domingo, 18 de novembro de 2018

Aiaiaiaiaiai!

Nesta nossa sociedade nova e limpa resiste uma pequena mancha: são os ciganos. Há uma publicidade a uma rábula de humor na hora nobre da TSF onde acho que é o Eduardo Madeira a fazer uma imitação: "Aiaiaiaiaiaiai! - é a Ford Transit do cigano que custa a pegar de manhã!"

Os ciganos são maltratados, segregados e menosprezados desde "sempre". A par com os judeus na Segunda Guerra os nazis mataram talvez meio milhão de ciganos, um genocídio de que ninguém fala. Maltratados, segregados e menosprezados desde "sempre" ainda queríamos nós que eles se portassem bem! Lido frequentemente com eles no ambiente onde trabalho. Gregários até ao excesso, furam as regras para estarem sempre juntos. Intimidam se fôr preciso, pois sabem que lhes temos medo. Toda a gente diz: "Não têm trabalho, olha para eles para ali parados!" quando eles o que fazem é parar a dita Ford Transit dentro do Hospital, furando mais uma vez as regras, não ir à feira e acampar à porta de todo o Hospital onde há cigano doente. Acampar é fixe  e verde e ecológico excepto quando é um acampamento cigano e na relva em frente de nossa casa ou do nosso trabalho. Sim, nunca tive problemas com eles nem na consulta nem no internamento. Não, não fico exultante quando eles são meus doentes: o diálogo nunca é fácil. Falar com eles é sempre negociar. Nunca confiam. No internamento comem apenas da panela deles, furando pela quarta vez as regras. Ou será a quinta vez?

Nunca deixam um deles para trás. Se fôsse pelos ciganos a "indústria" dos Cuidados Continuados tinha morrido à nascença.

O Rendimento Mínimo Garantido não se chama Rendimento Para o Cigano Garantido. Eu gosto dos ciganos. Não os queria talvez para vizinhos. A minha culpa é esta. Não termina aqui. A piada do Eduardo Madeira, impossível de fazer se aplicável a outras minorias, devia desaparecer do mapa. E assim não temos legitimidade, "nós", para exigir que "eles" se portem bem connosco.

Da Tourada.



Nunca entrei numa praça de touros. Não quero entrar. Considero a tourada um espectáculo onde algo de belo pode às vezes acontecer mas onde o sofrimento de um animal acontece sempre. Acho que com o tempo a tourada vai desaparecer e ainda bem. 

A tourada é herdeira directa a um tempo do circo romano e dos matadouros - porque o touro quase sempre morre no fim. O seu refinar criou uma linguagem e uma estética que foi cantada durante séculos. Pode ou não definir muito do que é "Ser Espanha", por ex., Ortega y Gasset achava que sim. A tauromaquia foi desenhada e pintada por Goya e Picasso, cantada por Machado e Lorca. Ditos estes não precisamos de Hemingway para nada. Em Portugal, por ex., António Osório. 
Manolete, Ordoñez, Dominguín, o toureio apeado criou heróis para o povo, a coragem e a vertigem logo ali. E depois cantaram-se os heróis. Sobre Ordoñez: "(...) Com a capa, toureando com verónicas, Antonio Ordoñez anula os melhores. Verónicas com um grande jogo de braços, suaves e espectaculares, lentas, magníficas, verónicas densas, dramáticas e profundas, carrregando a sorte, verónicas alegres, aladas e palpitantes com os pés juntos, meias verónicas amplas, fechadas com petulância sobre o corpo, como uma flor misteriosa. Com o capote, para adornar, é límpido, matemático, preciso. (...)".
O touro é um espelho do homem, o animal bravo por definição, que o homem quer vencer e mata. Porque todos os touros são de morte. Não houvesse o homem não havia o touro. Sempre vimos os animais em função de nós. O touro é o caso mais extremo, mais brutal. O toureio apeado teve também dias de glória em Portugal, vidé a rivalidade entre Manuel dos Santos e Diamantino Viseu. O toureio a cavalo, coisa mais nossa e mais de nobres e príncipes, não tem o perigo tão ali, e adiciona à crueldade ao touro aplicada o terrível adestramento de um cavalo para vencer o maior dos medos. No entanto, com Manuel dos Santos, Mestre João Núncio, cavaleiro Maior, foi uma das figuras do nosso século XX. A reforma agrária matou-o. Os forcados, já agora, são ou eram eram os criados ou mais simplesmente os homens do nobre que para mostrar valentia dominavam o touro no fim de uma lide onde este já sofreu muito. 

Sim, a tourada vai acabar por desaparecer, está na sua hora. Mas vai ser o tempo das gentes a decidir isso, e não um decreto. Fica este poema de Alberto Lacerda, bem mais autêntico e sentido do que a medalha que António Costa terá dado a um forcado há uns poucos de anos:

*

PEGA DE CARAS


Ó fila varonil de olhos pregados
No touro a distância pouca e monstra
Ó homens apostados em pegar
De caras pelos cornos Minotauro

Silêncio ansioso aço quebrado
Pelos gritos do primeiro forcado

Arranque súbito da fera frente a frente
Leve tremor de terra
Que pesa brutal
Sobre o forcado
Arremessado ao ar mas que não larga
Os dois cornos como dois troféus

Dos lados pendem farpas humanas
Que largam de repente o touro negro
Quieto por instantes 
Seguro pelo rabo
Por um forcado um só

*

(ou este ainda, sobre o touro)

*

TOURO PARADO NA ARENA


Resumo brutal 
Das forças sem pergunta nem resposta

Mancha solar 
De luto por si própria.

*


terça-feira, 6 de novembro de 2018

A barba.

Hoje fiz a barba ao meu pai. Podia dizer que foi um dia para não esquecer mas vou passar a fazer-lhe a barba todas as semanas portanto haverá muitos mais dias para não esquecer.