha e nova, noiva. nunca chego suficientemente à tua boca, nunca te tomo todos os lábios de pedra.

começas no fim, inventas um rio, guardas o sol num quadro. queres amantes insones, que desfaçam as palavras todas contra o teu corpo. queres o seu fluído limpo, catedral, desejo absoluto. queres a fome dos loucos, que gera toda a gramática do futuro.

mas dobro-te as pernas com o meu amor, tomo-te os lugares onde nunca foste amada, bebida, desdobrada. dou-te o meu coração de sangue, se o quiseres - faz com ele uma esquina onde nunca mais um abraço de pedra e carne termine.

não te tenho nunca, e é por essa sede que me procuras, ruas. pontes onde nunca mais haja um muro que não seja invisível, arco. como são escadas as tuas águas, ó sempre grávida do futuro.

não páras de me criar, luta, amante. queres-me sempre mais além do que eu imagino ser eu. tão simples na tua natureza nua de milagre.

nas tuas ruas corre o meu sangue, nunca suficiente. só tu o bebes e ardes, música de água.

sei que nunca vamos chegar um ao outro. é por isso que quero que morramos juntos - dois tempos sobrepostos, como as galáxias amam.



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PAULO TAVARES (1977-)

A sua poesia nasceu do "Poema do Funcionário Cansado" de António Ramos Rosa. Deixou de ser funcionário, hoje ensina português. O título de um livro seu chama-se "Linhas de Hartmann", uma dura ironia talvez... e voltemos a Berlim.


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EM BERLIM, O INVERNO

Em Berlim o inverno dura sete
ou oito meses, e dizes que a cidade,
ainda um pouco porvinciana nos
seus tiques bipolares, vive e brilha
para os meses de verão. no centro,
os corvos propagam-se em redor
de catedral - e por esta altura,
na cidade materna, são os pombos
e alguns melros que se aglomeram
nas praças e nos jardins quase desertos,
como uma praga de pássaros um pouco
mais silenciosos, dizes que é impossível
um bater de asas no exílio, ou tirar
uma fotografia sorridente junto ao muro
de berlim. e no entanto, vendo-as
mais de perto, com a democrática
garantia de que nenhum monumento
se abate duas vezes sobre um corpo,
todas as caras sorriem para a objectiva.



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MARTA CHAVES (1978-)

Dona de um site, parece ser uma psicóloga exultante. Tenho dúvidas, pois as unanimidades... Diz que "vive por causa do amor". Certo... a rever. É que para além do amor e da alegria, ele há mais coisas.


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Estamos quase de viagem
para chegar aos pretextos
com que ordenar o real.

Aos nossos olhos a vida
arriscando-se numa curva
que fazemos inteira
sem perder a mão.

A minha fé aumenta
à medida que perco os medos
e ganho aos pequenos deuses
do dia-a-dia.

Disse-te isto e compreenderás
que o mistério que me cerca
vai sendo este modo discreto
de gostar de ti.

Imagino para o caminho,
a tonalidade desta aurora,
e nos teus ombros estreitos vejo
- troçando de mim - 
a alegria.



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JOSÉ LUÍS COSTA (1978- )

Será tradutor no Parlamento Europeu. Portanto de duas coisas nele gosto: sabe grego e promoveu uma leitura pública de António Gedeão. Diz que preferia, adolescente, ler a poesia na rua, no Terreiro do Paço. E chovendo? Ah, as arcadas...


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ACROBATA
Antes do primeiro passo, lembra a fartura da rede dos tempos de aprendiz: Estepe de Almofadas, Oceano Salvífico. Vinho que não bebeu: nunca caiu. Hoje, nada a salvaria. A cidade veio toda. Se mar há que a submerja, é o do apetite da cidade para quedas, quebras, feras – lajes de granito querendo o seu cristão.

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VASCO GATO (1978- )
Traduz. Tem a poesia reunida da nova colecção Plural da INCM. Descende, dizem, de Herberto Helder.

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17

Estás no meu pensamento como a flecha no flanco vivo da presa.
Porque tu sabes que o homem é uma pirâmide onde dorme um animal raro. Sabes que há uma aliança secreta entre a carne e o violino de Deus.
Que a morte embebeda.



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JOÃO MIGUEL HENRIQUES (1978- )
Tens sorte, João Miguel, porque ultimamente eu e os benfiquistas...


