terça-feira, 15 de setembro de 2020

L de "O Leitor"


Revi este filme sobre o qual já escrevi. O filme vale por Kate Winslet. Cuja personagem não entende que o amor não vence tudo. Não vence o horror do assassínio inexplicado, não vence o horror de um passado alemão de que por muitos banhos que se tomem (ou dêem) há um odor que não vai embora. A personagem interpretada magistralmente por Kate Winslet mostra-nos como alguém não especialmente mau ou bom pode amar e pode também matar. Adianto que a personagem em questão não sabia ler, e nela funciona esta limitação como se fosse um defeito físico grave e definitivo, daqueles que marcam o construir de uma pessoa para a vida. 

Como o filme termina demonstra a inteligência da nossa iletrada, que finalmente tinha aprendido a ler e a escrever. Há prisões que não são para sempre mas memórias, sobretudo as más, as piores, que são perpétuas.  

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

P de Peste (ou de Covid, é o mesmo).

Fomos almoçar a uma cafetaria uns simpáticos hambúrgueres e assim desfrutar dos últimos acenos deste fim de férias. Os hamburgueres estavam bons, as "batatas rústicas" também.

Não sabia que na Maia só há bombeiros em Moreira. Vimos passar uma ambulância de Moreira e um outro carro, pequeno, também dos bombeiros de Moreira, à nossa frente. Com as luzes ligadas passaram para cima, para baixo, para cima. Moreira conhecer Vermoim ao detalhe não será fácil... Acabaram por estacionar. Telefonaram, telefonaram. A questão estava no prédio em frente à esplanada onde estávamos a tomar café. Apareceram à janela, à varanda, os vizinhos do terceiro e também do segundo, estes aproveitaram para fumar. Os bombeiros usavam máscaras cirúrgicas. Para quê o segundo carro? Assumimos que seria preciso arrombar uma porta, algo assim. 

A ambulância deu mais uma volta para estacionar à porta do prédio. Os bombeiros, entravam, saíam, entraram. Pouco depois saíram, um deles completamente equipado com uma EPI, a acompanhar alguém que entrou para a ambulância. Claro que essa pessoa me pareceu logo ter um aspecto muito pouco saudável. Era um suspeito de Covid, que mais? Entrou na ambulância, nunca mais a vi, e um dos bombeiros, uma bombeira por sinal, começou a fazer chamadas. Que destino dar à doente? Os telefonemas estavam demorados. 

Viemos embora.

L de The Limey.


"The Limey" é um filme de Soderbergh de 1999 e é um filme que posso ver vezes sem conta. Tinha a certeza de já ter escrito sobre ele mas, com isto dos vários blogs, não encontrei onde. Acho que já escrevi e vou voltar a escrever. Agora. 

Gostava tanto de me parecer com Terence Stamp quando velho. Ou novo. Ou agora. Não vai ser. Stamp é Wilson, um velho criminoso inglês que voa até LA para vingar o provável assassínio da sua filha por Valentine, um também velho executivo musical, papel desempenhado por Peter Fonda. No fim do maravilhoso filme, realizado com o glit de Soderbergh e o savoir faire de dois grandes actores, a lição que Stamp/Wilson aprende é que o que antes mal feito foi hoje corrigir não se consegue. O que Stamp não consegue é recuperar da atenção não dada anos fora à filha matando um crápula onde a mesma pode apenas ter procurado longe um substituto do pai que, alegremente, foi estando preso. Os paralelismos são bem desenhados, as imagens de Stamp filmado 32 anos antes no primeiro filme de Ken Loach, chamado "Poor Cow" ilustram um tempo antigo e possivelmente feliz de uma presença paternal que é descrita como manifestamente escassa. E o tempo que não houve não volta a haver. 

"The Limey" é um dos meus filmes de ilha deserta. Também porque sou pai de uma filha. 



  

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

P de Parasitas.





 Foram quatro os Óscares ganhos este ano pelo filme sul-coreano "Parasitas", realizado por Bong-Joon Ho. Quatro. Melhor filme, melhor filme estrangeiro, melhor realizador e melhor argumento original. Várias vezes na história do cinema foi dito que o futuro do cinema estava a Oriente. Ele foi o Japão de Ozu. Mizoguchi e Kurosava, ele foi o Irão e a Índia e a China, incluindo ou "excluindo" Taiwan e Hong Kong. Mais recentemente a Coreia do Sul, a Tailândia. 

"Parasitas" conta a história de uma família pobre sul-coreana que consegue, progressivamente, entrar e "tomar conta" da vida de uma família rica sul-coreana. Fica logo aqui a piada, o subentendido: quem são aqui os "parasitas"? Os ricos são bonecos quase inanimados, a sua vida não lhes é própria, são caricaturas. São eles os parasitas. Talvez a Academia de Hollywood tenha adoptado este filme ao sentir-se retratada, por culpa. Os pobres são personagens de carne e osso, embora a casa onde eles vivem, uma cave, seja susceptível a mais do que um tipo de inundações. E fumigações. Nos anos setenta do século passado vi com alguma dedicação, novinho que era, a "Família Bellamy", uma série inglesa que seguia pelo nome original de "Upstairs, Downstairs". Pretendendo representar uma família britânica aristocrática - e sua serventia - entre 1903 e 1930, decorre portanto um século antes do filme "Parasitas". Na série havia alguns estereótipos mas não havia bonecos. Em fogo lento os "Bellamy" iam descendo até à vida real. Mas um século depois, ao contrário do que dizia Karl Marx, a verdadeira tragédia faz-se coreana.  

O filme evolui para um final "gore" (spoiler) quando a família pobre fica sozinha na casa dos ricos que foram de fim-de-semana. As coisas começam a não correr bem. E as casas dos ricos na Coreia do Sul têm frequentemente um abrigo subterrâneo anti-nuclear, que passa a ser nuclear no desenvolver da história. 

Mais não digo. Podemos ou não gostar do fim do filme, havia várias formas para fechar o mesmo depois da tese ter sido apresentada, a "tese dos parasitas". 

Foi um prazer ver este filme. 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

E a Ordem precisa de Ordem...

O Carlos Carvalhal vai para Braga. Cada vez é mais difícil antipatizar com um qualquer clube. 

A Galiza ontem teve 19 casos de Covid-19, o Norte de Portugal 24. Mas a Galiza quer localizar os Portugueses que lhe entram pelas fronteiras. Feijoo a querer mostrar serviço... 

O meu gabinete de consulta de terça à tarde foi criado num espaço que fica entre dois corredores pre-fabricados de consulta. Uma improvisação ao quadrado. E é um quadrado. Uma ventoinha ao funcionar permite que o ar seja respirável. Ela está em equilíbrio instável sobre a impressora. Não tenho lavatório para lavar as mãos. A iluminação está em sincronia com o corredor à esquerda, pelo que eu não tenho qualquer controlo sobre ela. Se no corredor a apagam fico sem luz. Há vários bancos metálicos para o doente e acompanhantes se sentarem. Uso sempre a piada do costume: "podem sentar-se, são de confiança, não são Novos Bancos...". A nutrição faz lá consulta de manhã e tem uma balança xpto onde me peso e meço a percentagem de massa gorda. Não digo os resultados a ninguém. 

Em Portugal há as seguintes Ordens: Ordem dos Advogados, Ordem dos Arquitectos, Ordem dos Biólogos, Ordem dos Contabilistas Certificados, Ordem dos Despachantes Oficiais, Ordem dos Economistas, Ordem dos Enfermeiros, Ordem dos Engenheiros, Ordem dos Farmacêuticos, Ordem dos Médicos, Ordem dos Médicos Dentistas, Ordem dos Médicos Veterinários, Ordem dos Notários, Ordem dos Nutricionistas, Ordem dos Psicólogos, Ordem dos Revisores Oficiais de Contas e a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. A Ministra da Saúde sugere que especificamente a Ordem dos Médicos tenha o seu Estatuto alterado e que o(s) seu(s) Conselho(s) Superior(es) tenha(m) um terço de elementos da sociedade civil. Em nome da "transparência". Sendo transparentes as suas intenções. 

Cada vez mais me enerva aquela coisa das camas twin. Como se eu fosse para o quarto de hotel com a minha irmã gémea. 

E está descobrir-se que a gestão do Novo Banco é ruinosa. António Ramalho bem dizia que queria "deixar o Novo Banco limpo antes do final de 2020" (entrevista à Antena 1 em Junho). Limpo... de qualquer valor. 

 A União Europeia é uma coisa que hoje resulta ser estranha. O que ainda nos une? O todos fazermos contas? 

A verdade é que, com bem raras excepções, as minhas amizades são todas da área da saúde. O que complica tudo, porque nunca temos tempo. Foda-se! Restam-me algumas pessoas doentes de quem me fiz amigo. Estas vejo mais, consulto-as. 

 Aqui há dias um doente em cadeira de rodas olhava fixamente para a porta fechada de um elevador. Nesta aparecia em maiúsculas uma frase de incentivo: "Use as escadas e ganhe anos de vida!" 

