segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Toni Erdmann e Elle.



Dois filmes marcantes de 2016 retratam duas mulheres acorrentadas a vidas nulas por exercerem com oh tão suprema eficiência trabalhos executivos nesta nossa admirável nova sociedade. Em Elle Isabelle Huppert dirige uma empresa que produz videojogos. Em Toni Erdmannn Sandra Hüller é uma executiva intermédia de uma empresa alemã que está a "colonizar" a Roménia (a piada: o que visitar em Bucareste? O palácio de Ceausescu!). 

Ora bem: Elle é realizado por Paul Verhoeven, um homem. Toni Erdmann é realizado por uma mulher, Maren Ade. Será a visão de Maren Ade mais... justa? Certa? Elle é, lembro, um filme sexualmente durito: começa com uma violação. A personagem de Isabelle Huppert acaba por utilizar a violência sexual como catarse de saída para uma vida sem saída. A personagem de Sandra Hüller é outra história. Não está nem aí. A catarse não há, há sim uma importante correcção de rota, porque ainda há pais que se mascaram para (re)encantar as filhas. E o sexo que aparece é tristemente encarnado pelo namorado de triste figura que não-há-quem-lhe-dê-um-tiro de tão triste que é, tão abaixo da mais baixa raça canina. 

Elle é um romance negro. Toni Erdmann é uma bonita história. Talvez Maren Ade curiosamente ande mais perto do que pode ser uma boa saída para esta crise que vivemos.

Toni Erdmann e a Roménia.




Antes do mais quero dizer que espero que "O Vendedor", o filme de Ashgar Farhadi, seja muito bom (gostei muito de "A Separação"), pois Toni Erdmann, que perdeu para "O Vendedor" o Óscar para o melhor filme estrangeiro, é um filme mesmo muito bom. Esta qualidade não retira o facto de eu ter adormecido na primeira meia hora do filme, portanto, por justiça, abordarei apenas alguns aspectos colaterais do filme. Porque adormeci? Ando a dormir, felizmente, pouco.

O filme Toni Erdmann passa-se na Roménia. Recentemente vi, quase acidentalmente, um bonito filme romeno, "O Exame", de Cristian Mungiu. Lembram-se da história? Um médico apostava tudo num exame que permitiria mandar a sua filha estudar para fora da Roménia. Em Toni Erdmann a filha de Toni é uma executiva intermédia de uma empresa alemã que tem negócios na Roménia. Os alemães aparecem aqui como os colonizadores do século XXI. Curiosamente o negócio em causa, que não sabemos bem qual é, mete petróleo - a Roménia é o mais antigo produtor de petróleo da Europa, a par da Rússia.

Um doente - e amigo - meu custeou as despesas de um curso de Medicina de um sobrinho parece-me que em Brasov. Mas Brasov fica na Transilvãnia, no centro da Roménia, e é uma região (como outras da Roménia) que até ao fim da Segunda Grande Guerra, tinha uma população de origem alemã muito importante, que depois foi deportada (para a URSS) ou emigrou (para a RFA). Herta Muller, Prémio Nobel em 2009, nasceu na Roménia mas é hoje cidadã alemã. Sempre escreveu em alemão. Nasceu no Banat, outra região romena, donde também era um acordeonista de rua a quem dei meio euro em Matosinhos, vai para dez anos. 

Roménia mesmo Roménia é a espinha dorsal que formam as duas províncias da Moldávia e da Valáquia. A Moldávia que fica colada à Moldávia país - uma antiga República Soviética cheia de romenos que a realpolitik impede de se unirem ao país de origem.

A Roménia, lembremos, pertence como Portugal à União Europeia. Esta Roménia de que falei faz parte da doença europeia, ou faz parte da cura? 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A espuma das sextas.

Ela media um metro, ele talvez o dobro. E, à medida que se aproximavam do pavilhão das consultas, cantavam um para o outro.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Géricault e o filme Splendor In The Grass





Vai para uns anos fui objecto de estudo aturado por alguém que, para o fim, me rematou com esta frase: "Sabes o que tu és? Tu és um romântico!". Senti isto como uma espécie de insulto. 

