quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Camilo - A Queda dum Anjo.

"Duas enfermidades há aí cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas: uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com o ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax à espinhela caída."

domingo, 21 de agosto de 2016

O Cais do Puchadouro.

Válega, a freguesia do sul de Ovar tem uma frente ribeirinha, pois vai até à Ria. E tem um cais onde subsiste uma colectividade dedicada às actividades náuticas na Ria, a CENARIO. O cais é antigo e está a ser renovado. Engraçado que por ali num Domingo de Agosto não esteja... ninguém!

O que resta da Serra da Freita.

A entrada que mais se usa para subir à Serra da Freita é por Chão de Ave, subindo a M511 até ao Merujal. Os sinais do incêndio começam a meio da encosta, ocupam todo o lado direito, seja eucalipto, mato ou pinhal, pouco antes de chegarmos ao alto a terra queimada começa a ocupar  os dois lados. E chegamos ao Merujal. A terra queimada é quase toda a terra. As poucas casas tiveram as chamas à porta. E também o parque de campismo. Sendo Domingo o normal seria já existirem muitos carros por aqui parados. Hoje nem um. No terreno queimado aqui e ali pequenas fumarolas, como se o calor pretérito ainda não tivesse acabado. 

Passado o Merujal, meti para a Mizarela. O terreno queimado continuava na encosta sul. Uma zona, por exemplo, onde meses antes tinha estado a brincar na neve com a minha filha, queimada também. Sobe-se, abrem-se os horizontes, vemos por onde o incêndio progrediu até ao concelho de Vale de Cambra, até Cepelos. Ora mato ora eucaliptos. 
Chego ao miradouro da Frecha da Mizarela. Esta está com pouca água. Por um curioso capricho o fogo parou pouco antes do V onde se localiza a queda de água. Os mirones do costume no miradouro, de calções, crianças anexas. Do outro lado Castanheira e por trás o monte onde fica o Radar Meteológico. Dúvidas sobre o que ardeu e o que não. Leiras ardidas, seguramente. E parte da encosta para sul. 

A estrada que leva a Castanheira é uma estrada que chega a uma transição e pode derivar para S.Pedro do Sul ou para Vale de Cambra. Pouco depois da Mizarela o mato e o campo volta a estar todo queimado. O vale cortado da ribeira de Castanheira ardeu todo. Consigo respirar fundo, quase todas as leiras pegadas à aldeia de Castanheira se salvaram. Aqui e ali o gado solto escolhe a pouca erva que sobrevive. Passo pelo centro interpretativo das Pedras Parideiras - fechado. O envolvente do terreno das pedras parideiras ardeu todo. Um carro da RTP está por ali parado. Onde o asfalto termina viro à direita e deixo o carro junto a um cruzeiro. Vou verificar o que aconteceu no centro de Castanheira. Uma jovem da RTP conversa com alguém, curiosamente sobre o Funchal. Verifico que duas casas abandonadas no meio da aldeia arderam, bem como o terreno em frente. Ao voltar atrás cruzo-me com o gado. A mulher idosa que os soltou e conduz pergunta alguma coisa aos operadores de câmara, como se tivesse sido um take. 

Despeço-me da Serra da Freita descendo para Cepelos. Uns motards descem a serra pelo meio das cinzas. Que se foda a ecologia e o desgosto, é Domingo! Nas poucas zonas não queimadas, algumas famílias preparam-se para almoçar. Cepelos teve também muita serra ardida. Acabo por chegar a Vale de Cambra, terra crescida armada em cidade, os incêndios uma má lembrança. Em dez quilómetros, rodeado de eucaliptos por todo o lado, chego depois a Oliveira de Azeméis.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

N2 - O Rio Douro e a agora cidade que lhe fica a norte.