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ROTEIRO

lestos, farejantes
avançando na tua pegada
bordejamos o rio
na conquista do vale

levamos o vento pelo braço
a erva alta junto ao flanco
seguimos-te o passo

contornamos penedos
por entre saltos de lebre
sobre largos troncos caídos

subimos contigo uma colina
suspeitando à nossa ilharga
o ocaso sereno do dia

e a um vislumbre de oliveiras
suspendes o andamento

levas o lenço à testa
e voltas a face
com os lábios em sangue:

"estamos perto"




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GOLGONA ANGHEL (1979- )

"Antes que instalar-se num lugar, a tarefa é tentar sair." Assim o site das Quintas de Leitura apresentava a poeta no início deste ano. Romena radicada em Portugal desde o século passado, impregnada no país e no seu pathos, escreve num português impecável sobre as desgraças de todos os dias, misturando um certo namedropping cultural com brutalidades várias, não lembrando Fátima Maldonado porque as turbinas não aquecem tanto, fazendo pouco dela e de nós. Quem inventou (ou usou pela primeira vez num poema) a expressão "ridiculum vitae" é para mim uma amiga. A cabeça pequena como a Comaneci...

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Não me interessa o que
dizem os dissidentes da ditadura.
Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no Natal.
Não acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.

Não vou pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos económicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.

O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba solitária,
neste caniche de apartamento que vos fala agora?  



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RAQUEL NOBRE GUERRA (1979- )

Doutorou-se em Pessoa, não mandou ninguém ir por ela. Palavras-chave? Gatos, cozinha, onde escreve. Um lirismo desalinhado, diria eu. Tudo o que escreveu no início seguiu para a cova com a avó, numa disquette nas mãos da falecida, 2008. Se fosse hoje seria uma pen. 


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Uma vez ofereceste-me bananas
flores para ti, vinha escrito.

Percebo bem a inutilidade da poesia
como de resto a literatura que finge
a mínima desordem dos mundos
o que importa é fingir uma pose.

Explico.

O mais extremo acto de egoísmo:
ter a dimensão própria da caricatura
e endossá-la aos outros.

O que toca a afinal e a quem, que sejamos sinistros?
E o amor um candeeiro de rua frouxo que à nossa passagem se desliga.

Dou conta dos perecíveis.

De ti sabe-se que tinhas um jeito especial
de dar bailinho aos deuses com as mãos
enquanto eu de nariz espetado nesse cima
preferia o abandono onde nada me faltava.

Entendo agora que as bananas dormem com as tuas mãos debaixo da terra e que o nosso amor flutua                                                                                                                                         ainda na calcite.
O mundo, seja como for, cabe nisto.

E eu corro para casa com um bouquet de flores mas tu não estás.

Nada que não estivesse previsto,
heartbreakers, love comes in spurts.



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FILIPA LEAL (1979-)

"Nunca gostei da realidade e não pretendo gostar." É uma boa frase, dita por uma mulher que quis ser palhaço e escreveu sobre o humor em O'Neill, Jorge Sousa Braga e Adília Lopes. No Google aparecem demasiadas fotografias e ela faz demasiadas coisas, e começou a escrever demasiado cedo, e o valter hugo mãe (ou já era o Valter Hugo Mãe?) escreveu sobre ela, e o EPC, e o FJV, etc., etc, só defeitos, o amor coisinho a ser escrito por todo o lado mas gosto do poema abaixo...


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ESTÁTUA DA LIBERDADE

E ali estava - nós a atravessarmos de barco
a alegria: o pai ainda de bigode, de chapéu castanho,
a mãe de óculos e écharpe, a Marta que em breve seria mãe também
mas não sabia que transportava no útero mais um passageiro,
o Miguel, pequenino e corajoso, sempre a tentar que os pés não doessem
de tantas avenidas, e o João Pedro, tão recém-casado, tão recém-feliz,
tão quase pai também sem o saber;
nós ao sol, de costas para ela, de frente uns para os outros, pressentindo
que Nova Iorque só interessaria por ali termos estado muito juntos,
e que na passagem dos anos apenas isso importaria, apenas isso:
termos ali estado distraídos, sentadíssimos, confortáveis
como os nossos corações.
E de repente ali estava ela a imitar os montes, de um verde indecifrável,
ali estava a imitar os homens invadidos, pesada, com picos na cabeça,
de braço esticado a tentar a luz, de livro pendurado,
ali estava séria, muda, quieta,
toda feita de pausa como um susto, como se jogássemos mímica,
como se a seguir nos pregasse uma partida, um grito,
e desfizesse a pose e risse de boca muito aberta à brincadeira,
livre então dos curiosos que empunhavam câmaras como se vê-la
assim, parada e incapaz, fosse espectáculo digno de registo.

Nós a chegarmos à ilha, a desembarcarmos do alheamento,
nós do tamanho familiar, todos de cabeça ao alto na inacessível sombra,
nós a rirmos das pessoas que lhe descobríamos na cabeça,
eles literalmente à varanda da cabeça, os visitantes,
ignorando que um futuro dia de Setembro inibiria aquela subida aos céus.

