quinta-feira, 25 de abril de 2024

O Meu 25 de Abril.

Vou contar o meu 25 de Abril. Já não lembro se houve aulas ou não. Ou melhor, não lembro se a escola esteve aberta a 25 ou não, aulas não houve. E assim foi durante uns dias, ficávamos na sala com o Soares a tomar conta, os professores reunidos no primeiro andar a tentar entender se a revolução viera para ficar. Num desses dias, mais por aborrecimento que por dedicação revolucionária, começámos todos a cantar a "Grândola vila morena" a plenos pulmões, a letra retirada e policopiada à mão por mim. O professor Brandão, assim se chamava o meu professor, desceu à sala de aula e deu uma reguada a todos, um por um. O nome Brandão vai ser aqui mencionado várias vezes, para memória futura. Quando aconteceu o 25 de Abril eu tinha 10 anos e estava em vias de completar a quarta classe.

O professor Brandão possuia, para além de uma régua, uma comprida cana, habitualmente trazida de encomenda por algum aluno do Casal ou doutra zona perto do rio onde houvesse canas. Habitualmente a cana era estreada no aluno que a trouxera para aferiir a sua resistência. Durante a minha escola primária nela (com ele) nunca aprendi nada. Levava já tudo aprendido e ensinado pela minha mãe. Chamava-se a escola "do Quartel", por ter servido de abrigo a um qualquer regimento, julgo que na primeira República. Sabendo bem a matéria consegui escapar à violência institucionalizada pelo professor Brandão na sala de aula. Mas não era só a violência que era má. Como exemplo, lembro bem de na primeira classe, já por meados de Dezembro, ele ter dividido a classe mais ou menos a meio, de um lado os meninos que iriam passar de classe, do outro lado os que não. Em Dezembro. Só duas crianças mudaram de lado durante todo o ano lectivo, mediante prebenda da mãe ostensivamente acontecida à porta da sala de aula. Era uma escola só de rapazes. O Mário era um miúdo que todos os dias vinha a pé do Carregal - mais de 3 km de distância - para ter aulas. Isso não o impediu de chumbar logo na primeira classe. Era pequenino, tinha uma corcova, e imitava uma cabra na perfeição. Na segunda classe o Brandão mandou o Rocha para uma casa de correcção mas não sem antes lhe dor uma coça de cinto no fundo da sala de aula. Lembro-me do Rocha a andar à porrada com outro miúdo e levar um murro nas costas e soar surpreendentemente a ôco. Outra: o  professor Brandão tinha uma forma engraçada de ensinar os sólidos aos alunos:  o Soares Couto falhava sempre, e sempre que falhava levava com o respectivo sólido de madeira na cabeça. Um e outro e mais outro.

E acontecu o 25 de Abril. Visitei o professor Brandão no ano lectivo seguinte por insistência da minha mãe. Entrei numa sala de aula onde reinava uma estranha anarquia. Disse-me o Brandão: "Estás a ver, Manuel Guilherme, não lhes posso bater!". 

O mundo tinha efectivamente mudado, mudado de uma forma quase completa e absoluta, como se nós, vivendo num daqueles globos de vidro, nos tivessem sacudido e agora estivesse tudo de pernas para o ar, ou a neve habitual nesses globos se tivesse transformado numa praia de areia a escaldar. O 1° Ciclo só começou mesmo com aulas a Janeiro de 75. Até lá os alunos tiveram reuniões e reuniões para comentar o mundo novo, discutir o sol e a lua, contar anedotas. Aparámos a relva, limpámos divisões, pintámos paredes. E niniguém, mesmo ninguém nos batia. Eu pude espreitar as cuecas da Rosa de Fátima numa aula de Português, perguntar a uma professora de olhos verdes em quem ia votar no 25 de Abril de 75: "Talvez no MES!", subir e descer a correr as escadas que nos levavam à direcção da escola que ficava no primeiro andar, como no Quartel, tudo igual mas tudo tão diferente.

Depois do 25 de Abril houve um ano e meio de confusão. Nós em Ovar sabíamos quando havia confusão extra: eram mandados para o ar os aviões de Maceda ou os de São Jacinto.  O meu herói desde cedo começou a ser o Francisco Sá Caneiro, pequenino como eu era, corajoso como eu não era. 

O professor Brandão chegou a diector da escola do Quartel. Se calhar até lá tem numa parede uma placa comemorativa da sua reforma, o filho-da-puta. Mas não interessa: graças ao 25 de Abril ele nunca mais bateu em nenhuma criança. 

sexta-feira, 8 de março de 2024

Eu já votei.