A pintura romântica é uma chatice. Só hipérbole e espalhafato. Géricault, David, Delacroix. Friedrich. Lembro os olhos esgazeados de um cavalo numa pintura de Géricault. Delacroix ofereceu-nos A Liberdade a Guiar o Povo. Sabemos hoje que com um seio descoberto não se pode entrar no NorteShopping, quanto mais dois.

Se a pintura romântica é francesa ou alemã, a poesia é muito britânica. E aqui vem à colação os versos de Wordsworth de 1807 - retirados de uma ode com o simples título: "Intimations of Immortality from Reflections of Early Childhood".
E os versos são: "Though nothing can bring back the hour / Of splendor in the grass, of glory in the flower / We will grieve not, but rather find / Strenght in what remains behind."

Estes versos são o mote do filme "Splendor in the Grass", de 61, dirigido por Elia Kazan. O filme é ambientado no fim dos anos vinte, no início da Grande Depressão, mas na prática a fractura moral que o filme retrata mantinha-se em 61, pelo que o filme foi um sucesso. 

Warren Beatty faz o seu primeiro filme a contracenar com a já experiente - mas tão novinha - Nathalie Wood. O filme começa num carro junto a uma represa - a velha metáfora do correr das águas. Beijam-se. "Deanie, please!" "Bud, I'm afraid! Don't, Bud!" Antigamente as boas raparigas iam para o céu, perdão, para o casamento. As raparigas más não iam a toda a parte, iam sim para a traseira de muitos carros. Isto é o filme, apresentado com o estilo colorido e estridente de Kazan. Beatty/Bud e Nathalie Wood/Deanie estão perfeitos. Dez minutos depois da cena na represa a mãe de Deanie está a interrogá-la insistentemente sobre o que aconteceu. Deanie responde: "No, Mom, we haven't gone too far!" mas depois pergunta: "Mom... is it so terrible to have those feelings about a boy?". 

O resto do filme não resolve o impasse "físico" dos nossos amigos. Há muito ruído à volta da irmã do Bud e do pai do Bud, etc. Nada que na retina fique. Bud acaba a estourar o dinheiro do pai em Nova Iorque e nas putas, Deanie acaba no manicómio (dois anos? OMG!!!) depois de ter um déclic (que corre mal) correndo nua pela casa dos pais. A Grande Depressão acontece, A página vira-se. Deanie volta a casa dos pais. Encontra as velhas amigas que estão - Deanie não - algo mais rechonchudas, nitidamente mais velhas. A Deanie o manicómio fez-lhe muito bem, e o chapéu que transporta na cabeça quando volta à pequena cidade é efectivamente muito bonito. Terá conhecido um rapaz no Júlio-de-Matos-equivalent, que estuda Medicina e quer casar com ela. Deanie no entanto quer VER a sua antiga paixão, quer testar-se. Queimar-se-á? Os olhos de Nathalie Wood valem milhões.

Não revelo o fim deste filme - quero assim honrar o insulto que me atribuiram vai para uns anos. 

Um carro à beira-rio é um carro à beira-rio é um carro à beira-rio. É real, é pulsátil, tem aquela lógica de uma cápsula no espaço-tempo, pode acabar rápido, pode durar todo o tempo que resta e acabar por dar bom uso a toda a água de todos os rios. 

PS.: Não fomos feitos para viver dos restos, ok, Wordsworth?

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Apostilas sobre Santa Leocádia de Briteiros.

A primeira fila devia pagar mais.

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Chovia fora e dentro e no molhado.

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Outra vez!

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Sim, houve adesão. Não me arrependo.

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Cumbersome.

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Balança de imprecisão.

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Permitir não é permanecer?

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Deus me livre do piloto automático.

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Era um risco identificável, compreensível, intratável, acumulável, contemplável, etc.

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Não vou jogar mais com os teus dados.

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Diz-me a verdade. A mentira ulcera, sabes?

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Considero-me um ex-idoso.

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Trinta e cinco e meio, lembraram-me há dias. Como pude esquecer?

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Sou um desorganizador de eventos.

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Uma vez ao ano. Um veneziano. Vês? Uma dioptria no máximo.