E ali estava ela de nariz empinado, recusando o gesto de anfitriã:

alta e ofendida
estátua
que era preciso limpar.


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MIGUEL-MANSO (1979- )
Nascido em Santarém, infância em Almeirim, fuga para Lx. Várias profissões, várias derivas. Há aquela história de uns carimbos comprados numa loja de Gent, e que para cada carimbo o poeta começou a escrever livros de poemas. Retirado do mundo na Sertã, não tão marginal assim, disse-me a Dina da Poetria que era a revelação dos últimos anos. Habilidade para a coisa há muita, não me reata a dúvida. Entusiasmado sim e muito, entusiasmante às vezes. Às vezes faltando-lhe a "grande razão" sem a qual não vale a pena escrever. Últimamente os títulos dos livros são menos fixes. Sabedor da arte do poema longo, do vocabulário arcaico e do salto mortal, o poema abaixo é contido e certo. E muito bom.


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O TEMPO CIRCULAR

há uma fotografia de ruy belo
e há também aquela praia muito ténue de “não há morte
nem princípio”

ou há uma fotografia do meu pai numa
beira-mar de moçambique

sentado com um outro que nunca soube
quem era, óculos escuros – a mocidade

– esse outro

o meu pai olhando o mar para lá do
fotógrafo como se o fotógrafo

e
agora
quem vê a fotografia segurando-a
com a mão vindoura

como se não existissem
não existíssemos mas que fosse minha
também

aquela praia onde ruy belo
ainda não usava barba e cabelo à ruy belo
à

allen ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)
tudo gente que habitou longamente
em algum momento uma praia

uma praia

que eu sei que há e que aconteceu
também quando eu morri

quando eu também fui jovem
e poeta numa fotografia ou num reflexo

de garrafa

a minha imagem
a beira de um verão segurando

desde o peito a vida


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TIAGO PATRÍCIO (1979- )

Ora aqui temos um trasmontano (nascido no Funchal) apaixonado pela República Checa. E cheio de dinamismo, ou não fosse farmacêutico. Ele é romances, ele é teatro, ele é... o poema abaixo, o mais certo dos que lhe li. Tão só pelas duas últimas linhas.


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OS PINTASSILGOS DE MIRANDELA

Nasci numa casa com gaiolas brancas
espalhadas pelo Verão
Era o meu pai vivo e o meu avô estival
entrava pela hora mais terna
enquanto encarregado das gaiolas
e a minha infância inteira decrescia
no canto da casa dos pássaros

O alpendre era de uma inclinação natural
com avô e pássaros encostados à sombra dos álamos
e as gaiolas casas que os abrigavam
do frio, da fome e dos gatos bravos
A minha alegria era quente como a terra
e contava ensinar ao meu filho bisneto
a atracção pelos grilos, caracóis
e pintassilgos na doçura das borboletas

Em Mirandela havia um vale junto a um rio
com pomares e o cheiro de figos fáceis
Os pintassilgos divididos na abundância
eram como crianças atrás de amoras
que inspiram as flores de uma música sucessiva

O Pintassilgo é a mais bela ave silvestre
e se não pudesse manter as gaiolas em casa
era como se não houvesse onde permanecer
Eles amotinam-se nas minhas barbas
desalojam corvos e os dragões dos poemas
fazem a tarde parecer tão antiga e adormecer
como a infanta primavera em que o meu avô
era o estio e os bisnetos existiam mesmo
e os nossos olhos acariciavam os pássaros,
que é tão tarde agora para dizer aqueles que morriam
exaustos a contar os meses atrás das grades


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Um pólipo de nada! Ou a vida é para os que esperam.

À espera para um exame é como se estivéssemos à espera mesmo para um exame. Iremos passar? Esperava, na terça-feira que passou. Esperava acompanhando. Que na medicina sempre é preciso rever, comparar, comprovar. Com a minha farda de militar entrei pela porta da Gastro e perguntei alguma coisa, um estrondo atrás de mim. "Caiu, doutor?" - perguntaram-me na brincadeira. Caíra sim, um acompanhante septuagenário de uma senhora septuagenária que vinha retirar um pólipo. Desamparado mas não muito magoado estava o senhor, a não querer sentar-se: "não posso, dói-me o cu, estou assim há muito tempo, tenho umas bolhas!" "Devias ter ficado em casa, homem!", dizia a senhora, um olho que não vê, e cega por perder o protagonismo que a polipectomia lhe prometia. Em maca entrou o acompanhante para dentro antes do que a doente encartada a polipectomizar. A minha farda de militar obrigou-me a auxílio e em auxílio lá voltei a entrar. Coloquei a voz, vimos os vitais (quase) todos. Ele explicou-me: entupido uns largos dias, tomara uns medicamentos e ficara com o cú um pandeiro, não se podia sentar, uma cruz! A mulher entretanto entrara e desanimada já dizia "que não me tirem o pólipo!". O senhor tinha esgrimido a famosa password "sou diabético!" - ora glicemias bem ,um pouco hipertenso, taquicárdico, barriga penetrável. "Vai passar!" Mas a pressa no coração mantinha-se, a cara de doente não enganava, havia marosca. Dois telefonemas, convencer uma auxiliar a auxiliar, despachado o artista para a urgência. Conversa a descarregar o stress, a brincadeira, o inesperado. Apesar de tudo havia um exame por acontecer... Passaríamos? 
Ligo para a Colega e Amiga da urgência e ela diz-me "pois, com quarenta de febre!". Tínhamos visto os vitais QUASE todos! Ai esta medicina quase perfeita...