Aqui há uns meses um pobre doente foi chutado entre o S.João e Penafiel, literalmente. Ambulâncias foram três. Terminou internado no Hospital privado de Alfena, internamento pago por Penafiel e portanto pelo SNS, por falta de camas, numa tira que no sistema informático se chamava "Contingência 2". Deveria haver a "Contingência 1", algures.
Uma familiar minha precisou recentemente de recorrer ao Hospital da Feira e, com indicação para internamento, terminou a ser tratada por uns dias no Hospital privado da Boa Nova, a cargo da Feira, a cargo do SNS 
No dia 10 vou trabalhar, por isso já votei a 3, numa colorida escola primária na Maia.

Sim, é preciso MUDAR.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Sobre o SNS e uma eleição que se avizinha.





Sigo uma determinada doente na minha consulta de Medicina Interna "desde sempre". Ela tem hoje 74 anos, 15 mais do que o médico.

A sua doença mais grave, um Mieloma Múltiplo que está em recaída, é controlada numa outra consulta, de Hematologia Clínica.

A doente fora operada há anos por um cistocelo, vulgo "bexiga descida". Vi-a em consulta em Junho do ano passado e a doente referiu-me sentir sintomas que sugeriam repetição do cistocelo. Pedi consulta de Ginecologia. Voltei a vê-la em Setembro e a clínica ginecológica tinha-se agravado. Voltei a pedir a mesma consulta agora com carácter de urgente. Em Dezembro, desesperada, a doente procurou uma consulta privada onde foi vista por um Cirurgião Geral que a observou e escreveu numa carta meia dúzia de linhas que incluiam a expressão "Histerocelo grau 3", ou seja, útero descido qb para ser palpável e visível com exteriorização  através da vulva, e disse à doente para ir à urgência do meu hospital, o "Pulmão do SNS" (reportagem recente no Porto Canal). Na urgência (e cito, confiando porque o conheço, o marido da doente) umas raparigas disseram à minha doente que "daquilo não ia morrer" e que, já que tinha recorrido a uma consulta privada, porque não ser também operada numa privada. A minha doente está rotulada, e bem, no RNU como utente em "situação económica insuficiente". 

A 18 de Janeiro do corrente ano, a médica de Hematologia revoltou-se com a situação e procurou alguém de Ginecologia - alguém conhecido? - e não sossegou enquanto a doente não teve uma consulta marcada no próprio dia, que já aconteceu. Foi colocado um pessário de contenção com carácter urgente, a consulta de anestesia está marcada, a doente vai ser operada, a doente e o marido dizem agora, sem malícia, que "as doutoras da Ginecologia estão muito interessadas e querem resolver isto rápido".

Uma consulta normal de Ginecologia tem um tempo de espera de 127 dias naquele site "tempos.min-saude.pt". Isto são 4 meses. Portanto, aqui algo (não) aconteceu. Quando eu pedi nova consulta urgente a mesma foi recusada porque já havia um pedido prévio. O colocar "urgência" na situação não foi lido. Uma consulta urgente no mesmo site esperará 47 dias. Aqui algo (não) aconteceu outra vez. O episódio de urgência aconteceu, há um registo dele, e quem o assina é efectivamente uma rapariga comparando com a idade da doente, mas já tem especialidade feita há uns anos.

No que diz respeito aos tempos de espera, não se pode acreditar em tudo o que está na net.

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Nos últimos meses do ano passado preocupei-me um pouco com uma tosse crónica que me acometeu. Após alguns tratamentos empíricos fui conversar com uma Colega e Amiga, colega de curso, Pneumologista. Entre outros exames sugeriu-me uma TC pulmonar. Não me incomoda demasiado ir pedir para fazer um exame para mim no hospital em que trabalho há 35 anos. Nunca vi um oficial das finanças penar nas antigas filas para pagar o IRS. E na verdade eu tinha indicação para fazer o exame. Não mandei ninguém para casa com o exame por fazer, fui sim pedir uma marcação célere a um administrativo conhecido. E porque não fiz o pedido a um radiologista? Porque quase todos os radiolgistas que eu conhecia na casa já foram embora. Trabalham em casa "à peça" e ganham múltiplas vezes mais do que aquilo que ganhavam no meu hospital antes. Dito isto o exame lá aconteceu e foi um técnico meu conhecido que pediu a um radiologista novinho - que eu nunca tinha visto na minha vida - que espreitasse o meu exame e dissesse de sua justiça. Estava tudo bem. O meu hospital tem, se não me engano, três RMN e 4 TAC. Faz exames marcados 7 dias da semana até horas tardias. E depois paga a empresas privadas - onde estão os radiologistas que fugiram do SNS - para relatarem os exames feitos nas suas máquinas, dado que o pessoal endógeno não consegue dar resposta. Esta exteriorização do relatório contratualizada não sei bem como leva não poucas vezes a um doente vir a uma consulta eg um mês depois de uma TC feita e o exame ainda não estar relatado. Eu consegui fugir a este fado mas eu sou eu...