Em alguma curva finalmente vê-se o rio e vê-se a curva ampla e imponente que o rio faz depois de passar no nosso  destino que é o Peso da Régua, no sentido do poente.
O Peso da Régua é a Casa do Douro. O vinho desce das encostas e vem fazer a riqueza da terra. E há o Museu do Douro e a Douro Azul. Mas há muito mais, para várias bolsas e opções. Barcos e barquinhos esperam a sua vez para o passeio. Vozes em estrangeiro ressoam dos barcos, potencionadas por microfones, até à margem - a Régua fica efectivamente num vale, numa cova. 
Da N2 derivamos à direita para o centro da cidade. Primeiro é o Peso. Descendo por estreitas ruas empedradas acabamos na Régua, que fica na beira do rio. Para jusante Godim, absorvida pela cidade talvez pela maior facilidade de construção - terrenos mais baratos, o declive mais suave, a única área de expansão realmente possível. Para o outro lado quem sobe ficam as pontes, a que era para ser ferroviária e acabou rodoviária - e que ainda o é - e a metálica que hoje é só pedonal - e onde eu vejo tão pouca gente a passear. Não percebo estas costas voltadas para a ponte metálica que salva o Rio Douro. O Rio sem o qual nada disto - vinho, terras, barcos, falar estrangeiro ao microfone - nada disto acontecia.

Em frente ao barco-avião estacionado da Douro Azul uma família de ciganos vendia chapéus. À sombra de uma glicínia que preenchia um esboço de uma pérgola em cimento caiada de branco uma rapariga acreditada vendia os Rebuçados da Régua. O Peso da Régua tem um frenesi, um nervoso que eu acho que lhe advém do dinheiro que para ali escorre e agora mais, o turismo em alta. Os Rebuçados da Régua uma metáfora para esta hipótese de paraíso que é o Douro, um exagero de doçura. 

N2 - entre Vila Real e o Peso da Régua.

A N2 tem agora o contraponto mais cómodo de uma auto-estrada que a faz "desaparecer" entre Chaves e Viseu, como se não contasse.
No entanto, entre Vila Real e o Peso da Régua as duas estradas como que se complementam. Enquanto a auto-estrada está pendurada sobre o  vinhedo e permite quase como que um "voo de pássaro" - e cuidado com a condução... - a N2 serpenteia por entre as quintas e os vales, dando uma visão mais próxima do Baixo Corgo, a primeira das três sub-regiões do Douro. Vila Real pertence à região demarcada porque sim, mas não, não nos enganemos. O vinho-de-que-falamos só começa na Cumieira. e depois não pára até ao Peso da Régua. Estamos já entrar no Peso e ainda vemos vinhas do outro lado da estrada. No meio da estrada as Caves de Santa Marta, um edifício enorme, com uma vila à volta, Santa Marta de Penaguião. 
Foi destas terras que me ofereceram um garrafão de vinho. Tinha de as conhecer.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Dos burkinis e outras merdas.

A França vive tempos difíceis. Portanto, de forma a confrontar o inimigo hediondo, decidiu proibir o burkini. E o burkini o que é? Um fato que cobre todo o corpo menos a face e que permite a mulheres mais pudendas - habitualmente muçulmanas - ir à água na praia. O nome é infeliz porque deriva da burka que, esta, cobre tudo E a cara. Aliás a proibição da burka e do niqab em muitos países deriva de questões securitárias que no burkini praieiro não se colocam. Então?

A memória será curta. O meu pai nunca vestiu uns calções para ir à praia. A minha mãe usava um fato de banho de peça única que destoava do marido vestido com roupas leves mas completas e que usava o areal para dormitar e passear à beira-mar. A maior parte das vezes a minha mãe nem removia a saia, ficando assim numa solução intermédia: a praia era um espaço social - conversa com as cunhadas, o exercitar das artes da renda, do crochet - e que não a eximia dos deveres dos lanches, das toalhas, da vigilância dos mais novos - do mais novo que era eu. 
Um "maire" disse que o burkini não é higiénico. Tendo em conta que uma percentagem importante da população ainda usa o mar para satisfazer a primeira das necessidades, não sei... Na Córsega alguém quis tirar uma fotografia a um burkini. O marido não gostou, etc., etc. Uma discussão perfeitamente possível na minha Praia do Furadouro excepto talvez os carros queimados, as pessoas esfaqueadas que foram parar à urgência... 