Foi operado à tarde, drenagem de abcesso poliloculado no mais íntimo do traseiro. A esposa, polipectomizada, voltou sózinha para casa de táxi. 

Quanto ao exame, passámos!

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Contar a Luz ou Um Momento!

Um deste dias, devia eu estar naquele meu tão peculiar estado de sonolência depois de almoço com-uma-noite-meio-acordado-no-hospital ainda no pêlo, e tocaram à porta. É raro tocarem à minha porta, ainda mais à porta mesmo porta, não lá em baixo por onde entram as contas e a publicidade. Levantei-me, fui espreitar pelo buraquinho, perguntei: "quem é?". "Édêpê", disse um rapaz magro que num passo ballético tentava tocar a todas as portas ao mesmo tempo. "Um momento!", disse-lhe eu, como digo a quase tudo na vida. Estava em cuecas...
Passado o "momento", dirigi-me para a porta e abri. No momento exacto (ironia) em que o rapaz "Édêpê" entrava para o elevador e subia, ou descia, para nunca mais. Ainda repeti: "um momento!" Toda a gente sabe que dois (três, quatro...) momentos é demais. Fiquei ali, parado, sentindo-me traído. Ainda fui até ao elevador, apurando o ouvido. Voltei para a porta. Esperei outra vez. Depois fechei-a, aturdido.
 
Na minha vida já houve outros "momentos" assim, momentos "Quase", como diria Mário de Sá- Carneiro, e onde, como fez Eça de Queirós para sair do romance "Os Maias", fazemos de conta de que vamos apanhar aquele eléctrico e assim salvamos uma vida, a nossa vida. Falo de derrotas grandes como o mundo, mas que dizemos pequenas e que tratamos por tu. 
 
Mas, pensando agora bem, para que queria eu que aquele rapaz entrasse meio metro - nem isso - na minha casa e fizesse a famosa leitura no contador da luz? Para quê? Contabilizar o quê?
 
Estando a "Édêpê" em débito directo (como o tempo todos os dias) sei porém, verifico aproximadamente uma vez por ano, que as contas não fogem ao que realmente acontece. E o que realmente acontece?
 
Acontece (escassas vezes mas acontece) uma luz imensa. Acontece! E são esses momentos (poucos, ah! poucos) que contam. Cegam! Fazem ver mais.
 
Contar a luz? Acabei de o fazer.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Arouca e Monchique.



Em Monchique já ardeu uma área equivalente ao concelho de Ovar. 

Porque fechada a manhã fui até Arouca. Porque ainda há um mês chovia, nota-se que a terra ainda não secou. O verde? Exuberante. Limpas as beiras das estradas? Não. As matas, o mato baixo? Também não. Aliás, pelo relevo, em muitas zonas é impossível ou pelo menos difícil. As fileiras de eucaliptos terminam no asfalto. Alguma vegetação mais autóctone cobre alegremente a estrada. Uma sensação de perigo e de sorte. Conduzi em silêncio. 


Em Monchique não se sabe quando vai parar de arder. Talvez quando não houver mais nada para arder.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Do que me lembro da Guiné - sexta e última parte.