O Tiago vai treinar o Guimarães. Estou a ficar velho.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O que vale é que foi em Moscavide...

Há várias casas abandonadas na Maia. Janelas abertas, telhados abatidos. Numa delas, na rua Eng. Duarte Pacheco, alguém desenhou no portal principal da casa arruinada dois olhos, um sorriso e um arabesco de cara. A casa morreu portanto a sorrir, coisa rara. A Maia tem portanto Street Art mas não tem drogados. Dentro das casas não ouço ruídos suspeitos ou ainda é cedo.

Vem o Pedro Porro jogar para o Sporting. Jogador rápido. Vamos por troca emprestar o Manuel Charro ao Valladolid. 

A vida segue o seu normal. Há incêndios, morreram dois bombeiros, pedimos outra vez ajuda à Europa..Já não sei se Marcelo foi a um dos velórios ou aos dois.

Acabei de ler "O Inverno em Lisboa" de Muñoz Molina. Bem escrita a história de uns amantes deseperados que se encontram, desencontram, reencontram e acabam separados. Um livro negro porque cheira a filmes negros. Muita gente fuma e bebe e a única música que existe é obviamente o jazz. Não me ajudou em nada este livro.

Afinal o que se passa com os Centros de Saúde?

A  urbanização e a civilização das cidades é um mito. Se assim fosse não existiam as actuais Polónia, Hungria, Eslováquia... 
Um fenómeno similar ao acontecido nas últimas (únicas?) eleições livres no Egipto em 2011: a Irmandade Muçulmana ganhou em todo o país excepto no Cairo. Ganhou, portanto. Idem na Turquia... 

Eu vendia o Joelson ao Arsenal.

Um dos problemas com Portugal é o Rui Rio ter razão. Cristina Ferreira foi contratada pela TVI com dinheiro do erário público. Literalmente. E sem período de nojo. Tendo em conta as finanças de Luís Filipe Vieira, Jesus também. 

A Junta de Freguesia da Cidade da Maia, edifício novo, tem uma ideia arquitectónica que dialoga com a estação de serviço da BP que fica ao lado. Bem pensado!

A disputa sobre um cão que terminou com um homem baleado no centro de Moscavide terá sido antecedida de impropérios como "fodi muitas pretas como a tua mãe lá em África". A familiar que contava isto em pranto usava outras palavras mas eu adivinho o que efectivamente foi dito. Porque iria inventar uma coisa destas? Ainda bem que aconteceu em Moscavide. A Polícia Judiciária não encara o homicídio como um crime racista.



domingo, 26 de julho de 2020

E agora que vem aquele dinheirinho pus-me a pensar...

Passou um mês desde a última vez que conversámos. No meu Hospital os doentes ainda não têm visitas.

Fui hoje de manhã buscar pão à Vermoinho. Mesas ocupadas dentro e fora. Não sei se as mesmas de antes, eu ainda sou novo na Vermoinho. Máscaras, claro. A jovem que cobrou reconheceu-me do tempo em que não era assim. Que não havia mesas ocupadas nem dentro nem fora.

Portugal vai dedicar-se ao Hidrogénio Verde. Uns concordam, outros não. Veementemente uns e outros. Sete mil milhões de euros. O que é o Hidrogénio Verde? Ouvi o João Galamba na televisão e percebi o que ele é (o João) mas não o que ele disse. E o Lítio? Afinal ainda vai continuar a haver Barroso?

Montijo é para avançar. Há dois concelhos que não concordam, as opiniões matizadas por filiações partidárias. Esses dois concelhos têm a lei do seu lado. Mude-se a lei.

Centeno parece já ser o Governador do Banco de Portugal. Bloqueou-se uma lei que o iria impedir de ser. Vai ser auditado por uma comissão que ele nomeou quando era Ministro. A mulher de César era conhecida por parecer muito honesta, além de o ser? Não. A história é outra e aplica-se a Pompeia Sula, a segunda esposa de César, repudiada devido a, em determinada situação, sendo honesta o não ter parecido. No meu espírito já repudiei Mário Centeno.

No meu Hospital o caos voltou à Urgência, o medo vencido. Pelos condicionalismos virais noventa por cento dos doentes são vistos em metade do espaço.

Acabaram os bem entretidos debates quinzenais no nosso Parlamento. Sugestão de Rui Rio aceite efusivamente por António Costa. Os deputados votaram como quem baixa os braços, que é o contrário do habitual, embora eu tenha ideia que eles agora já não levantam o braço para votar. "Deixem-no trabalhar!", exclamou Rui Rio. Já Cavaco Silva ficara conhecido pelo "Deixem-me trabalhar!" Eu julgava que os debates quinzenais eram trabalho... Curiosa forma de fazer oposição. O apagar do Parlamento é para Rui Rio uma tentativa de se erigir como a única oposição, ou não. Sendo ele o líder parlamentar. Nem o Bruno Nogueira se lembraria desta.

Portugal está em euforia pelos dinheiros que vão vir da Europa. Nem disfarçámos. Em nenhum momento Costa ou Marcelo se referiram ao quão importante o acordo obtido foi para a Europa, sendo a primeira emissão conjunta de dívida europeia, um precedente impensável há meia dúzia de anos. Infelizmente os holandeses vão ter razão, nós não vamos saber o que fazer ao dinheiro. Mas eu, Europeu convicto, fico contente pela Itália... e continuo a não gostar do Rutte.

Meu Deus, como vai ser depois da Angela Merkel?

O Sporting, com o quarto melhor plantel da Liga, terminou-a em quarto lugar. O Sporting é o "terceiro clube" há muito tempo. Quem é terceiro arrisca-se sempre a acabar em quarto. Força Rúben, a verdade é que só tu acreditas. Pena tive do Guimarães, um jogo bonito mas pouco eficaz. Espero que o Setúbal não desça, nem o Portimonense. 

Entretanto o ministro Manuel Heitor queria que se formassem mais médicos. Há trinta anos os governos queriam o contrário e fechavam os numerus clausus. Entretanto nasceram novas Faculdades. Mas não chegam os médicos ao Algarve, ao Interior, nem a todos os Centros de Saúde, nem vão chegar. O destino dos "mais médicos" será obviamente outro.

António Costa e Silva aposta na Ferrovia e nos metais que se escondem nos fundos marinhos dos Açores. E com certeza pagaram-lhe para ter estas originais (uma) e muito práticas e ecológicas (a outra) ideias!

A diferença entre os cães de Santo Tirso e os sem-abrigo é que os cães de Santo Tirso não são toxico-dependentes nem doentes mentais nem desempregados. Isso explica o alarme social. Atenção, um (dois?) abrigo (s) reconhecidamente ilegal (ilegais) mas que ninguém decidiu fechar no meio de uma mata de eucaliptos altamente inflamável é afinal culpa de quem? No Mediterrâneo morrem afogados mais de mil imigrantes por ano. Em Portugal morrem aproximadamente cem peões atropelados por ano. Como aquela miúda de dezoito anos, basquetebolista do Sporting. Números e mais números. Os canitos tinham um aspecto simpático, é certo. Quantos lares de idosos ilegais existem? Vão fechar? Há eucaliptos por perto? Irei receber hate mail?

Um octogenário matou na via pública a tiro outro homem, por sinal bem mais novo, em Moscavide. Dizem que o desacato girou à volta de um cão. 

Odiei fazer a consulta por telefone a quase todos os doentes a quem fiz a consulta por telefone.

Preocupa-me muito o futuro de uma cadela que, sendo minha, vive com os meus pais. Se algo lhe acontecesse o meu pai desistiria de viver. Para mim esta cadela, que se chama Melodia, diz-me muito mais do que Mário Centeno.

Eu vendia o Joelson ao Arsenal.

Não sei se vá à praia.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Um vírus mesmo nada bom.

Junho dezanove e ainda não voltei a abraçar a minha mãe.

Afinal Portugal é um país o suficientemente grande para acolher um vírus em tempos diferentes, primeiro no norte e centro e agora em Lisboa e no sul.

A economia não pode parar, abriu o Colombo e a Praia da Rocha, vêm aí os charters, desta vez não de chineses mas de quem quiser vir. Em alternativa os portugueses. Pela primeira vez em décadas ouvi publicidade do Algarve na rádio portuguesa.  

E por essa Europa fora não nos querem. E mentimos como outros mentiram, a culpa nos demasiado testes. Augusto Santos Silva promete retaliar.

António Costa, consensualmente considerado uma má pessoa (é só fazer o teste), revelou-se em todo o seu esplendor ao "oferecer" a "Final Eight" da Liga dos Campeões aos profissionais do SNS. Vai sim oferecer os novos infectados que resultarão do evento. Toni, um abraço!
Virá não uma, virão cem vacinas. Vai o António Costa escolher a correcta, igual aquelas máscaras cirúrgicas que desfaziam nas mãos que recebemos em Abril. É possível que a vacina tenha o patrocínio da Super Bock.

