domingo, 16 de fevereiro de 2020

Caspar David Friedrich (1774-1840)


Tive a sorte de há poucos dias, em Berlim, ver uma sala cheia de quadros de C D Friedrich. E percebi que precisava de o incluir na minha escolha. Friedrich é um pintor romântico que representa exactamente o oposto de Turner. Os seus grandes quadros, paisagens como os de Turner, são o romantismo "triste", ao contrário do romantismo "exaltado" de Turner. Os sentimentos de perda, suspensão, estranheza, solidão estão nos quadros de Friedrich como nunca estiveram em nenhum outro pintor antes ou depois. Vidé o "Mar de Gelo" (c.1824).






























O quadro abaixo foi pintado logo depois do derrame cerebral que limitou fortemente o pintor e é considerada a sua última grande obra - "Seashore by Moonlight (c.1835-6)

Da Eutanásia.

Ando há dias para escrever sobre isto. Porque hesito? Porque calo?

Foi graças a um referendo que o direito limitado ao abortamento legal foi instituido em Portugal. Foi em 2007. Escrevi então sobre isso. É curioso como as palavras de Pasolini voltam a ressoar na minha cabeça quando ouço todas estas discussões sobre a eutanásia. Com a diferença que agora parece que não vai haver referendo. Vou começar por aqui.

O referendo em Portugal vai morrer. Nunca devia ter nascido?
Vivemos numa democracia representativa. Onde elegemos quem nos representa e que serão portanto os melhores de nós. De quatro em quatro anos os elegemos. Porque o tempo passa e uma eleição é sempre um corrigir da mira. O referendo é o contrário da democracia representativa, é a democracia directa. A Suiça, por ex., esse país atrasado, pratica-o bastante. No nosso caso a figura do referendo nasce de uma cautela no que diz respeito à democracia representativa: serão os nossos representantes de hoje capazes de decidir sobre matéria importante para muito tempo, matéria que defina a organização de uma sociedade (a regionalização) ou a sua coluna vertebral moral e ética (abortamento, eutanásia)? Talvez sim. Talvez não. E aí recorremos ao corpo democrático donde tudo parte: NÓS. Nós todos. Eu sei que a pergunta isto, a histeria das campanhas aquilo, a abstenção, a desinformação. É uma chatice tudo isto, mas é a vida e isto de ter que explicar aos portugueses as coisas parece-me apenas e só uma obrigação. Eu sou a favor de um referendo.

Ela tinha um tumor do osso da coxa, inoperável. Tinha dores intensas, constantes, não dormia, não descansava. Era a jovem esposa de um conhecido meu do liceu. Conheci-a ao estagiar  - há 25 anos - num hospital onde, ao contrário do meu, já havia Consulta da Dor. A Consulta da Dor observou a doente, receitou-lhe um calmante, as dores continuaram. Nunca procurei saber como terminou esta situação desesperada. Hoje sei que as drogas existem e os quadros de dor dita "incurável" ou de dispneia "incoercível" são tratáveis. É só uma questão de dose e saber decidir.

Eu fizera a tropa com ele. Do meu curso de medicina era dos rapazes que mais me intrigava. Um tipo discreto, humor fino, vida calada, bom profissional. Éramos amigos distantes, mas amigos. Um cancro do pâncreas apanhou-o na viagem. Fui visitá-lo num internamento numa cama de intermédios do nosso hospital, onde ele estava por deferência a ser médico. A dor do cancro do pâncreas é dura de tratar, pede doses altas de opiáceos. O plexo celíaco começa por ali a ganir e nunca mais se cala. O pâncreas é fodido, e é fodido até ao fim. O meu amigo estava sem dores quando eu o fui visitar, a medicação em dose alta. O padrão respiratório era, em consonância, um sopro escasso. Falava com pausas. E falou-me do medo. Que estava no hospital por medo. Eu que sempre o tinha considerado um dos gajos mais tesos que eu tinha conhecido tinha medo de morrer em casa. Não sei se pelos filhos, essas ocorrências que tudo mudam. Morreu um, dois dias depois, longe dos seus, aparentemente por sua vontade.