 
Era o dia da partida. Não foi por isso que o pequeno-almoço foi mais nervoso. Fomos visitar o Presidente do PAIGC. No quintal da frente da sua casa estacionava uma viatura militar da Ecomib, possivelmente senegaleses, togoleses ou nigerianos. A Ecomib está na Guiné para garantir a paz desde 2012. Também por ali uns quantos elementos da entourage, malta nova e entroncada, alguns deles conhecidos dos nossos anfitriões. O Presidente é do Sporting e sobre a reunião nada mais posso comunicar. Onde para além do Presidente estava a Secretária de Estado da Saúde para tirar apontamentos. No fim de tudo ele confessou-nos que iria viajar connosco também para Lisboa - o seu chefe de segurança tinha um problema cardíaco, em Lisboa saberiam o que fazer com ele. Que engraçado, um chefe de segurança com uma cardiopatia!
Antes tinhamos ido a um coreano tirar fotografias. Para ganharmos direito à volta de ter visto de residentes, mais simples. A entrada amarela da fotografia? É o coreano.
As sedes das delegações do Benfica e do Sporting em Bissau são referências geográficas. O Benfica tem, para além do mais, um bom restaurante, gerido por um senegalês. Ali almoçámos. 
Pela tarde fomos a uma missão entregar encomendas várias e variadas. Uma missão é, entre outras coisas, um espaço ordenado, limpo, e cuidado, o que fora de Bissau é uma excepção, um oásis. O demais também será bom.
Ao fim da tarde o meu amigo oficial da Força Aérea veio entregar-me uma encomenda de camarões pescados horas antes, que viajaram comigo para Portugal - ainda estão no congelador, à espera de uma decisão. 
Tinha chegado a hora de partir. As despedidas fizeram-se no quintal onde as mangas continuavam a cair audivelmente.
Ao sobrevoar Bissau e ao despedir-me (era noite) esta pareceu-me mais iluminada do que à chegada, mas pode ter sido apenas uma impressão minha.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Do que me lembro da Guiné - quinta parte.


E, finalmente, saímos de Bissau. Não posso dizer que Bissau seja uma terra bonita. Terá sido antigamente? Dizer que uma cidade era bonita nos tempos coloniais é, mais do que incorrecto, injusto para os colonizados - faziam eles parte da beleza cénica criada por Portugal? A famosa beleza "português suave" ?
Por outro lado não posso manifestar qualquer opinião sobre os habitantes de Bissau. Caminhei pouco por Bissau. E nós, dois brancos, efectuámos todo e qualquer contacto com a intermediação dos nossos anfitriões, outros dois brancos, estes sim, percebi, bem conhecidos de muita gente. É um elogio a este simpatiquíssimo casal dizer que nunca senti receio. Posto isto, Bissau não me pareceu uma cidade particularmente perigosa.
Saímos de Bissau. Para onde? Se eu soubesse contava. Na estrada, em bom estado, uns mocinhos tinham uma corda estendida para ver se parávamos e dávamos uma ajuda. Não parámos. À volta de Bissau adivinha-se que houve muitos arrozais. Dizem-me que ainda há alguns. Alguns quilómetros andados entramos em terra de monocultura da castanha de caju, actualmente a maior exportação da Guiné.
No meio de uma desolação encontrámos o mais improvável dos resorts. Gerido por um português com sotaque e biótipo alentejano, não consegui perceber como aquelas cabanas tinham qualidades para temperar o calor asfixiante que estava e convencer alguém a nelas ficar. A praia estaria a quilómetros, enfim, eu não sabia onde estava. O que retenho deste almoço? As ostras. Confesso: nunca tinha comido ostras. Noutra vida voltarei à Guiné para voltar a comer aquelas ostras. O peixe depois também foi correcto. Falava-se de negócios, fugas, fronteiras passadas sob ameaça, dinheiro, muito dinheiro. Falavam em português mas era para mim como que uma língua estranha.
A praia ficava uns quilómetros mais à frente. Mais do que uma praia era a curva de um rio. Outro resort, uma esplanada com um avarandado com cheiro antigo, colonial. As instalações um pouco sofridas. Um calor perfeito, uma brisa a pedido, a linda curva de um rio cujo nome nem perguntei. Voltei a arriscar no gelo.
À noite jantamos nas traseiras da casa dos nossos anfitriões, à luz do luar e de uns petromaxes, sem luz e também avariado o gerador da casa. Éramos cubanos, éramos portugueses, éramos guineenses. Irmanados pela boa comida e uma amizade de dias. A guerra voltou à conversa, sempre voltava. Amílcar, e os mais. E a diabetes da decana dos cubanos, que a obrigava a voltar à ilha. A Guiné e a doença não são boas amigas. Fiz boa amizade com um simpatiquíssimo oficial (ex- ?) da Força Aérea da Guiné. Que ajudara os cubanos a fazer, nos anos setenta, a ponte aérea para Angola.

Do que eu me lembro da Guiné - terceira parte.