Os sinais estão aí:  a saída de Centeno, os espectáculos no Campo (demasiado) Pequeno, as filas para a Primark: isto não vai acabar bem.

Os doentes no meu Hospital continuam ainda a não poder receber sequer uma miserável visita. Não há pior desdita do que afrontar a doença sozinho. Mas esta sociedade em que vivemos é uma sociedade de apenas sim ou não. 

A minha filha voltou para Berlim. Onde ela mora, Neukölln, há uns quantos prédios em quarentena.

Junho dezanove e ainda não voltei a abraçar a minha mãe.

sábado, 13 de junho de 2020

Do Racismo.

Às vezes o meu pai levava-me ao futebol. Ficávamos cá para trás, para evitar as confusões que aconteciam no campo da Ovarense nas primeiras filas, sobretudo quando defrontava o Valecambrense ou o Esmoriz. A Ovarense tinha vários jogadores negros, lembro-me do nome de dois: o Humaitá e o Pepe. Que quando marcavam tinham nome, quando falhavam eram apenas "pretos". 

Em 1955 no sul dos Estados Unidos Rosa Parks recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco. Não foi no século XVI, foi há precisamente 65 anos. Na época de 54/55 jogou pela primeira vez no Benfica Mário Coluna, o outro grande jogador negro português, reconhecido internacionalmente como médio de excepção e cá como o "Monstro Sagrado". Foi o patrão do balneário do Benfica durante mais de uma década. Ao contrário de Eusébio, voltou para Moçambique e morreu Moçambicano a tentar fazer alguma coisa pelo desporto do seu país. Se não fosse pelo futebol não sei se o português branco normal e corrente de então não seria mais racista. Hoje temos Eusébio no Panteão, portanto, e aproveitando Rui Rio, "não há racismo em Portugal".

Das minhas memórias televisivas do antes do 25 de Abril, para além das mensagens de "um Ano Novo cheio de Propriedades" dos soldadinhos no Ultramar, lembro-me ainda de publicidade e chamar colonos para o Tete, em Moçambique. Nascido eu em 64, vejam o anacronismo do apelo. 

O colonialismo português tem a fama de ter sido "suave". Não terá sido assim porque era um país pobre a fazê-lo e portanto não dava para mais?

Apelidar Vasco da Gama ou o Padre António Vieira de racistas e colonialistas é desconhecer a história e falhar os séculos. Destruir estátuas de Colombo, por pouca simpatia que eu tenha pela figura, não serve de nada. A descoberta da América foi o encontro sangrento não de dois mas de três continentes. A Europa descobriu a América e com ela se relacionou como de costume, conquistando e subjugando. Nestes lavores matava-se. Nada de novo ou de anormal para aqueles tempos. As doenças europeias por outro mataram milhões e milhões e milhões de índios americanos, sem qualquer imunidade para as mesmas. Com o passar do tempo passaram a ser uma minoria na sua própria terra. Para trabalhar o continente recém-conquistado era necessário mão-de-obra não barata mas sim gratuita e obrigada. A colonização da América não inventou a escravatura, esta era fundamental nas cidades gregas, no império romano, nos vários impérios muçulmanos. Mas nunca aconteceu numa tão grande escala. 

A descolonização apanhou-me no Ciclo Preparatório, tinha eu 11, 12 anos. Recebi na minha turma variados filhos de retornados, eles retornados também. Tive-os como amigos ou conhecidos, dezenas. Vou contar casos isolados, minoritários, gotas num oceano, mas conversas que lembro. Dum fiz-me amigo para a vida, hoje também médico. Para ele os negros eram os "blacks". E aqui terminava a utopia da sociedade multicultural moçambicana. Havia "eles", os "blacks", e nós. Outra amiga minha descrevia já no liceu com eterna saudade os seus passeios de criança pelas águas da baía da então Lourenço Marques, da mão da sua criada (negra, aposto). No começo da faculdade uma colega minha de ano falava dos negros como "não sei, diferentes". E afastava o corpo, encolhendo-se. Isto foi em 82, ainda o apartheid não tinha caído. Falo de conversas que me impressionaram, conversas contadas, poucas, um detalhe num mundo de sofrimento que foi para essa gente toda o procurar refúgio num Portugal que sem entusiasmo os recebeu.

Um dos médicos que me formou e para quem tenho uma dívida de gratidão infinda trabalhou anos com a Faculdade de Medicina de Maputo. A sua opinião era sempre a mesma, embora eu não lha tivesse pedido: "a verdade é que eles não se sabem governar". Como se um incapacidade definitiva se abatesse sobre uma cor de gente. Como se um país cujas fronteiras foram feitas por outros, com várias etnias, línguas, riqueza bastante e pobreza extrema e vítima de uma longa guerra civil alimentada do exterior fosse fácil de governar.

Rui Rio é seis anos mais velho do que eu. Com certeza quando mais novo ainda assistiu a conversas ao jantar entre pessoal mais velho a decidir se era racista ou não e a frase-chave era sempre esta: "tudo isso está muito bem mas tu aceitavas um negro como genro?". O silêncio na assembleia era a resposta.

A cor. Uma característica à qual não se pode fugir. Eu sou branco mas pouco, moreno, bem mais após uns não muitos dias de sol. E tenho os dedos curtos e achatados, os braços finos e as pernas grossas. Os caninos mal implantados que sobressaem se me rio. As orelhas conformadas e os olhos finos. Já aqui disse que de pequeno chamavam-me de "chinês". 
O meu coração, acredito, será como  o de todos, de um vermelho-escuro.

Os portugueses são hoje menos racistas do que ontem. Mas o melhor é mantermo-nos vigilantes.

 


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Ainda o 2020 não vai a meio.

Afinal não tenho a certeza absoluta de que o ano de 2020 seja apenas o ano do Covid-19.

Desde Watergate que os Estados Unidos não vivem uma crise tão séria. Elegeram um presidente que não reconhece outra lei que não a da sua vontade. Um presidente que fagocitou um partido que, desde Reagan, tem vindo a tornar-se progressivamente mais conservador e mais polarizado em apenas servir-se e servir "os seus", ou seja, paradoxalmente, os brancos mais ricos e os brancos mais pobres. Trump é culpado de não saber conduzir uma crise grave como a da pandemia vírica. Por outro lado apareceu-lhe agora pela frente a morte de George Floyd, a enésima prova da existência de um racismo larvar mas presente na sociedade americana. Trump é racista e ainda mais o é por uma grande razão, assim de simples: Barack Obama. O homem que o humilhou num discurso de circunstância para jornalistas e que, por este discurso, se calhar motivou a decisão de Trump se candidatar. Por outro lado Trump  entrou numa guerra comercial e, se calhar, não só comercial com a China. Os Estados Unidos ainda têm a mão mais forte neste jogo de poker político-económico. Mas Trump é um jogador fraco, inconstante, não de confiar. Abandonou o Afeganistão e a Síria à sua sorte, já esteve em vias de o fazer com a Coreia do Sul, nunca será o aliado mais leal de Taiwan ou de Hongkong. A China tem aqui uma oportunidade dourada. Haverá eleições para a Casa Branca no fim do ano. O candidato democrata, Joe Biden, só é forte porque Donald Trump é fraco. Mas será Donald Trump mesmo fraco? Os republicanos não irão tentar manipular o resultado eleitoral? Lembro que Hillary Clinton teve mais votos do que Donald Trump, Al Gore mais votos do que George W Bush e só não foi Presidente devido a uma enorme e confusa confusão com os votos na Florida que lhe foi estranhamente desfavorável. A democracia americana é surpreendentemente frágil e tem hoje ao leme um menino rico pateta cujo herói confesso é... Vladimir Putin. Que vai voltar a ganhar umas eleições se os brancos pobres continuarem a votar nele, apesar da economia mas porque George Floyd não lhes diz nada.

A política é só uma, e as acções dos políticos são no geral previsíveis. A China vive uma encruzilhada comparável à dos anos oitenta, quando começou a sua rápida evolução para a "economia de mercado socialista" e aconteceu Tianamen. A China tem um poder económico que já se compara ao americano. O seu líder já é, frequentemente, considerado "o homem mais poderoso do mundo" naquelas listas anuais do Economist ou da Forbes. A sua liderança centralizada dá-lhe uma vantagem de decisão sobre os Estados Unidos e a Europa muito assinalável. A sua liderança centralizada centralizou-se ainda mais com a chegada ao poder de Xi Jinping em 2012. Este foi declarado "Presidente Vitalício da China" em 2018, como só antes Mao Ze Dong, e escreveu o livro "A Governança da China" que pretende ser o sucessor do famoso "Livro Vermelho" do mesmo Mao Ze Dong. Os antecessores de Xi Jinping "duraram" tacitamente dez anos. Xi Jinping não vai sair de cena em 2022. Sabe que a China tem uma oportunidade única para passar a dominar um mundo cada vez menos multipolar: tem pela frente um presidente americano que é um tonto. A crise do Covid-19 vai  passar. Se não passar e a economia tremer, Hongkong, Taiwan ou o conflito do Mar da China do Sul servirão sempre para distrair o povo e fermentar o patriotismo, como Tatcher fez com as Falkland. A excepcionalidade de Hongkong parece que já é uma coisa do passado.