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Conheço aquele velhote de outro congresso. Ou de uma separata, talvez.

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Didacticamente observemos este tecto.

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Compridos cabelos acompanham as melhores horas e as mais compridas.

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Finalmente um caso sério. Onde discordo, claro que discordo.

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Persistente, pertinente, permanente. Tudo é questão de dar-lhe ao dente.

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A expansão de um mercado mete sempre obras.

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Equipoise - lindo nome para um cavalo de concurso.

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A minha dissecção foi mais pequena do que a tua.

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Estudo a origem do mal, sobretudo aquele que é repetitivo.

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Não me impressionou o tamanho da amostra.

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Adormecer em tandém.

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Assumamos uma abordagem retrógrada.

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Complicar pede coragem. Mas a coragem maior é saber não complicar.

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Um hospital humilde era. No tempo em que os doentes falavam.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Auden et al.



" (...) When it comes, will it come without warning
Just as I'm picking my nose?
Will it knock on my door in the morning,
Or tread in the bus on my toes?
Will it come like a change in the weather?
Will its greeting be courteous or rough?
Will it alter my life altogether? (...)"

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O Recreativo do Foco.

Sempre achei que os clubes de futebol deviam ter nomes imaginativos. No tempo em que havia a ADO - Associação Desportiva Ovarense - e esta jogava ora na Distrital de Aveiro ora na 3ª Divisão, o nome a que eu achava mais piada era ao Recreativo de Águeda. Havia também o Ala-Arriba, que era, e é, de Mira.

Os criativos são os homens da publicidade. Não creio que alguém se dedique a apelidar de "criativos" a Scorceses, Paulas Rego, Pauls Austers, etc. O publicitário inventa literalmente necessidades onde antes não as havia. À volta disso criou-se uma série televisiva famosa onde os hábitos sexuais masculinos americanos do início dos anos sessenta foram glorificados - o que nada contribuiu para todos os prémios recebidos: falo da série Mad Men, obviamente. Criativos foram vários poetas portugueses, a começar por Fernando Pessoa ("primeiro estranha-se, depois entranha-se"), Ary dos Santos ("Sagres, a sede que se deseja") e a terminar no mais conhecido de todos, o Alexandre O'Neill do "há mar e mar, há ir e voltar". 

Nos tempos que correm parece-me a mim - eu sei que está errado mas este acumular de auto-referenciação me gusta - que nada de novo se cria. Muito menos eu criarei. Parte-se, baralha-se, voltamos a dar as cartas, jogamos. Quando muito, "recrio". E, supremo objectivo, divirto.

Podem chamar-me o "recreativo do Foco", eu não me importo.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Do Jogo da Glória.

A verdade é que nunca voltamos à casa de partida.

Três Filmes in Time of Oscartime!

Vi recentemente La La Land, Manchester By The Sea e Moonlight. Qualquer destas viagens até à cadeira de um cinema não foi em vão. Por razões diferentes em cada um dos casos. E não. Hoje já não é bem assim, mas antigamente chegava-se à cadeira de realizador por um de dois caminhos, o primeiro pelo caminho da montagem, e tínhamos um realizador que privilegiava o lado plástico da coisa, o segundo pelo caminho do argumento, e tínhamos um realizador que era melhor contador de histórias. Sim, ele há filmes que contam histórias. A maioria, aliás.

La La Land é um triunfo da cor. Os actores estão mesmo bem: Emma Stone talvez leve a estatueta para casa. Gosling precisava que o despenteassem. Aqui inventa-se nada. Qualquer cena ou número de dança já foi feito algures na história do musical feito em Hollywood. Sabe muito bem também porque temos pouca memória. Onde portanto a vitória deste filme? Em como acaba: nem mal nem bem, com um piscar de olhos. Há uma invenção de uma realidade alternativa durante uns minutos que até quase nos confunde mas... e o século XXI  ganha um filme que vai ficar.