O problema mais grave que a França tem para resolver é mesmo o burkini...

sábado, 13 de agosto de 2016

Porque se gosta de Elena Ferrante.

"Os Dias do Abandono" foi o segundo romance de Elena Ferrante e confirmou a promessa do primeiro romance, aparecido dez anos antes. Porque gostamos dele?

Pode ser por trechos como este:


"Feriste-me, estás a destruir-me, e eu, ainda por cima, tenho de falar como uma esposa bem-educada? Vai levar no cu! Que palavras terei de empregar para falar do que me fizeste, do que me estás a fazer? Fala-barato! Lambes-lhe a cona? Metes-lho no cu? Fazes tudo o que não fazias comigo? Diz-me! Porque eu estou a ver-vos! Vejo com estes olhos tudo o que vocês fazem os dois, vejo-o milhões de vezes, vejo-o noite e dia, com os olhos abertos e com os olhos fechados! Mas, para não incomodar o senhor, para não incomodar os filhos do senhor, tenho de falar uma linguagem educada, tenho de ser distinta, tenho de ser elegante! Vai-te embora daqui! Vai-te embora, sacana!
Ele levantou-se de um pulo, entrou a ferver de fúria no escritório, meteu livros e cadernos num saco, interrompeu-se por um instante como que fascinado diante do computador, pegou numa caixa de disquetes e numa pequena provisão de cassetes.
Respirei fundo e corri atrás dele. Tinha na cabeça uma montanha de recriminações a fazer-lhe. Queria berrar-lhe: não tocas em nada; isso são coisas em que trabalhavas enquanto eu aqui estava para me ocupar de ti, fazer as compras, cozinhar, agora é tempo de ficar com alguma coisa para mim, deixa estar tudo onde está. Mas sentia-me aterrada pelas consequências de cada uma das palavras que dissera, das que poderia ter dito, tinha medo de o ter repelido, de over ir-se embora de vez.
- Mario, desculpa, anda cá, vamos falar os dois... Mario! É só que estou um bocado nervosa..."


Ou este outro:


"- Foi muito horrível? - perguntou-me ele, embaraçado.
- Sim.
- O que é que te aconteceu naquela noite?
- Tive uma reacção excessiva que destruiu a superfície das coisas.
- E depois?
- Caí.
- E onde é que foste parar?
- A parte nenhuma. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada.
Abraçou-me, manteve-me apertada contra o seu corpo por um momento, sem dizer uma palavra. Estava a tentar comunicar-me em silêncio que sabia, graças a um dom misterioso que lhe era próprio, tornar o sentido mais forte, inventar um sentimento de pelnitude e de alegria. Fingi acreditar"


Ou também:


"Comecei a mover-me, tinha a impressão de ser um simples sopro de ar preso entre as duas metades mal encaixadas de uma mesma figura. Era absolutamente inconcludente percorrer aquela casa conhecida. Todos os seus espaços se tinham transformado em plataformas distantes, separadas umas das outras. Uma vez, havia cinco anos, estudara-lhe minuciosamente as dimensões, medira cada um dos seus cantos, mobilara-a aplicadamente. Agora não sabia a que distância ficava a casa de banho da sala de estar, a sala de estar da entrada, a entrada da arrecadação. Sentia-me puxada ora para um lado, ora para outro, como em sabia-se lá que jogo, e tomou-me um sentimento de vertigem.
- Mãe, cuidado - disse-me Ilaria e agarrou-me na mão. Senti-me oscilar, estava talvez prestes a cair. Abri a porta da arrecadação e indiquei-lhe a caixa das ferramentas.
- Pega no martelo - disse-lhe eu - e vem comigo.
Voltámos para trás, e Ilaria carregava orgulhosamente o martelo com as duas mãos, e dir-se-ia enfim contente com a suamãe. Também eu me senti contente. Quando chegámos à sala, disse-lhe:
- Agora ficas aqui e bates no chão, mas sem parar, sem nunca parar. 
Ilaria pareceu divertidíssima.
- E pomos o signor Carrano furioso.
- Isso mesmo.
- E se ele cá vier protestar?
- Chamas-me e eu falo com ele.
A criança pôs-se no meio da sala e começou a bater com o martelo no chão, manejando-o com as duas mãos.
Agora, pensei, tenho de ir ver como está Gianni, estou a esquecer-me dele, que mãe tão estouvada."