O Brasil está a viver uma crise ainda maior do que a dos tempos de Collor de Mello. O Brasil é um gigante com dois pés de barro: a violência e a corrupção. Quando elegeu Jair Messias Bolsonaro para Presidente o povo brasileiro pensou que havia alguma hipótese do ex-militar e outsider da política resolver ou pelo menos diminuir quer a corrupção quer a violência. Foram precisos poucos meses para se perceber que não. E foi aí que apareceu a pandemia. Escasseiam as palavras na língua portuguesa para descrever o comportamento de Bolsonaro perante o problema Covid-19. E, por outro lado, há investigações há volta dos negócios dos seus quatro filhos feitas pelas instituições da justiça brasileira que, apesar de tudo, ainda funcionam. Bolsonaro apela directamente aos militares para que intervenham, o que poderá acontecer, não sabemos se para apoiar ou destituir Bolsonaro. O Brasil está neste momento "oficialmente" com mais de meio milhão de infectados por Coid-19 e sem rumo. Teme-se o pior, embora com tudo o que já aconteceu ao Brasil, definir o que será o "pior" talvez seja difícil. 

A Espanha tem o governo mais progressista da União Europeia, marcado pela incorporação do Unidas Podemos no seu elenco, sendo Pablo Iglesias "vicepresidente segundo". Este chegar da extrema esquerda - que é o que Unidas Podemos é - ao poder num país "esticado" pela pulsão independentista catalã e o subir da extrema-direita da Vox, que "obriga" o Partido Popular a não abrir mão do discurso duro e espanholista, ameaça dividir ainda mais um país que dividido se calhar sempre foi. Pode que o controlo tardio mas acertado da pandemia ajude, mas os discursos incendiários no parlamento de Abascal, Casado e Iglesias prometem problemas graves, com umas eleições autonómicas na Catalunha ainda este ano como rastilho. Onde a solução para Espanha?

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Pintura depois da 2ª Guerra Mundial.

Acabei finalmente  de enumerar os pintores que me suscitam particular admiração no período de tempo que vai desde 1870 (o instituir do Impressionismo) e os anos 30 (o Surrealismo como referência).
A pintura na década imediatamente anterior ao início da 2ª Grande Guerra viveu à volta do referente surrealista. Outra pintura que acontecia foi ou não revalorizada apenas depois de 1945.
Os pintores que apresentei apresentei-os com pobres e roubadas palavras, por elas apresento as minhas desculpas.
Que as vinhetas dos quadros me tenham redimido e também suscitado a curiosidade de quem leu e viu para conhecer mais.
Estaria a pintura toda feita em 1945? Quase parecia que sim.
Mas essa segunda metade dos anos 40 rapidamente nos veio explicar que não.


Kurt Schwitter's Merzbau.

A obra mais importante e inovadora de Schwitters já não existe. Era uma casa dentro de uma casa, construída com a estética "merz" que Schwitters havia inventado dentro do movimento Dada. A casa não era a dele mas a dos pais, e a construção foi-se fazendo entre 1923 e 1936. Depois Schwitters fugiu para a Noruega. Começou a construir outra Merzbau em Lysaker, perto de Oslo que poucos anos depois ardeu. Ao mesmo tempo criou um barraco numa ilha isolada do norte da Noruega perto de Molde, o Schwittershytte, cuja decoração interior ainda hoje existe. A Noruega invadida pelos nazis, fugiu para a Inglaterra, onde soube do bombardeamento aliado que destruiu a casa dos seus pais e portanto a Merzbau original, e foi no seu interior rural, no vale de Langdale na Cúmbria, que Schwitters criou a sua última invenção "de interiores", o Merz Barn, de que hoje sobrevive uma parede em exposição num museu em Newcastle, e o sítio e a casinha, sede de reuniões e residências artísticas.

Da Merzbau de Hanover já se fizeram várias reconstituições, seguindo uma série de fotografias que foram feitas da obra no início dos anos 30. Reconstituições feitas, não me constou que nelas lá tivesse alguma vez vivido alguém, faltando o testemunho dos pais de Schwitters para saber… como era, como foi.

Merzbau (Teilansicht: Grosse Gruppe)

Fotografia da Merzbau original.


Detalhe de uma reconstituição em museu da Schwittershytte.


The Merz Barn installation.


domingo, 17 de maio de 2020

Vítimas de um sucesso ou calha que nem todos temos razão.

Em 1993 fui a um congresso sobre hipertensão em Milão. Foi uma viagem a vários títulos memorável. A Lombardia é conhecida pela qualidade da sua medicina. Na área da hipertensão Milão dava então cartas, e não só devido ao Professor Giuseppe Mancia, de quem eu li dezenas de artigos e que hoje tem 80 anos mas então tinha a idade que eu tenho agora.

Já não me lembro se o primeiro positivo foi internado no Santo António ou no São João.  Os primeiros casos internados no Hospital de São João ficaram em Infecciosas,  que tem uma enfermaria e camas de intensivos. Rapidamente estas camas não chegaram e Infecciosas invadiu Ginecologia,  depois Cirurgia Vascular,  a seguir parte dos dois pisos da Medicina Interna e também  Ortopedia.  O internamento de ORL passou a servir como câmara de espera para os doentes pendentes de internamento por qualquer razão e onde o resultado da fatídica zaragatoa ainda não era conhecido. Tudo isto no que diz respeito a internamento de enfermaria. As camas de intensivos de Infecciosas rapidamente deixaram de chegar. Os doentes Covid 19 invadiram os Cuidados Intensivos do piso 6, que duplicou as camas. Depois a Unidade Pos Anestésica do piso 5 também virou Intensivos Covid 19 +, e idem os Neurocríticos do 8. Todas estes espaços tinham ou criaram camas de Intermédios anexas mas, porque não foram suficientes,  os Intermédios da Medicina Interna no 4 também passaram a ser Covid 19 +.
Não me vou alongar sobre toda a rotina hospitalar que teve que parar, os profissionais de saúde infectados. Falar da extensa equipa de Infecciologistas, Internistas, Intensivistas, Emergencistas e uns quantos de outras Especialidades que se voluntariaram e que trabalharam ao lado de uma equipa muito ampliada de  Enfermeiros e Auxiliares, grande parte deles sem experiência prévia  de Intensivos.
Nada disto aconteceu por capricho ou mania. Foi preciso que acontecesse. 
Ah, já me esquecia do Serviço de Urgência.  Foi pública a adição do hospital de campanha do INEM. A Área Laranja foi transformada numa área para 'Respiratórios e Covid 19 positivos". A Área Amarela recebeu como extra os laranjas não respiratórios e, de área atravancada com todo o tipo de doentes passou a área ainda muito mais atravancada com doentes. Na Urgência montou-se uma TC com objectivo de estudo pulmonar rápido.  Tudo isto mantém-se, embora a tenda INEM já tenha sido desactivada.

Passou um mês sobre a expansão máxima do polvo Covid 19, parte, repito parte das alterações que aconteceram ao meu Hospital foram revertidas. Ainda se mantêm bastantes.

São muitos os artigos hoje nas redes sociais sobre o exagero do Estado de Emergência, o disparate do Confinamento, a mariquice do Distanciamento Social e do uso de máscaras. Artigos escritos as mais das vezes, surpresa, por licenciados, doutorados e outros tarados.

Como se a Itália tivesse sido um azar "deles", a Espanha uma patetice "deles", Manaus e Nova Iorque coisas de um "outro hemisfério", por aqui impossíveis.

Eu sei o móbil que explica essa revoada de artigos: o dinheiro. O dinheiro que nos vai fugir a todos porque já há uma crise. Uma crise que se adivinha como nunca vimos. Embora não acredite que nenhum desses escritores vá passar fome, como já há em Portugal.

Meus Senhores, parai um pouco de escrever essas merdas e ide-vos foder!

sábado, 16 de maio de 2020

Kurt Schwitters (1887-1948)

Kurt Schwitters nasceu em Hanover mas a sua formação aconteceu entre Dresden e Berlim. Começando por participar na revista Der Sturm, entrou depois pelo movimento Dada adentro mas criando uma versão muito pessoal e que, na realidade, é a melhor ponte que existe entre a pintura de antes e a de depois da 2ª Guerra Mundial. Schwitters começou a criar pinturas que na realidades eram assemblagens de materiais que eram ou pretendiam ser os restos e os detritos da sociedade industrial. Criou o movimento "Merz", das quatro letras que subsistiam da palavra "Kommerzbank" num quadro seu. E foi inventando a "Merzbau" dentro da sua casa, a "Obra Merz", como que uma casa-dentro-da-casa que foi invadindo divisão atrás de divisão, até que um bombardeamento aliado acabou com a coisa em 1943. Foi também escritor e poeta fonético (!). Morreu relativamente cedo no exílio na Inglaterra, ele que tivera que fugir primeiro para a Noruega em 1937 como autor de "arte degenerada", assim chamado pelos nazis. Assim evitou ele que nos interrogássemos nós por onde levaria ele a sua arte.