Manchester By The Sea é, para mim, o melhor filme dos três. E Casey Affleck devia levar a estátua para casa. Há três coisas especiais neste filme, minto, quatro. A primeira já mencionei, Casey Affleck. A sua capacidade para nos mostrar hora e meia de um desespero que não é tranquilo é brilhante. Aquele homem está morto por dentro e assim vai continuar. Mas sobrevive, que é a maior condenação. O filme começa num barco onde a personagem de Casey pergunta ao sobrinho "se fosses para uma ilha deserta quem levarias, o teu pai ou o teu responsável tio?". A personagem de Casey é responsável e como! Há ainda o sobrinho representado pelo fantástico Lucas Hedges, o pequeno papel de Michelle Williams - onde uma só cena valeria um qualquer prémio se prémios houvesse para... cenas, e o fim. O filme acaba nem mal nem bem. Casey continua morto. Lucas vivo. Mas a vida prossegue um bocadinho melhor, parece-me, em Manchester-by-the-Sea, cidade do estado de Massachussets que realmente existe e onde se filmou também em 1990 o filme Mermaids, de que eu gosto muito, com a Cher.



Moonlight é um filme sobre como pode um rapaz homossexual crescer no habitual bairro deprimido afro-americano. Barry Jenkins dirige um filme com uma qualidade de imagem superior, uma montagem supina. O filme cheira a alternativo por todos os lados. Barry Jenkins é, porém, também o autor do argumento. E este nem sempre consegue sobreviver à apresentação sequencial dos arquétipos de um filme de bairro afro-americano - aliás todos os arquétipos vão aparecer. O filme, porém, vai espantando-nos com a sua beleza e vamos perdoando as sucessivas facilidades, os quase deslizes. Qualquer filme, repito, qualquer filme, está bem se bem termina. E assim Moonlight, onde o protagonista principal finalmente chega a algum lado, chamemo-lhe casa, porque um lado existe para que o outro lado haja e esteja ali também. Gostei, claro. Prémio para a melhor cinematografia.



PS.: desacompanhado, duvido se irei ver Silêncio, de Scorcese. Tenho muitas dúvidas a priori sobre o sucesso do filme. A Scorcese devo muitos favores, muitos mesmo. A religião sempre foi para Scorcese uma praia encapelada, vidé A Última Tentação de Cristo. Gostaria antes (no sentido de ver os dois filmes mas este antes) de ver o filme "Os Olhos da Ásia" que o João Mário Grilo filmou sobre mais ou menos a mesma história. Não me parece que vá conseguir esta coisa nem que vá acontecer a outra. 

Hey, tudo bem. Peace.

O chinês.

Chamavam-me chinês. Sim, sou moreno, mas pálido, ou empalideço facilmente. Olhos papudos que não de anjo. Que se semicerram quase sempre por sono, às vezes por outras coisas. A pior fase foi no Ciclo Preparatório. Cruzava-me todos os dias no ir e vir de casa para a escola com uma pequena besta que fazia questão de me chamar "ó chinês!". Mais do que uma vez esteve a pequena besta para levar do meu amigo e protector, o Chico Pinho, que isto dos orgulhos na infância intermédia dos onze, doze anos, não leva a lado nenhum. Porém, lembro-me de, suprema humilhação, admitir a medo no recreio , em conversa, que - sei lá - teria família macaense, origem vagamente oriental, etc. À infância primeiro sobrevive-se. O resto... O Ciclo teve coisas giras. O Ciclo teve coisas muito más. O Chico era um bom moço. Percebi-o por uma vez quando, ao brincar em sua casa, virei toda uma prateleira de bibelôs que eram o ai-jesus da sua mãe. Ela ouviu, veio averiguar e o Chico rapidamente: " Ó mãe, fui eu, escapou-me a bola!". No mundo das crianças generosidade assim é rara. O Chico tinha e tem uma voz suave, educada, pouco frequente. Foi o primeiro portista que eu conheci, quando ser portista ainda não era fácil. Espero que esteja bem. No Liceu foi tudo diferente, no Liceu de Ovar eu fui feliz. E não "chinês". Porém, nós somos toda a nossa história. Embora muitos anos tenham passado, e as calosidades tenham aparecido e crescido nos lugares mais insuspeitos, a prova dos noves é esta: que me chamem "chinês" e que eu me ria e responda com a recíproca! Hoje por hoje, nada mais posso pedir.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"Achou a viagem cansativa?" / "Ela mudou de cor e..."