Se calhar gostamos de tudo.

Dos incêndios.

Este ano descobri a beleza única dos contrafortes do Alvão - lado sudoeste - que modelam o caminho da N 304. A nudez da serra existe porque este lado do Alvão - um imenso pinhal - ardeu quase todo em 2013. 

Na Estrada para o Furadoruro existe um terreno que há 30 anos não se vende. É a antiga casa e quinta dos meus avós. Cuja metade traseira era "o pinhal". Terreno rodeado por casas e fábricas, aparece ainda como rústico no cadastro municipal. Tentou mudar-se o estatuto junto da Câmara, debalde. O "pinhal", esse, que já infestado estava há 30 anos por eucaliptos, foi já cortado várias vezes para lenha e vai rendendo um dinheiro mínino. Ninguém o limpa - logo a multa é obviamente possível, embora o subcoberto não seja muito abundante, a terra por baixo pouco mais do que areia. 

Num jantar de família na Galiza vai para muitos anos ouvi - longamente, o vinho era bom... - um rasgado elogio às celuloses portuguesas, graças a elas os baldios improdutivos galegos eram hoje uma enorme e produtiva monocultura do eucalipto, os engenheiros portugueses chegavam às aldeias, reuniam com as forças vivas, diziam, convenciam, compravam. O elogio parecia-me sincero e era autóctone. Assumo que se foi assim na Galiza então em Portugal...

Por último um dos livros que mais gostei de ler em português, muito novo, foi o "Quando os Lobos Uivam" de Aquilino, que versa a "pinhalização" forçada dos baldios portugueses no Estado Novo e que termina num enorme (spoiler) incêndio...

Os quatro parágrafos acima são as minhas ressalva de conflitos de interesse. Posto isto...

Odeio as plantações de eucalipto. São feias. SÃO FEIAS. Se é esta floresta que queremos defender, eu vou ali e já volto. São verdadeiros fósforos esguios de aviário que meses de chuva - choveu até junho - rodearam de um subcoberto enorme. Os incêndios eram uma inevitabilidade. Um eucalipto antigo, velho, imponente, como há pelo país fora, até em Serralves, é uma árvore lindíssima, impressionante. Mas não é disto que estamos a falar. Os eucaliptos ardem e vão continuar a arder. Arouca, por exemplo, vendeu-se como Geoparque, etc. Mas mais de metade do cncelho está completamente eucaliptado. As aldeias abandonadas ou envelhecidas já não têm leiras que as rodeiem, rebanhos que cortem o mato. Muitos proprietários só vêm à aldeia no verão, quando as queimadas são proibidas. Não há presos que cheguem para todo este mato. Os acessos são difíceis, a montanha montanha é. As pequenas aldeias ali pelo meio perdidas fixam os meios e obrigam a deixar arder. Nenhuma área do concelho de Arouca é realmente uma Área Protegida. Expliquem-me o que é a Rede Natura 2000 na prática... O que se diz de Arouca aplica-se a Águeda, Anadia, Sever do Vouga...

Entre o Varzigueto e Cavernelhe está outra vez a arder o pinhal do Alvão. Isto sim, é Parque Natural. Pelo que sei, as Áreas Protegidas em Portugal vivem com orçamentos diminutos e com vigilância escassa. O Ramiscal no Gerês já esteve também a arder. A memória florestal do país está a arder. Aqui sim, há crime. De quem ateia. A madeira queimada do Alvão vai ser vendida a alguém... Crime também dos governos que poupam no que Portugal tem de melhor.