"Revolving" é de 1919. Mas podia ter sido criada ontem.

Revolving, 1919 - Kurt Schwitters

"Oorlog" é de 1930 e continuam as collages e a reutilização aqui dos recortes de jornal, o título saindo do texto que no quadro sobra.

Oorlog - Kurt Schwitters

"Merzpicture with rainbow" é de 1939. Um quadro tridimensional, algo que em poucos anos gase tornaria muito frequente. Nesse ano Schwitters vive na Noruega. Os nazis invadem a Noruega em 1940 e Schwitters foge para a Inglaterra onde falece oito anos depois.

Merzpicture with Rainbow, c.1939 - Kurt Schwitters



Foi na Rota do Românico, Fernanda.

Já não me lembro em que igreja foi. Chovia. Tinha trabalhado de noite, continuara pela manhã fora como era o meu habitual, fui assistir ao teu casamento no meu velho Citroen AX, as indicações para o caminho dadas por quem tão discretamente me tinha convidado para assistir à cerimónia. Chovia, embora não muito. Finalmente abriram a porta da igreja, entrei, sentei-me à direita, afastado do corredor central. Chegou o noivo, fui cumprimentá-lo. E depois apareceste tu à porta do templo, trazida pelo teu pai. Voltei ao meu lugar. E num instante tu estavas já no altar, noiva mais lesta nunca eu vi. Ainda sorrio ao lembrar-me e passaram muitos anos. Vieste depois agradecer-me pessoalmente a presença e nem sei bem porque o fizeste, ou sei: gostávamos do mesmo homem.

Passaram anos, muitos, há um filho de dezanove anos a documentar o tempo que aconteceu. E as malhas que o império das emoções tece não te terá sido favorável. 
Tinhas uma maneira de andar que todo o hospital conhecia. E comentava. Uns sabiam, outros não. Adivinho que para ti, adivinho ou invento, esse jeito que davas a um pé, já não me lembro de que lado, funcionava como um lembrete.
E nesta semana que passou o lembrete funcionou demasiado bem. Por isso eu disse "o teu casamento". Não há como a morte para criar uma apropriação das histórias onde, estando várias pessoas, a que morreu ganha prioridade no lembrar, como que um brilho. 
Há momentos funestos em que nos parece que não há mais nada a fazer. Mais nada. O passo a seguir pode ou não ser dado. Tu tinhas o lembrete. Deste-o. Um passo sem retorno possível. 
Agradeço-te, Fernanda, várias coisas, e bem mais do que um casamento bonito a que me convidaram a assistir. Se calhar ainda podíamos ter partilhado mais algumas histórias giras, tu tinhas um bom sentido de humor. A tua opinião não foi essa.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Alma Mahler et la poupée de Kokoschka.

 
Die Alma Puppe
 
Oskar Kokoschka viveu um apaixonado romance com a viúva de Gustav Mahler, Alma. Este romance durou de 1912 a 1915 e terminou por aparente exaustão da amante e amada.
Kokoschka demorou a aceitar a ruptura. Em Julho de 1918 encomendou uma boneca de tamanho real para "substituir" a sua amada perdida. As cartas que escreveu à bonecreira Hermine Moss a dar os detalhes do pretendido chegaram a ser publicadas em livro, logo em 1925!
A boneca, entregue a Kokoschka em 1919, não correspondeu às expectativas embora, depois de pintada e corrigida, fosse vestida e usada para presidir a jantares de amigos ocupando um lugar à mesa. E recebia os visitantes ao estúdio de Kokoschka, sentada num maple, com o seu cabelo castanho tecido, um casaco azul, de serrim cheias as suas formas.
Kokoschka acabou por cansar-se e, num jantar de despedida, decepou a boneca e atirou a cabeça para a rua, criando algum alarme na patrulha policial nocturna.
Esta história aparece em todo o lado como uma anedota e mais um facto curioso a acrescentar à natureza rebelde e iconoclasta do pintor austríaco. Afinal, o que era uma mulher para Kokoschka?
 
Cem anos depois e quando os primeiros robots para sexo estão em vias de aparecer (ou já apareceram?) parece-me que Alma Maria Schindler Mahler escapou de boa. Kokoschka terá morrido aos 93 anos casado com uma mulher 29 anos mais nova do que ele. Em meados dos anos vinte ainda havia quem dissesse a Alma Mahler que devia voltar a ceder ao interesse de Kokoschka, porque este, embora vivesse acompanhado, ainda não a tinha esquecido, e era sempre a ela que pintava nos seus quadros.

domingo, 3 de maio de 2020

Porque não vamos ser aumentados.

Eu vou explicar-vos porque não vamos ser aumentados: porque não vai haver dinheiro!
 
Podia escrever o acima e despedir-me com amizade, do tão evidente que me parece o escrito. Mas não resisto.
Talvez muitos de nós, sobretudo os profissionais de saúde, ainda não tenhamos pensado seriamente sobre o abalo que a economia portuguesa já está a sofrer e vai sofrer ainda mais. Há zonas amplas da nossa economia que estão neste momento a "zeros" e que não vão voltar (definitivamente?) ao nível prévio. Isto implica menos impostos, bastante menos impostos a entrarem nos cofres do estado. Quando o Covid-19 sair das primeiras páginas dos noticiários e dos jornais, estas serão ocupadas pelas notícias económicas e estas serão muito más.
Neste momento, portanto, pedir aumentos para os profissionais de saúde é ilógico e utópico. Dizer isto é diferente de dizer que não os merecemos. Mas...
Preparemo-nos sim para pedir que ao menos a nós não nos cortem os ordenados ou subam muito os impostos, como provavelmente vai ter que acontecer em 2021! Essa diferenciação já seria alguma coisa… dentro do desastre que se anuncia. Um vírus garante-nos o emprego. Sejamos sérios e pragmáticos.
Quando o vírus for embora voltemos a negociar e se as nossas reivindicações não forem atendidas, façamos a devida greve! Até lá...
 
PS.: julgo que, ao contrário do que vejo sugerido em alguns fóruns, vir agora com a história de que "pelo menos aumentem os médicos" é mais um tiro no pé, um de muitos. Todos os profissionais de saúde são mal pagos, incluindo os médicos.

PS2.: confesso que não vi a entrevista de ontem da Ministra da Saúde. Não aquece nem arrefece em relação ao que escrevi.

sábado, 2 de maio de 2020

Egon Schiele (1890-1918)

Schiele é o pintor mais conhecido do Expressionismo austríaco. Protegido de Klimt, a sua pintura pouco se lhe parece. Perdeu o pai por doença mental aos 15 anos. Ganhou protagonismo precoce na cena vienense e ainda muito novo já era reconhecido, odiado, insultado. Uma certa tendência para ter menores como modelos levou-o à prisão com 22 anos de idade. Dialogou com as várias vanguardas alemãs. Durante a Grande Guerra consegue escapar à linha da frente e a sua obra progride e é cada vez mais reconhecida. No início de 1918 Klimt morre. Schiele toma as rédeas da 49ª exposição da Secessão Vienense, onde expõe com muito êxito.
No fim do ano morre a sua esposa, grávida, tendo apanhado a famosa, então como hoje, a gripe espanhola. O pintor morre da mesma doença 3 dias depois. 

Pintado aos 20 anos, este "Auto-Retrato com o Braço Torcido Sobre a Cabeça" mostra a visão de Schiele sobre os corpos, esqueletos animados. O Expressionsimo de Schiele usava discretamente a cor, sendo o desconforto maior do seu desenho, cruel, neste caso em território próprio.

Self Portrait with Arm Twisting above Head, 1910 - Egon Schiele


Em muitos quadros os modelos perdem braços ou pernas, como se desnecessários para o subtexto. Como aqui, de 1919, "Nu com Ligas Vermelhas".

Nude with Red Garters, 1911 - Egon Schiele

Egon Schiele também pintou paisagens, rurais e urbanas. Ao contrário da maioria dos quadros com modelos, a tela é preenchida por um desenho nervoso e com cores difíceis. Eg. "Casas com Roupa a Secar (Seeburg)", 1914.

Houses with Laundry (Seeburg), 1914 - Egon Schiele

Este quadro, "A Família", terá sido o último quadro pintado por Schiele. É aquele onde a sua expressão parecer ter finalmente alguma paz. A criança que aparece nunca nasceu, morreu no ventre da mãe quando esta pereceu vítima da gripe espanhola, idem o pintor, três dias depois.