"- Achou a viagem cansativa? - perguntou numa voz que o surpreendeu pela naturalidade; e ela respondeu que, pelo contrário, raras vezes viajara com menos desconforto. 
- Excepto, sabe, o calor horrível no comboio - acrescentou. E ele respondeu que não ia sofrer com esse problema no país para onde ia.
- Eu nunca - declarou com intensidade - tive mais frio do que uma vez, em Abril, no combioi entre Calais e Paris.
Ela disse que não se admirava, mas comentou que sempre se podia levar mais um cobertor e que todas as formas de viajar tinham os seus problemas, ao que ele respondeu abruptamente que esses nada eram comparados à benção de partir. Ela mudou de cor e ele acrescentou, com a voz a subir repentinamente de tom:
- Eu também penso viajar bastante em breve.  - Um tremor cruzou-lhe o rosto e, inclinando-se para Reggie Chivers, gritou: - Ouça, Reggie, que me diz a uma volta ao mundo agora, no mês que vem, quero dizer? Estou pronto, se você quiser - ao que Mrs. Reggie exclamou que não podia deixar Reggie partir até ao baile de Martha Washington, que estava a preparar para o Asilo de Cegos na semana da Páscoa; e o marido observou placidamente que nessa altura teria de estar a praticar para o desafio internacional de Pólo.
Mas Mr. Selfridge Merry apanhara a frase "à volta do mundo" e como a fizera uma vez no seu iate a vapor, aproveitou a oportunidade para pôr na mesa algumas ideias importantes sobre os baixios dos portos mediterrânicos."

extracto de "A Idade da Inocência", de Edith Warthon.

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Deixei ontem correr o DVD do filme do Scorcese que recria o livro acima. Pela primeira vez não lhe prestei atenção nenhuma.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

CPC e o riso.

Devo muito à Clara. Pinto Correia, explique-se. Procurei neste corropio de textos e blogues que me cercam uma qualquer referência a uma história que me persegue desde a eternidade e não encontrei. E a história, contada pelo Eduardo Prado Coelho (EPC), rezava assim:
Era no tempo de não haver auto-estrada para o Algarve. Os lisboetas especializavam-se em idas e vindas complicadas, conflituosas, e que implicavam com frequência, à volta, filas quilométricas, filas terríveis. Contava o EPC que uma vez, imerso numa dessas filas quilométricas, o calor do verão a obrigar à abertura de tudo o que se pudesse abrir nos carros - há 25 anos os ares condicionados não eram o que hoje são - ele começou a ouvir risos e gargalhadas sem fim que tinham origem num carro poucos lugares atrás. Eram a Clara Pinto Correia e o António Mega Ferreira, então namorados. A partir desde encontro de sons no meio do calor da península de Setúbal, quem volta, fazia o EPC considerações várias sobre a felicidade possível num momento puro, que os haverá e acontecerão, até parados no trânsito e entre a Marateca e Palmela. Lembro-me de ter lido isto, novo como era então por fora e ainda mais por dentro, e ter sonhado para mim esta capacidade de dominar o mundo através do riso e da felicidade explosiva que pode, ah pois pode, acontecer entre duas pessoas.
Esta história tem viajado comigo e ainda aqui está. Morreu o EPC e toda esta beautiful people - do início dos noventa - levou caminho, chamemos-lhe, menos bom. A Clara há trinta anos escrevia muito bem, não sei o que terá acontecido dessa sua capacidade. Tinha uma boca incerta, triangular, e aqui vou parar o texto, por decoro. Vi-a pela última vez num infeliz programa televisivo onde ela ilustrava em abundância o que é ter, como ela própria confessava, "dois pés esquerdos". "Ainda acertas, Clara?", pensei - eu que também padeço do mesmo mal...
Portanto, preocupo-me com a Clara Pinto Correia, como me preocupo com todas as pessoas a quem devo alguma coisa, e neste caso até um pouco mais. 
Quanto ao riso e a ainda busca desses puros momentos, estamos nisso.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Uma lebre.