 
Bissau deve ser das cidades do mundo com mais farmácias. Há centenas. Percebe-se que o mercado é mesmo livre e que na Guiné não haverá nada parecido com o Infarmed a funcionar. Os nossos anfitriões possuem uma farmácia que só importa de Portugal - e que por isso assim se chama, Portugal. Visitei-a. Não conseguia competir em preço com as demais. Várias caixas de medicamentos estavam marcadas. O doente só tivera dinheiro para comprar "x" comprimidos. Quando tivesse mais dinheiro voltaria para comprar mais.
A Faculdade de Medicina fica um pouco desviada do centro de Bissau. Desviada do centro equivale a mais buracos na estrada, muitos. A Faculdade de Medicina é uma oferta e um esforço cubanos. Para a minha segunda palestra fui recebido num auditório pelos alunos e o grosso do corpo docente. A decana mandou levantar os alunos quando entrámos. O respeito cubano é de louvar. Não há hoje cá anfiteatros assim tão atentos, embora o rácio de telemóveis presente fosse similar. Na minha opinião correu bem.
Bissau é atravessada por uma Avenida / Auto-Estrada com aproximadamente duas faixas de rodagem de cada lado e um separador central. Nela circulam predominantemente dezenas e dezenas de táxis azuis e brancos decrépitos. Nela acontecem várias rotundas onde entrar faz lembrar os velhos tempos da Rotunda da Boavista sem semáforos mas melhor, melhor... e atenção que em toda a minha estadia não vi um acidente. Um enorme mercado informal acontece num dos lados desta Avenida, o mercado de Bandim. Que à noite é limpo meticulosamente, o que em Bissau é obra. Para que no dia a seguir tudo volte a acontecer.
Jantámos em casa dos nossos anfitriões, opiparamente. Foi o meu primeiro contacto mas não o último com os camarões da Guiné. No quintal, enquanto a conversa, alumiada por um luar magnífico, se prolongava pela noite dentro, de vez em quando acontecia o som de uma manga a cair.
 


Do que me lembro da Guiné - quarta parte.


Voltei ao hospital Simão Mendes. Quem começou a trabalhar na triagem do São João há trinta anos não se assusta com pouco, menos ainda com o acampamento montado pelos familiares à volta do Hospital. Atrapalham sim as conversas, aperceberes-te da enorme falta de meios, diagnósticos e terapêuticos. Numa parede o quadro hospitalar: o director da Radiologia não é médico. Radiologia, um serviço que faz... radiografias. 
Voltámos ao centro. Aconteceu-nos uma coisa engraçada no caminho: o velho Mercedes onde um jovem e heróico médico (digo-o a sério) nos estava a dar boleia ficou sem gasolina. O ponteiro do nível estava avariado. Conseguiu-se encostar o carro e ali ficámos na famosa avenida central, perto do  mercado de Bandim, onde o nosso atrapalhado motorista foi comprar gasolina. 
O centro de Bissau é a Praça do Império. Sempre terá sido. Agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, uma estrela aposta em cima ao monumento central erguido pelos portugueses ao "esforço da raça". No antigo Palácio do Governo reside o Presidente da República. Ali antes residia o governador português da província. Ardeu na guerra de 98-99, foi reconstruído recentemente com dinheiro chinês. Que um Presidente em teoria sem poderes executivos ocupe o antigo Palácio do Governador pode explicar em parte as últimas décadas da atribulada história guineense. Mais importante do que o Palácio, naquela praça está o Hotel do Império e os seus anexos, o Restaurante Império e a Confeitaria Império - onde se podem comer boas natas. Tem uma esplanada onde a Bissau viva passa e pára. Num canto sentado estava, a consultar um computador portátil e com malta jovem à volta, o cineasta Flora Gomes. Mas fomos outra vez almoçar ao Coimbra. O Hotel Coimbra alberga, para além de um Spa, uma libraria.
O Hotel Coimbra tem um terraço simpatiquíssimo, onde umas caturras não param de assobiar. De vez em quando o meu companheiro de aventura encara-as, sério, e elas calam-se. Assim sabe melhor o gin tónico, com gelo que eu já sei ser de confiança.
Jantámos outra vez, e bem, na Pizzaria Bistro.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Do que eu me lembro da Guiné - segunda parte.


O Hospital Central de Bissau chama-se "Simão Mendes", um enfermeiro herói dos tempos da guerra da independência. O calor era muito. Bissau é um enorme mangueiral com ruas e casas pelo meio. De vez em quando uma manga cai ao chão. O Hospital é uma construção colonial onde foram feitos acrescentos e remendos. Num pavilhão pre-fabricado numa lateral ia eu fazer a minha primeira conferência sobre o AVC.
O ensino médico pré e pós-graduado na Guiné é cubano. Foram os cubanos que me emprestaram o material para fazer a minha apresentação, assistentes os internos das mais diversas especialidades. Que foi feita. Bebendo muita água. Duas coisas apenas: o Simão Mendes não tem um aparelho de TAC. Ele só existe (o único do país) no Hospital Militar e, às vezes, funciona. Outra: o único anti-hipertensor endovenoso disponível chama-se furosemida.
Almoçámos no restaurante do Hotel Coimbra, bem. Arrisquei ao usar gelo local na cola. 
O calor complicava aquela coisa de não expor braços nem pernas porque haverá mosquitos e... Todas as manhãs tomava o meu Malarone religiosamente. Descansámos um pouco no hotel e depois, por questões colaterais que não são aqui chamadas fomos visitar uma casa antiga, abandonada, colonial, que pertencia a um antigo comandante do PAIGC. A guerra, a dura guerra da Guiné, sempre presente. O nosso anfitrião fez a guerra na Guiné e ele e o comandante partilharam memórias bem comuns. Conheciam os mesmos sítios, falaram das mesmas batalhas, paradoxais aliados.
Ainda me foi também apresentado o porto de Bissau. Que vi? Um molhe um pouco maltratado e uma imponente maré vaza sobre a qual pousados estavam vários barcos, à espera que a água voltasse. Acho que só me foi apresentada parte do porto. Ao longe o mangal.
Jantámos uma óptimas entradas e umas excelentes pizzas na Pizzaria Bistro.
 