Afinal a minha tosse deve-se sobretudo a um refluxo gastro-esofágico, enfim, uma doencita de merda.

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Na semana passada recorri à minha Médica de Familia, uma excelente amiga e minha antiga interna geral (é tão bom dizer que "começou comigo"...), para me passar o devido Atestado para a renovação da carta de condução aos 60 anos. Ela trabalha numa USF B integrada numa ULS vai para muitos anos. Conversámos sobre esta febre repentina de ULS's per tutti. Expliquei as minhas opiniões sobre com cuidado e respeitro: que o modelo USF B me impressionava um pouco ao levar o médico a trabalhar mais por incentivos financeiros e indicadores de qualidade um pouco dúbios, quando a motivação primeira devia ser apenas e só os utentes, os doentes. Concordámos que eu estava a falar de um "mundo ideal". E, sem levantar a voz, que à minha amiga eu nunca ouvi a voz levantada, foi-me dizendo: "nós aqui não temos listas de espera." Sabendo eu que nela o único objectivo foi sempre o utente, o doente.

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Não percebo porque se chama a uma "Dedicação" de "Plena" quando ela de "Plena" não tem nada. Eu trabalho em Dedicação Exclusiva e quando digo isto a alguém não preciso explicar mais nada. O contrato da Dedicação Plena tem, simbólica e literalmente, muitas letras pequenas. O ano passado um fantástico movimento inorgânico chamado de "Médicos em Luta" reivindicou melhores condições, melhor ordenado e nem mais um minuto de trabalho a mais. A Dedicação Plena dá mais dinheiro mas pede mais trabalho e não melhora, podendo piorar, as condições de trabalho. Não me pronuncio com força sobre isto porque quem está a aderir ganha substancialmente menos do que eu e por isso está a aderir, mas a medo. Como confiar? 

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A 27/2, ontem, um Colega mais velho do que eu, Pediatra em Gaia, escreveu uma carta ao director do Público. Falou com saudade dum SNS que já não existe, do velho serviço à periferia que tanto terá ensinado a quem o fez. Para o fim da carta castigou os mais novos escrevendo: "Felizmente muito do que se iniciou mantém-se e só falta o entusiasmo dos mais novos que já não sonham, porque tudo lhes foi dado de bandeja. Hoje, sofro com a ganância dos meus colegas que apenas procuram a melhor remuneração com o menor trabalho.". 

Do que eu conheço dos meus Colegas mais novos, e falo na área da Medicina Interna onde me situo, não me revejo nesta crítica, aliás rejeito-a liminarmente. Muito pacientes são este jovens internos, estes jovens recém-especialistas. Muito mais sabedores do que eu era antigamente. Tijolos da melhor fábrica a serem usados para construir um mau edifício.

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Os dinheiros "regados" na Saúde nos últimos anos de que nos falam só tiveram uma razão: o Covid. Duplicaram os Cuidados Intensivos em Portugal, camas que custam muito dinheiro. E atenção que Orçamento não é Execução do mesmo. O SNS tem vindo a ser sub financiado desde que eu me lembro.

Como noutras áreas da governação, as contas certas e um tempo dito de bonança e crescimento "acima da média europeia" não é notado por ninguém na Saúde, nem pelos profissionais nem pelos portugueses.

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Diz-se que o SNS está a sofrer uma "Morte Lenta". 

Para "Lenta" parece-me a mim que está acontecer BEM RAPIDAMENTE.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

CRI, CRI,CRI... CRI,CRI.

Saiu a portaria que regula os incentivos que vão remunerar os profissionais dos CRI's de Urgência que foram experimentalmente criados nos 5 maiores hospitais do país.
Que não são as urgências que passam mais dificuldade no atendimento ao doente urgente no país. Neste preciso momento e consultando os tempos de espera em SU para os doente urgentes nas diferentes urgências do país, as duas em que os doentes urgentes/amarelos esperavam mais de 3h (tempo recomendado de 1h) eram Loures/Beatriz Ângelo (uma ex-PPP que o consórcio Luz esvaziou de médicos quando o contrato se rompeu) e Bragança (uma das velhas ULS). E isto com as horas extraordinárias a contar em 2024 do zero...

Mais uma medida que nos mostra à saciedade como esta nova versão do PS chamado "PORTUGAL INTEIRO" e que faz campanha eleitoral a três carrinhos, a saber: via PNS, via governo em funções e via comunicação social-sem-outro-assunto-que-não-o-chega não pensa para o Portugal Todo mas sim para onde há mais votos...

PORTUGAL INTEIRO O C...