The Family, 1918 - Egon Schiele

Giorgio Morandi (1890-1964)

Morandi nasceu, viveu e morreu em Bolonha, com as suas três irmãs. Nunca casou. A sua pintura foi influenciada por Cézanne e os primeiros renascentistas. Passou discretamente pelos futuristas e depois fez parte transitóriamente da "Pintura Metafísica" com Carra e de Chirico. Rapidamente a sua maneira de pintar estabilizou, sendo o grosso das suas obras naturezas-mortas constituidas predominantemente por garrafas e vasos, e utilizando uma palette restrita de cores. Ao contrário de de Chirico manteve-se fiel ao seu modelo durante toda a vida, e o mistério das suas pinturas, aquilo que faz delas algo único ainda presiste.

Nesta "Natureza-Morta" de 1919 Morandi ainda conversa muito com Cézanne.

Still Life, 1919 - Giorgio Morandi

Esta outra "Natureza-Morta" já é Morandi no seu melhor, com uma paleta de cores bem mais subtil, o arranjo dos objectos uma espécie de feng shui. E nunca ninguém melhor do que Morandi i azul-claro, o cinza-claro, o castanho-claro, o branco sujo...

 Natura Morta, 1953 - Giorgio Morandi

As aguarelas de Morandi são um mundo à parte. Há algumas de paisagens como esta, com uma geometria perfeita. "Paisagem de Levico", 1957.

Landscape Levico, 1957 - Giorgio Morandi

Morandi também se especializou em gravuras usando a técnica de água-forte. Aqui ao abdicar da cor as sombras e os contrastes ganham ainda mais importância: "Natureza-Morta com cinco objectos", 1956.

Pin on drawing


Oskar Kokoschka (1886-1980)

Este pintor austríaco foi aluno de Klimt mas não lhe foi próximo. Estabeleceu-se em Viena com fama de génio precoce e provocador e viveu uma famosa relação atormentada com Alma Mahler, a recém-viúva do famoso compositor. Nestes anos cria a sua pintura, parte importante da Secessão de Viena e do agora chamado Expressionismo de Viena. Circula por Berlim e Dresden.
Perante a ameaça nazi foge para Praga, depois Londres. Depois da guerra fixa-se na Suiça onde morre.
A sua pintura, de um figurativismo agressivo e angular, tem um lirismo desesperado que não existe na outra metade vienesa deste tempo e movimento, Schiele. Talvez por isso e porque chegou a velho sem deslocar-se muito mais da sua matriz pictórica (Schiele morreu novo) criada nos seus primeiros anos, agora se valorize um pouco menos.

A "Noiva do Vento" é um quadro de 1914 e é o melhor retrato da paixão entre Kokoschka e Alma Mahler. De notar que o pouco branco que no quadro existe efectivamente a Alma pertence.

Bride of the Wind, 1914 - Oskar Kokoschka

"Auto-Retrato com a mão na face" é de 1919. Kokoschka é efectivamente conhecido pelos retratos, com um dramatismo muito próprio.

 Self-Portrait with Hand by his face., 1919 - Oskar Kokoschka

Com o progredir dos anos o "expressionismo" de Kokoschka adquiriu outras cores mas ficou por outro lado mais disfórico. O quadro "Anschluss - Alice no País das Maravilhas" é de 1942 e refere-se à anexação da Áustria por Adolf Hitler.

Anschluß - Alice in Wonderland, 1942 - Oskar Kokoschka


quinta-feira, 30 de abril de 2020

Giorgio de Chirico (1888-1978)

Não tenho por costume dar particular atenção a pintores cuja obra só foi relevante durante, por ex., uma década. Vou abrir uma excepção para de Chirico.

Pintor italiano nascido na Grécia, estudou pintura em Atenas e depois passou pela Alemanha e por Paris antes de se fixar na Itália onde criou um estilo único de pintura que espantou todos os seus contemporâneos. A chamada "Pintura Metafísica", com todo o seu angst e simbolismo apaixonou o movimento Dada e os proto-Surrealistas. Só que quando o surrealismo arrancou tendo de Chirico como um dos mestres, já este tinha "voltado à ordem clássica", imitando os velhos mestres. Os Surrealistas, que inda agora o tinham descoberto, arrasaram-no. De Chirico não se importou com o acontecido. Continuou a produzir "obra metafísica" a pedido, porque vendia, muitas vezes cópias ou reinterpretações dos seus quadros conhecidos dos anos 1911-19, a que chamava, ironicamente verifalsi. Chegou ao detalhe de os assinar com a data antiga, para valerem mais.
Quando uma Biennale de Veneza mostrou um quadro seu recente como antigo (ou seria uma cópia?) de Chirico denunciou a exposição e montou anti-Biennales anos seguidos. A sua postura de "copy and paste" foi admirada (e copiada...) por Warhol. De Chirico assinava as suas obras como "Pictor otimus". How post-modern can you get?

"O enigma da hora" chama-se este quadro de 1911 e é dos primeiros quadros da fase áurea de de Chirico. "Ed quid amabo nisi quod aenigma est?" ou "e que posso amar senão o enigma?", são palavras do pintor. 

The Enigma of the Hour, 1911 - Giorgio De Chirico

"Hector e Andrómaca", de 1912 é o quadro com manequins mais conhecido do pintor, que aliás fez dele várias réplicas e "evoluções". Não é difícil de perceber o quão revolucionário este tipo de pintura foi nesses anos nem o quanto o Surrealismo a quis.

Hector and Andromache, 1912 - Giorgio De Chirico

De 1914 é o "Retrato de Guillaume Apollinaire", o grande apóstolo de de Chirico em Paris. O pormenor dos óculos escuros é completamente pop avant-la-lettre.

Portrait of Guillaume Apollinaire, 1914 - Giorgio De Chirico

Este "S.Jorge a matar o dragão", de 1940, é o exemplo de muitos quadros que o pintor fez depois dos anos vinte e que são difíceis de engolir. É verdade que a voluptuosa senhora presente é uma actualização provocante  e dissonante da princesa que habitualmente é salva do dragão. 
St. George Killing the Dragon, 1940 - Giorgio De Chirico

sábado, 25 de abril de 2020

Joan Miró (1893-1983)

O pintor catalão nasceu em Barcelona e foi em Paris que, depois de navegar entre o Fauvismo e o Cubismo, conseguiu um estilo de pintura aceite pelos seus amigos surrealistas e que se tornou a sua imagem de marca, embora sempre com algumas variações de percurso que lhe deram uma originalidade e uma frescura sempre renovada. As pinturas de Miró parecem mesmo produzidas em sonhos. A influência das artes nativas pre-colombinas, africanas e pre-históricas ibéricas não é também de desprezar. Voltou frequentemente à sua terra natal e fixou-se depois em Mallorca, onde morreu.
Esta pintura, "Maternidade", será uma das suas primeiras pinturas ao mesmo tempo surrealistas e mostrando já o seu mundo, o seu carimbo. É de 1924.
Maternity, 1924 - Joan Miró
Esta "Pintura", de 1933, mostra a importância da cor na pintura de Miró, completamente dominada e em equilíbrio total.
Painting, 1933 - Joan Miró
A "Mulher rodeada pelo voo de um Pássaro", de 1941 é de uma fase onde Miró preenchia a tela com um rendilhado de linhas que acrescentavam intensidade ao quadro. Falamos muito da cor de Miró mas o preto tinha sempre também uma presença importante nos seus quadros.
Woman Encircled by the Flight of a Bird, 1941 - Joan Miró
Mas Miró também sabia abdicar do excesso das cores e ser mais discreto na expressão, como em "Azul II", de 1961, num abstracionismo perfeito.
Blue II, 1961 - Joan Miró

Max Ernst (1891-1976)

Max Ernst, nascido alemão perto de Bonn, e após andar a acolher influências várias, ajudou a fundar  com Jean Arp um grupo Dada em Colónia em 1919-20. A segunda exposição do grupo foi fechada pela polícia por "perturbação da ordem". A recusa de toda a ordem, lógica, liderança, tradição, etc., guiou os Dada até ao Surrealismo embora não sem violência. O putsch liderado por André Breton serviu ao progresso da obra de Max Ernst, que se mudara para Paris em 1922, terra onde o Surrealismo "engoliu" os Dada. A pintura imaginosa de Ernst socorre-se de novos métodos de atacar a tela. Se no início os Dada tinham feito muitas collages, Ernst inventa ou utiliza a "frottage", depois a "grattage", a aplicação do pigmento directamente na tela. O Surrealismo ocupa os anos trinta até à 2ª Grande Guerra. Preso num campo-de-concentração em França, Max Ernst foge para os Estados Unidos onde a sua presença, em conjunto com a de outros exilados europeus, vai influenciar a pintura norte americana do pós-guerra. A procura do sucesso devolve-o porém a França onde é encarado já como um pintor consagrado.
Morre cidadão francês em Paris, ano de 1976,  depois de ter sido durante uns anos cidadão norte americano.
Max Ernst foi O Pintor Surrealista.
Uma pintura completamente "Dada" é esta "Demonstração Hidrométrica", de 1920.
Hydrometric Demonstration, 1920 - Max Ernst
"Mer et Soleil" é de 1925. A pintura mais sintética de Max Ernst, como esta aqui, antecipa muito do que se fez depois da 2ª Guerra Mundial.
 Sea and Sun, 1925 - Max Ernst
Max Ernst "inventou" muitas florestas, como esta "Fôret- Arêtes", de 1927. Também aqui vemos obra a antecipar obra que aconteceria bastantes anos depois.
Fishbone Forest, 1927 - Max Ernst
Para que não digam que eu fujo ao Max Ernst mais figurativo eis "Napoleon in the wilderness", 1941, da fase americana do pintor. Aqui, pelo contrário, uma obra que poderia ter sido produzida 15 anos antes. 
Napoleon in the Wilderness, 1941 - Max Ernst