Do que eu me lembro da Guiné - primeira parte.

 
Um amigo meu convenceu-me a ir - fins de Abril passado - falar sobre a minha área de trabalho à Guiné. Esclareço uma vez só que ao dizer Guiné refiro-me à Guiné-Bissau. E especifico que a minha área de trabalho é o diagnóstico e tratamento agudo do acidente vascular cerebral (AVC).

A ponte aérea da TAP entre o Porto e Lisboa é um atraso de vida. O que é o pior que se pode dizer sobre uma ponte aérea. No dia em que eu devia ir para Bissau perdi a ligação em Lisboa. Providenciaram-me um hotel em Santa Iria da Azóia e bilhete para dois dias depois. Passei a noite a vinte kms de Lisboa e junto a uma churrascaria que reclamava serem os frangos "Virados Para Si!". Ao jantar assisti ao Liverpool-Roma até aos 4-0 e subi para o quarto e para o wifi.
Na manhã a seguir fui apanhar o Alfa Pendular a Lisboa e vim passar o tempo de espera a Serralves. Bem pensado!

Chega-se a Bissau noite fechada. O aeroporto de Bissau chama-se Osvaldo Vieira, um herói da luta pela independência. Tínhamos um simpático casal de portugueses à nossa espera. As formalidades existem e é preciso preencher um formulário onde se estabelece a residência temporária e data previsível da partida. Os vistos já tinha sido tratados. A mala apareceu. Lá fora dezenas de taxistas esperavam pelos potenciais clientes. Havia alguma presença militar. Fomos desviados desta confusão e embarcámos num jeep que foi conduzido pela nossa destemida anfitriã até ao centro de Bissau e ao Hotel Coimbra. O quarto era correcto com um pé direito alto e um WC qb. Ah, e ar condicionado, claro! O gerador do hotel arrancou várias vezes durante a noite e o ar condicionado também.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Zero em Comportamento - uma exposição em Serralves.

Qualquer Museu de Arte arrisca-se a ser um Museu da História da Arte ao invocar sempre o passado para construir uma exposição no presente. "Zéro de Conduite" é uma média metragem de Jean Vigo de 1933, autobiográfica qb. Nela o realizador, usando uma forma cinematográfica inovadora, filma a revolta de um internato de jovens. Anos trinta...

No texto de introdução fala-se de irreverência, desrespeito, etc. Contra a Escola, contra o Museu. Mas nesta exposição as peças não são para tocar, os vigilantes vigiam. Um vídeo fala-nos do record da visita mais rápida ao Louvre, feita sobre patins, nove minutos e algo. Não vi  ninguém a patinar na exposição de Serralves. No mesmo vídeo aparecem as imagens dos protagonistas de "Ferrybueller's Day Off" a visitar alegremente o Art Institute of Chicago. John Hugues um revolucionário?

Vejamos bem: onde está a escola retratada por Vigo? Morta e enterrada. Sou velho quanto baste para ter vivido ainda os tempos do castigo corporal na escola portuguesa. Outras rebeldias aparecem, nos materiais usados, nas atitudes anti-artísticas, etc. Há o desperdício absoluto de um Jaguar dos antigos quase completamente destruido. E depois aparecem a mulher e o sexo. When porn is the new normal, tudo o que aparece, incluindo os testículos manipulados de Bruce Nauman, parece datado. E umas peças de auto-estimulação feminina serão, acho, perfeitamente incapazes de atingir o prometido pelo título: "The Pleasure Is All Mine". Não, Patrícia? Embora a emancipação sexual feminina ainda hoje seja um tema MUITO actual.