A palavra prevenção enche a boca de todos os palermas comentadores do costume. Até a minha... O eucalipto no Norte de Portugal será sempre isto: dinheiro fácil nove anos, uma enorme fogueira um ano. Se metade do país está por cadastrar, é melhor irmos para banhos e esperar que passe... Vigilância que eu quero? Antes do mais e muita nas Áreas Protegidas! O resto, quanto menos eucalipto melhor... e quanto mais se conseguir reavivar o verdadeiro interior menos mau! Em Setembro lá voltarei a Macieira de Alcôba, a Castanheira, a Varzigueto, para ver como ficaram estas minhas terras...

domingo, 7 de agosto de 2016

Amadeu Baptista - Açougue.



2008

(para o Baptista Bastos)




Sou um homem do norte e um homem do norte
continuarei a ser até que a morte me separe.
As minhas circunstâncias são exactamente
as mesmas circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas
a granito, os vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a que possam
subir para começar uma aventura
que não tenha fim. Na minha memória
o que está mais marcadamente aceso
tem a ver com o mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo choques inimagináveis,
com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia permanente por não haver
o que dar de comer a velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir para os braços de alguém
que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,
como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para celebrar.
A vida era dura nesse tempo,
que eu fui vigiando quase por instinto,
fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro, consolidam, sem mais,
o que passaram a saber, porque o sofreram.
A vida era dura nesse tempo, sobretudo
para quem me estava próximo
e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em estoicismo feroz,
capaz, se necessário, de abalar montanhas.
Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,
andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos meus progenitores.
Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum
–  por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo
ou o alento que alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a infância, a minha infância,
me entregou ao duro acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.
E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para me dar,
além da sua eterna progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu encantamento.
Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado, falava-me das flores –  as brancas, as vermelhas –,
falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não, a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi que há,
entre os vários planos em que existimos,
outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho ao desacato
das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva pela vida circundante.
Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba e exaltante,
tanto mais que sempre quis ser poeta,
e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção vier e a deslembrança
tiver que ser a última recompensa.
Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,
a constatar como na alma os passos se abismam
se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi que a enxertia resultava
em algo mais sensível do que alguma vez supus,
sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita e bravia,
se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em multidões inúmeras,
com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,
e das palavras tomei o que podia para encontrar
o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa e obscura,
que sabemos e não sabemos como existe,
mas sentimos na alma e no espírito,
e nos enche o olhar como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não, interessa pouco.
O que escrevo é só um tempo breve,
em que os mortos e os vivos se procuram
para que haja testemunho e não seja longa a espera
do fim que há em tudo. Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça o que é o norte,
e onde fica.



in Açougue, edições & Etc, 2012

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

5 coisas para gostar de À Procura de Dory.

Vou despachar as 1,2 e 3: a companhia, a Dory e a Rita Blanco.

4: o filme é bom. Não é a obra-prima que se chama "Á Procura de Nemo" mas é bom. É o melhor da Pixar desde o Up. Sendo que eu acho que o fim do Up é confuso e excluí o Toy Story 3 porque teria que o rever. Tem altos e baixos mas há sub-histórias engraçadas, o polvo é giro, o tubarão-baleia também, e as mensagens não entram mal. A primeira mensagem é a de que famílias temos duas, a que se adquire à porta de entrada e a segunda a que se vai apanhando pelo caminho - eis o que a Dory aprende. Os momentos "familiares" são lamechudos mas sobrevive-se... 
Guardo a segunda mensagem para o fim que é o retrato a um tempo preciso e surreal do que é um aquário  - e de como a sua missão de "libertar" às vezes só se consegue quando um camião se despista no oceano! E mais não digo...

5: a curta-metragem que antecede o filme é a melhor da Pixar também em anos! Tem a melhor qualidade de animação QUE HÁ e a história também é muito gira! Só por esta curta valeu a pena ir ao cinema!