Marc Chagall (1887-1985)

Marc Chagall nasceu em Vitebsk, numa remediada família judia russa, hoje Bielorrússia. Muitos anos depois naturalizou-se francês.
A sua procura de uma educação pictórica levou-o até S. Petersburgo e depois Paris, onde o contacto com a vanguarda do momento lhe deu a côr para compor o seu modelo muito particular de pintar, algures entre o simbolismo e o fauvismo, com uma liberdade muito grande na composição do quadro e um lirismo evidente na evocação dos temas da sua origem judia, russa, e da sua família.
O seu modo de pintar estava constituído quando voltou à Russia em 14 e, preso pela Grande Guerra, por lá ficou. Já com alguma fama teve alguns cargos de importância depois da Revolução de Outubro mas, desiludido, partiu para Berlim em 22 e para Paris em 23. Era agora um pintor famoso, e quando o nazismo ameaçou, foi prontamente importado pelos Estados Unidos, mais concretamente em 41.
Voltou depois para França, onde viveu no sul até morrer, pintando sempre de alguma forma o mesmo quadro, com o mesmo lirismo, talvez menos solto de formas e temas. A seguir a Picasso pode ser considerado o maior produto da dita Escola de Paris.
"Moi et le Village" é de 1911 e inaugura a pintura que conhecemos como de Chagall. A cor solta, as figuras perdidas ou não pelo quadro mas no sítio certo, algum toque do cubismo então presente, um quadro pintado em Paris mas a falar da terra de partida.
I and the Village, 1911 - Marc Chagall
"Paris par la fenêtre" é, pelo contrário, o retrato de Paris pelos olhos encantados do pintor.
Paris through the Window, 1913 - Marc Chagall
"Sur la Ville", pintado na Rússia em 1918, prolonga o período fulcral da obra de Chagall. Só ele poderia pintar com a maior das naturalidades um casal voador de apaixonados, neste caso ele e a sua esposa.
Over the town, 1918 - Marc Chagall
"La Crucifixion Blanche", pintado em 38 em Paris, antecipa a Guerra que começaria no ano a seguir, e o sofrimento russo, ortodoxo e, de uma forma diferente e mais definitiva, judaico.
White Crucifixion, 1938 - Marc Chagall

Edward Hopper (1882-1967)

Edward Hopper foi o expoente máximo do chamado "Realismo Americano". Nasceu em Nyack, um pouco a norte de Nova Iorque e nesta faleceu em 1967.
Visitou Paris mas para estudar os clássicos e nem prestou atenção às novidades que por lá aconteciam. Modesto, discreto, sério, os quadros que pintou são um reflexo provavelmente da sua personalidade e a melancolia que lhes pomos será a nossa, bem como qualquer narrativa ou simbolismo. Por meados dos anos 20 começou a ser reconhecido e deixou de ser ilustrador, que era o seu ganha-pão.
A sua obra é um bloco único, e influenciou algum figurativismo do pós-guerra. Muitos quadros seus hoje são ícones pop mas nada perderam do seu mistério.

"House by the railroad" é de 1925 e inspirou a casa de "Psycho", o filme de Hitchcock.

House by the Railroad, 1925 - Edward Hopper - WikiArt.org

Do ano a seguir é este "Sunday". A alegria deste Domingo é evidente.

Sunday, 1926 - Edward Hopper

"Nighthawks", de 1942, é a sua obra mais conhecida, e o título do quadro faz pensar que pelo menos um mínimo de interpretação foi colocado pelo autor neste jogo de personagens, magistralmente coreografado.

 Nighthawks, 1942 - Edward Hopper
Nem as cores claras permitiam alguma alegria a Hopper. Vidé "Rooms by the Sea", de 1951. O aparecer directamente do oceano na imagem sugeriu a alguém um leve toque de surrealismo. Juro que se Hopper pintou assim é porque era assim.

Rooms By The Sea, 1951 - Edward Hopper

terça-feira, 21 de abril de 2020

Negro attaqué par un jaguar dit aussi Paysage de foret vierge au soleil couchant.

Negro Attacked by a Jaguar, 1910 - Henri Rousseau

Henri Rousseau, dito Le Douanier Rousseau por, vagamente, ser essa a sua profissão, foi um pintor autodidacta, nascido em 1844 e falecido em 1910, e que frequentou, embora bem mais velho, os meios modernistas da Paris do fim do século XIX. Dizem também que inventou a pintura naif.

É engraçado ler vários textos sobre Henri Rousseau. Nunca falta - como aqui não faltará - o mencionar da sua fraca técnica, da sua limitação temática, de que os seus quadros eram versões imaginosas de fotografias ou desenhos de outros sobre países ou locais que Rousseau nunca tinha visitado. Cria-se o instantâneo de um tipo um bocado "incompleto", que frequentou determinados sítios "porque lhe achavam piada". Picasso fez-lhe um jantar de homenagem em 1908, coisa séria segundo alguns, uma brincadeira para outros. Provavelmente ambas as duas coisas. Nele participaram Juan Gris, Apolinnaire, Gertrude Stein.

Um quadro não é mais do que um rectângulo de tela pintada. Um resultado. Com muita ou nenhuma técnica, aqui como em outras coisas na vida, o que conta é o resultado. 

O quadro acima, o fantástico quadro acima, oferece-nos uma selva luxuriante que mais parece pré-histórica, com um redondo sol laranja que se põe, domina e cala, a sombra negra apanhada por um gato listrado apenas um detalhe naquilo que parece ser uma versão do paraíso. Os vários verdes dominam quase toda a tela, deixando o "V" onde o sol de põe para um creme melancólico. As flores são amarelas, brancas, laranja. A paleta de cores não é alegre, note-se. Será na verdade o paraíso? No paraíso os jaguares também atacam os negros? 

domingo, 19 de abril de 2020

Um vírus relativamente bonzinho.

1. Ontem era capa no Expresso a expressão de uma cientista portuguesa que dizia "Este é um vírus relativamente bonzinho." Por outro lado repetiam na SIC as imagens da alta de um homem com a minha idade das Infecciosas do meu hospital. Ele é dono de uma confeitaria aqui da Maia, donde seguiram hoje quatro rocas para o mesmo hospital. Ele sobreviveu ao mesmo "vírus relativamente bonzinho". Um de poucos, depois de entrados nos intensivos.

2. Quando tudo isto começou, isto do Covid-19, lembro-me de ter feito um screening rápido aos doentes que enchiam os intensivos do meu hospital. Internados em cuidados intensivos estavam dois doentes com pneumonia grave por Gripe A, bem mais novos do que eu. Ambos sobreviveram e tiveram alta, eu sei.

3. Hoje voltei pela primeira vez desde 17 de Março a visitar os meus pais, 82 e 93 anos de idade, em Ovar. Isolados como estão, ao cuidado de uma senhora que, com máscara e higiene de mãos frequente, os atende nas manhãs de 2ª a 6ª, visitei-os mascarado. Não os abracei, não lhes dei um beijo. Como substituição agarrei-me a uma cadela que por ali estava e sempre os acompanha que primeiro me latiu, estranhando o disfarce, culpando-me da ausência de mais de um mês.

4. Faz sol, as temperaturas roçam os vinte graus. A valerosa ministra da nossa Saúde volta a insistir que já passou o pico. Começamos a ouvir as palavras praia, missa. As escolas vão abrir, algumas, não tarda nada. Curiosamente nada de futebol. E continuam a pingar quinhentos positivos dia, trinta mortos também.

5. Chego a casa pela hora do lanche, no meu bairro um vizinho oferece uma sessão de karaoke a quem o queira ouvir e aos outros, porque o tempo e as regras de higiene pedem que se abra as janelas.

6. Este vírus não é para graças. Para além dos pulmões pode atingir cérebro, coração,  rins, a coagulação... Uma letalidade de 2% em cinco milhões, por exemplo,  equivale a cem mil mortos. Mas a praia, a escola e o turismo. Outra forma de ver a coisa é a mortalidade nos doentes que necessitam internamento hospitalar. Na gripe A esta mortalidade foi de 1-3%. Na Covid 19 esta mortalidade será dez vezes superior ou mais.