Costumava dizer que os meus doentes nunca me tinham desiludido. Por exemplo o Sr. Alberto. Ocuparia uma tarde a falar das histórias que tive, que vivi com o sr. Alberto. Terminou os dias no meu serviço, uma insuficiência cardíaca grave e terminal, uma dispneia que demorou a ceder, sei bem que mal tratado porque sendo o meu serviço o seu médico não era eu, que as minhas camas eram em mulheres. E não me quis dar ao trabalho de interferir. O sr. Alberto viveu um, dois, três dias a mais, na minha opinião.

A dor imparável, a dispneia incurável, são as mais temidas queixas. Se o desfecho é conhecido, o prognóstico certo, a dor imparável controla-se, a dispneia trata-se, assumindo que como efeito lateral o doente pode sofrer uma paragem respiratória. O objectivo não é esta, é o controlo da dor, o aplacar da dispneia aflitiva. Se o desfecho é conhecido e, repito, o prognóstico certo, controla-se a dor, para-se a dispneia, termina-se o sofrimento. Como efeito lateral o doente acaba por falecer. Eu já fiz isto. E fiz menos vezes provavelmente do que devia ter feito.  

Portanto a mim parece-me que esta necessidade de criar de repente este caminho chamado eutanásia para se obter uma boa morte nasce de uma culpa que devemos, a classe médica, assumir: tratamos muito mal o doente terminal. Deixamo-lo sofrer, penar, viramos-lhe as costas, fechamos a porta, deixamos de o ouvir. E não estou aqui a falar dos famosos cuidados paliativos. Médico que é médico acompanha o seu doente até ao fim. Independentemente de pedir ajuda a quem sabe mais. Porque os nossos doentes vão morrer antes de nós as mais das vezes, e se em nós confiam é também para esse último momento, o momento mais duro, onde não falhamos, antes acabamos por rematar um bom trabalho entregando à morte bem quem bem tratámos em vida. 
É porque existe uma ideia popular - e que tem um substrato real - de que os doentes terminais sofrem muito que eu acho que as sondagens apontam para uma vitória da eutanásia, houvesse um referendo. A subscrição popular desta vontade apressada das elites em eutanasiar é culpa da classe médica.

Tenho muito medo da lei que vai sair. Concordo que perante "sofrimento duradouro e insuportável" se deva agir em conformidade. Temo por estas palavras que aparecem no projecto do PAN: "o pedido de morte medicamente assistida apenas é admissível nos casos de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente ou nos casos de situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva". Definam-me sofrimento psicológico intenso. Definam-me nível suportável. E atenção ao que é uma incapacidade definitiva, eu que trabalho na área da doença vascular cerebral.

Se houvesse um referendo votaria a favor. Ou, pessoa interessada, pessoa que sabe "demasiado", talvez me abstivesse, aceitando assim subscrever o que o meu país todo decidisse. Com o coração amargurado, porém. Porque, reparem, para as situações acima, nomeadamente para a primeira e para a terceira, esta lei na realidade não fazia falta nenhuma.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Édouard Manet (1832-1883)

O pintor Édouard Manet será o último dos pintores antigos mas é sobretudo o primeiro dos pintores modernos. 1863 é o ano em que aparece "Le Déjeuner sur l'Herbe" e "Olympia", sendo, sobretudo Le Déjeuner, os primeiros quadros "modernos". A forma de pintar de Manet era limpa, rápida, não detalhista, algo diferente dos seus colegas realistas, embora nunca se tenha vindo a confundir com os impressionistas que inspirou. O engraçado é que as duas obras acima, "modernas", dialogavam ora com Ticiano e Giorgone, ora com Goya. Manet pintou sempre em diálogo com a história da pintura, embora subvertendo-a. Escolhi para ilustrar isto este quadro que "é Velázquez", a "Criança Carregando uma Espada" (c.1861).



Manet encostou-se aos impressionista quando clareava a paleta e dava as boas-vindas à luz. Como na "Leitura" (c. 1865-73). Manet nunca foi porém um entusiasmado paisagista e a sua pintura não existia apenas por si, antes servia para interrogar alguém que interrogava de volta quem observava o quadro.