Estou a ver a Taça do Mundo de Atletismo Indoor na Eurosport.

E pergunto-me: o que será uma lebre no Amor?

East Of Eden, Smell of Eden.

Lembro-me bem de ser obediente há muitos muitos anos. Eram-me dadas tarefas e eu cumpria-as com devoção. Era o tempo das bolas de Berlim e o meu mundo era então bem mais pequeno. E ter nele uma lógica era bem fácil. Emprestaram-me "A Leste do Paraíso" de John Steinbeck, na clássica edição da Livros do Brasil e deram-me como trabalho de casa escrever uma sinopse, transcrever as partes que considerasse mais interessantes. Como se para exame. Assim fiz. Tenho uma memória visual desses escritos, como tenho memória de já ter sido a encarnação viva da inocência. Anos depois vi o filme, dirigido por Elia Kazan e com o Jimmy Dean e a Julie Harris. Esta faz de Abra, a jovem figura feminina que é o contraponto da maléfica Kate. 

Uma fala havia que eu julgava lembrar-me do filme, e que acontece no momento em que a lealdade  (e o que é o Amor senão uma forma de lealdade?) de Abra passa de Aron para Cal. Fui à procura dela. Adquiri da net o pdf do texto do livro e depois o pdf das falas do filme. A escrita pausada e compreensiva, amiga mas certa de Steinbeck voltou a atingir-me como, traduzida para português, me atingiu quando ainda antes de ser obediente li Bairro da Lata /Cannery Row. Steinbeck oferece-nos a dureza de toda a vida, o seu gume frio, como quem nos lê um lento poema. Um poema que nos sugere uma cura possível, uma saída possível. Lenta, repito. Cannery Row é um dos livros da minha vida. Já o li dezenas de vezes. Nesta minha busca percebi que Steinbeck não é para banhos de Stanislavsky, logo o filme não respeita bem o escritor. Adiante.

De qualquer forma não encontrei a frase que sonhara ouvir a Julie Harris dizer no filme e que era qualquer coisa assim como "I stopped loving Aron; I wasn't good enough for him; I was affraid that someday I would smell...". A expressão inglesa é portanto "to smell", verbo que é um insulto em início - e por aqui vamos. Vou então começar. Sei agora que inventei a fala. Resta-me explicar(-me) porque a inventei. 

Um dos desideratos da vida moderna é não termos cheiro. Assumimos que o corpo deve oferecer-nos uma base neutra e depois ou avançamos para o patamar do "lavado" ou seguimos em frente para o nível do "perfumado". Hoje por hoje isto parece-me uma patetice. Não nego um perfume - Egoiste Platinum, dupla piada privada - que ocasionalmente acrescento ao meu ecossistema. Mas antes, durante e depois de acordar, respiro, e expando-me. Vivo nisso. E refaço aquilo que é meu, um cheiro. Mistura de hábitos, gestos, movimentos, roupas, excessos, atritos, com um leve, mínimo, opcional, apenas localizável toque de Chanel - perfume inventado por J Polge e lançado em 1993. Base neutra? Engano. Nascemos a tomar partido. E transpirar não é mais do que um corpo em expansão. 

Expansão? Só pode ser bom!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Onde, mas onde?

"Onde estás?" - eis a pergunta que mais fazemos ao telefone. Com variantes, claro: "Por onde andas?", "Que fazes?", "Perdeste-te?", etc., etc.
Caro amigo/a que me telefonaste a inquirir como acima de sopetão: eu não te tinha dito onde estava porque, o que fazia porque, onde me encontrava porque - não era contigo que me queria encontrar! Queres um desenho e que seja eu a fazer-to? Faltava mais nada!
O telemóvel permite hoje por hoje este inquirir chato. Saber sempre o que o/a outro/a anda a fazer deverá ser importante, tanto nos aplicamos em sabê-lo. E já não há elevadores, garagens, túneis suficientes para escapar ao assédio.

Uma excepção aceito: "Onde estás?" igual a "Queria estar contigo!", "O que fazes?" ser "Queria fazê-lo contigo!" e "Perdeste-te?" "Encontra-me!".

Ora nem mais!