7. Este vírus não tem tratamento. Não tem.  Um ventilador não tem propriedades antimicrobianas.

8. Celebro o Professor António Sarmento do meu hospital,  que confessou,  caso isolado, o mistério que ainda é o Covid 19. Devo-lhe isto,  o diagnóstico de uma mononucleose infecciosa vai para trinta anos e a melhor aula sobre choque séptico que eu já ouvi, vai para dez. 

9. Quinhentos positivos e trinta mortos por dia. E o norte do meu país a manter uma visível transmissão comunitária. Não saio de casa sem máscara. 

10. Para quando um filme no cinema, entrar numa livraria sem hora de saída,  assistir a um concerto e trautear a voz aberta aquela canção? 

11. Uma sorte eu tenho, temos aqui por casa, os quinhentos positivos e as trinta mortes dia asseguram os nossos empregos. Não os  de  milhões. 

12. Este vírus acrescentou um grau de aleatório à minha vida e à  dos meus que eu não queria. Um aleatório que atrapalha. Morreu o Sepúlveda.  Safou-se o Fernando Rocha. Mas cuidado ó filho-da-puta, olha que a imunidade se calhar não é definitiva! Virá não uma vacina mas cem. Mas o vírus já se dividiu em três sub-estirpes. Dizem que o vírus, inteligentemente, para sobreviver vai adaptar-se a nós. E se o vírus se engana? 

13. Eis a lição deste vírus: nesta vida, se calhar, nada é definitivo. A não ser... 

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Juan Gris (1887-1927)

José Gonzalo-Péréz nasceu em Madrid. Partiu para Paris em 1906 e foi aí que conheceu Matisse, Braque, Léger e Picasso. A sua pintura evoluiu naturalmente para o cubismo. Desde 1914 o seu estilo ancorou num Cubismo Sintético cuja harmonia e equilíbrio faziam a inveja nomeadamente de Picasso. Já sob o nome que o tornou conhecido tinha pintado em 1912 um retrato deste. Disse Dali: "Picasso était constamment tourmenté par le désir de comprendre la manière de Gris dont les tableaux étaient techniquement toujours aboutis, d'une homogénéité parfaite, alors qu'il ne parvenait jamais à remplir ses surfaces de façon satisfaisante." Gertrude Stein confirmou por escrito esta rivalidade. Gris manteve o seu estilo de pintura pelos anos fora e a morte por uremia acabou por resolver a dúvida sobre por onde iria caminhar a sua obra. Tinha 40 anos.

"Le Livre", 1913 acontece no começo do tal Cubismo Sintético.

The Book, 1913 - Juan Gris

"La Fenêtre Ouverte", 1921, admite a paisagem no Cubismo, o que não é frequente.

The Open Window, 1921 - Juan Gris

Também "La Fenêtre du Paintre", de 1925, demonstra o mesmo equilíbrio de composição, a mesma paleta de cores, dois anos antes da morte do artista.

The Painter`s Window, 1925 - Juan Gris


Francis Picabia (1879-1953)

Francis Picabia nasceu numa família rica com um pai espanhol nascido em Cuba. 
Aprendeu a pintar conforme lhe era pedido e navegou com sucesso pelo impressionismo até 1909 quando por alguma razão rompe com a sua receita de sucesso e envereda primeiro por um Fauvismo interessante, depois pelo Cubismo do grupo de Puteax onde conhece Marcel Duchamp. A influência deste e uma visita com exposição a New York em 1913 alteram-lhe a trajectória e nascem os primeiros quadros "Dada", reconhecidos a posteriori. Picabia está fascinado pelas máquinas e pelos maquinismos. Depois da Grande Guerra é o grande agitador do Dadaísmo e dos primeiros tempos do surrealismo. Depois zanga-se com toda a gente, excepto Duchamp. A sua pintura fica "monstruosa", embora figurativa, e depois quase neoclássica, ao pintar uma série de "transparências" onde a sobreposição de motivos cria uma neo-perspectiva. Nos anos 40 - porque está sem dinheiro? o jogo e os carros eram a sua ruína - pinta quadros "hiper-realistas", frequentemente baseados em fotografias de revistas eróticas - how "dada" can you get? Completamente apolítico durante a 2ª Grande Guerra, como bom "dada", consegue reganhar os favores do público com um abstraccionismo minimalista que mantém com poucas variações até ao AVC que o inutiliza para a pintura em 51. Morre dois anos depois.

Esta aguarela é o primeiro quadro abstracto de Picabia e é de 1909. Chama-se "Caoutchouc". Um anos antes de Kandinsky.

L'œuvre Caoutchouc - Centre Pompidou

"Etdaonisl", de 1914, nasce quando Picabia volta da América e retrata uma dançarina que ele viu no barco de volta. O nome do quadro nasce da spbreposição das palavras "Etoile" e "Danse". Eis um cubismo fim-de-época cheio de movimento e cor.

Edtaonisl (Ecclesiastic), 1913 - Francis Picabia

A fase mecanicista de Picabia já é pura provocação "dada" e vai a par com a obra de Duchamp. "Fille née sans mére", é de 1917. Os mecanismos como novos génesis...


Francis Picabia, Fille née sans mère [Girl Born without a Mother]

Este quadro pintado durante a 2ª Grande Guerra - filho da necessidade ou não - é "Pop" avant-la-lettre. Picabia gostava muito de cinema mas os modelos aqui são fotografias. A apropriação "dada" levada até ao limbo do kitsch.

Women and Bulldog, 1941 - 1942 - Francis Picabia





Kasimir Malevich (1878-1935)

Malevich nasceu em Kiev filho de pais polacos. Partiu para Moscovo e começa a pintar obras com muita atenção à cor. Estamos nos tempos imediatamente antes da Revolução Russa e Malevich aparece na primeira fila das movimentações. A sua pintura vai evoluindo à procura de alguma coisa - teve contacto com o cubismo - que só em 1915 percebemos o que é. Malevich inventa o Suprematismo e nele aparece o famoso "Quadrado Negro em Fundo Branco", como que o umbigo de uma teoria, sendo o branco a ausÊncia e o negro o acúmulo de todas as cores. A partir daí tudo era possível. Torna-se conhecido mas nem sempre reconhecido. Chega a participar na segunda exposição do "Cavaleiro Azul" na Alemanha. Escreve, escreve, escreve. Nos anos vinte chega a parar de pintar. Em 27 cai em desgraça e é preso e provavelmente torturado. Os últimos anos de obra alternam entre um figurativismo geométrico que já era seu antes e um realismo estranho - talvez Malevich pintasse apenas o que adivinhava ser possível pintar naqueles tempos de "realismo socialista".

"Carré Noir sur Fond Blanc", 1915. Uma das obras ícone da pintura do século XX.

Carré noir sur fond blanc, 1915 - Kasimir Malevitch

"Suprematism", é de 1916 e é uma reinvenção do espaço e da cor segundo as teoirias de Malevich. É um mundo novo.

Suprematism, 1916 - Kasimir Malevitch

"Camponeses", 1930 representa uma das linhas de trabalho nos últimos anos de Malevich, um figurativismo geométrico agreste.

Peasants, c.1930 - Kasimir Malevitch

"Trabalhadora", de 1933, tem as cores do suprematismo, o realismo que os sovietes exigiam e algo mais...

Worker, 1933 - Kasimir Malevitch

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Ernst Ludwig Kirschner (1880-1938)

Kirschner é o pintor mais importante do Expressionismo na Alemanha. Não deixou porém de participar também no rearranjo do papel da cor na pintura do início do século XX. 
Embora nascido na Baviera foi em Dresden que se tornou conhecido e fundou com outros o grupo "Die Brücke", em 1905. A figura feminina e o rebuliço das ruas são os temas da sua pintura. A pintura de Kirschner é angulosa, rude, solitária. É mais "fauvista" do que os fauvistas.
Mobilizado para a I Grande Guerra é dispensado por um esgotamento nervoso. Corre durante vários anos vários sanatórios mentais, por instabilidade psíquica, alcoolismo e dependência de comprimidos. 
Ao fim de alguns anos encontra alguma paz em Davos, na Suiça. Ganha notoriedade e é reconhecido finalmente na Alemanha mas o nazismo avança. Suicida-se em 1938 por medo de que a Alemanha nazi invada a Suiça.

"Marzella" é de 1909 e é um retrato da puberdade completamente às avessas do que até então se tinha feito.

Ficheiro:Kirchner 1909 Marzella.jpg

Os seus retratos en abîme das ruas das metrópoles alemãs fizeram história. Aqui temos a "Potsdammer Platz" de 1914.

Ficheiro:Ernst Ludwig Kirchner - Potsdamer Platz.jpg

O quadro "Cozinha Alpina" de 1918 não deixa de lembrar o quarto de Van Gogh e pode ter significado algo de parecido para o pintor: o ninho onde lhe era permitido sofrer à vontade?

Ficheiro:Ernst Ludwig Kirchner - Cocina alpina.jpg