A sala principal tem um gradeado, umas jaulas, que ampliam a lógica da exposição. Circulamos a ver as peças com se numa prisão, mas com as portas abertas... 
No corredor aparece o importante "El Pasamanos" de Juan Muñoz, que há anos nos (eu estava com a Catarina) foi "explicado" por um vigilante na primeira versão do Espaço Axa nos Aliados. Um canivete oculto colado a um corrimão é um engano intemporal, uma traição. Não uma rebeldia.

Arte actual? Gostei de uma instalação de vídeo onde um homem com dois sacos pendurados das mãos impede o caminho a uns carrinhos de supermercado, imitando o herói de Tiananmen. 
Arte de hoje? Uma peça sobressaiu sobre as demais: "Liberté, Egalité, Beyoncé": em letras douradas sobre fundo escuro estas palavras estavam escritas, com um vídeo abaixo à direita onde uma jovem nos mostra a língua. Isto e a referência a "Ferrybueller's..." ficou-me.

A Revolução só tem sentido se criar Esperança. Como a que eu senti quando um vigilante me chamou à atenção, educadamente, para o "El Pasamanos" de Juan Muñoz, há meia dúzia de anos. 






quinta-feira, 31 de maio de 2018

A Conceição.

Nunca tivemos um doente em comum, à excepção de uma a cujo casamento assisti há meses. Lado a lado trabalhámos, à noite, claro, meia dúzia de vezes se tanto, na emergência, onde havia de ser. A mesma especialidade, preferimos caminhos diferentes, vivendo na mesma casa mas não frequentando o mesmo refeitório.

E, no entanto, quem ia adivinhar a falta que a Conceição Sousa Dias me fez hoje!

domingo, 6 de maio de 2018

As árvores brilhantes.


Estudei as leis da física no liceu. A luz acontece-nos. Felizes os que vêem. Por isso eu digo que está sempre sol ou então não havia dias. 

Mas eu acho que não. Sempre... não. Ainda sexta-feira à noite, ou ontem, sábado, era manhã. E ele há sítios anónimos, coisas de nada, momentos pequenos e discretos onde estaciona o pensamento e por ali fica horas, e sabemos a razão. Esses sítios, onde coisas de nada houve e momentos acontecem, se com árvores, estas ficam brilhantes, o verde subido, como se uma canção.

A minha explicação, e parece-me a única possível, é que dos olhos que viram parte uma luz autónoma, um extra de calor, e que ilumina as árvores que, testemunhas, estão ali.

E é assim.


sexta-feira, 6 de abril de 2018

A Flâneur, mais uma vez.

Hoje de manhã decidi ir a pé até à Flâneur para comprar um livro para um Amigo meu. Ainda não tinha visitado as instalações da Livraria Flâneur depois de ela ter mudado da Rua Ribeiro de Sousa para a Fernandes Costa, 88.
Livraria mais discreta não há. Uma montra decorada (escrita mais propriamente) numa rua das traseiras da Boavista, não havendo letreiro sobrejacente. Já lá tinha passado de carro mas hoje, com um veículo volumoso estacionado à frente, passei pela Flâneur no passeio oposto e não a vi. Não fosse o Google Maps... 
Convido todos a visitarem a livraria. O chão de madeira, as estantes de madeira, as mesas e as cadeiras de madeira. Encostada ao balcão a já conhecida bicicleta que serve para explicar que a Flâneur faz entregas ao domicílio. E a Flâneur tem ou aparenta ter... os livros todos que interessam! Para dar um exemplo, o "Veneza" da Jan Morris, que eu quis oferecer no virar do ano sem o encontrar, ali estava. Bem como o último livro de poesia do José Alberto Oliveira, o objecto das minhas procuras. E pode-se dar o caso de querermos um café, uma fatia de bolo, um copo de vinho...

Chuviscava.  A rua que liga a Fernandes Costa à Avenida do Bessa é a Rua João de Deus. À volta deu-me para apreciar e fotografar as variadíssimas ilhas que por ali subsistem. Para norte, cruzando a Pedro Hispano, a rua descaracteriza-se. À direita um edifício grande e até arquitectonicamente interessante tem a encimar um letreiro que diz "Altice". Antes havia Portugal, hoje não sei bem. Resta por vender o SNS, as escolas, os Jerónimos...

Pouco antes de chegar à Avenida do Bessa à esquerda um edifício alto, uma ilha moderna, que tanto perde em comparação com as antigas... E à direita também, passado o edifício "Altice". Lembrei-me de outro edifício que desenhava a esquina entre a Fernandes Costa e a João de Deus. Uma ilha de ricos. Plantada em terreno artificialmente elevado, as paredes de granito avermelhado liso, mudo. Numa esquina uma "loja" alta, sem letreiro que a identificasse - o condomínio? Dentro, sózinho, um funcionário ao computador fumava um cigarro pensativo, o alarme de incêndio desligado. E assim pela vida vamos.