sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Do dia - quatro.

Na minha juventude eu sabia da existência de duas casas de putas em Ovar. Uma era no Jardim da Estação, a outra numa rua meia escondida a través da Manuel Arala. Estão as duas hoje desactivadas. E a famosa Estrada da Mata, zona de putedo de estrada que ia desde o Furadouro até Cortegaça, idem. Lembro-me de, adolescente e - oh tão bem intencionado - achar que o "fenómeno da prostituição" era uma questão de tempo até se tornar uma coisa do passado. Mas não foi assim que aconteceu. 

A HBO abriu as hostilidades sobre o que será "O Admirável Mundo Novo" recriando numa série televisiva um velho - de 1973 - livro e filme de Michael Crichton: "Westworld". A série gira à volta de um parque temático onde robots perfeitos permitem aos visitantes fazer o que quiserem. E o que querem eles? Roubar, matar, violar. Com Anthony Hopkins, Ed Harris e Evan Rachel Wood, mais do que promete "Westworld". Mas continua a ser isto o que vamos querer fazer mais - se permitido nos fôr tudo? "Live without limits", promete a série.


Do dia - a terceira.

Com a calor que está conduzi pela VCI de janela bem aberta, alta a música que corria, Marisa Monte. Sei que não é consensual esta coisa de de uma janela aberta sair música que se ouça. Nunca me atrapalhou, desde que boa. Cinzentos são os dias sempre, tão escassa a música neles. Um intervalo colorido para os ouvidos é tantas vezes mesmo tão bom. Portanto não fechei a janela até casa.

Escusam de agradecer. Boa? A música que toca no meu carro é óptima!


Do dia - a segunda.

O Sr. Felizardo é de Vila Flor e esperou - com disfarçado desespero - hora e meia pela minha consulta. As cãs disfarçadas por uns tons de castanho médio, ofereceu-me ainda assim o melhor azeite do país - que é o de Vila Flor, claro está, da vale da Vilariça. E descansou-me sobre estes dias de calor que permanecem: "aproveite e não se preocupe pois por agora nada se semeia e nada cresce, falo do que sei que agricultor sou eu, portanto..." 

Portanto, não nos preocupemos e vá de aproveitar este calor tão estranho...

Do dia - a primeira.

Não acredito em Deus. E acredito em poucos homens. Acredito no Padre Nuno.

Há mais de dez anos, convidado para almoçar no Jacinto porque iria oficiar o casamento de uma pessoa amiga, o Padre Nuno negou-se a furar a fila para o almoço que nós, médicos, furávamos diariamente para ultrapassar a estudantada que multiplicava o movimento naquele que era então o "restaurante" mais movimentado da Cidade. Para o Padre Nuno ultrapassar alguém numa fila era uma impossibilidade.

Pouco antes tivera a única longa conversa com ele, sobre uma perda comum, a de um Amigo dele, a de - para mim - o mais interessante Poeta dos anos noventa portugueses: o Daniel (Augusto) Faria.
Que morreu - tão Novo - neste Hospital. Se calhar foi o Padre Nuno a ministrar-lhe os Últimos Sacramentos.

O Padre Nuno vai para Fátima - para ser capelão do Santuário. Talvez seja Fatíma o único sítio do país com mais Doença do que o meu Hospital. Só assim entendo.

Aqui fica:


"Vejo o pedreito à chuva a abrir aquedutos para o coração
Vejo o pastor a alinhar orifícios na cana do junco
Vejo os gestos do mundo dispondo o silêncio"


#


"Voz pisada como o vinho
De onde bebo
A perda dos sentidos

Silêncio tão pisado que não verte
O verbo
Silêncio encruzilhado

Na voz do homem calado no caminho"



Daniel Faria, Dos Líquidos. 2000.



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Serralves - o resto.

Todo o frenesi à volta de Miró permite algum espaço vital para visitar outras exposições, nomeadamente as do Museu. Foi o que fiz: "Arte Portuguesa Recente na Colecção de Serralves".
Recomendo. 




domingo, 23 de outubro de 2016

De Águas Santas para Matosinhos - parte quatro.

Conduzir é bom. Fornece um caminho pelo qual avançamos como se fosse uma decisão só nossa. Não é.

E voltemos ao nosso caminho. Pela direita temos a Rua da Lagoa (e onde esteve esta lagoa?). Cruzamos a Avenida Calouste Gulbenkian (conhecido amigo da Senhora da Hora) e apanhamos a Rua de Sendim o que equivale a dizer que estamos a entrar em Matosinhos. Em Sendim está o cemitério da cidade mas, mais importantemente, o tanatório. Tomei o primeiro contacto com os tanatórios em Espanha. Lá fazem-nos feios, suponho que de propósito. Habitualmente parecem minimercados a quem mudaram o propósito da construção dias antes da inauguração. Ou bunkers. Não sei como será a coisa em Matosinhos mas nos tanatórios em Espanha o elefante na sala da morte é quase invisível: o caixão está reservado ao lado e podemos ou não ir admirá-lo - uma mariquice. Lembro-me do Armando Urger na capela funerária ali em S.Mamede: no meio da sala, como cumpre, como era merecido. Mas fim desta conversa, não esqueçamos que levo no banco de trás uma criança.

Sendim fica num alto de onde antigamente poderíamos olhar para o que seria uma curta bacia de chegada do Leça ao mar. Muito antigamente, pois a versão de hoje do Porto de Leixões já não é a primeira, o Porto de Leixões tem a sua antiguidade. Rodamos para a esquerda e depois para a direita e entramos na Rua de Alfredo Cunnha (não o fotógrafo, claro), aquela que desce para o centro cívico de Matosinhos. Matosinhos tem a estrutura de uma pequena cidade com o jardim central, adossada a premiada Câmara Municipal e por um braço de avenida para a direita chegamos ao Senhor de Matosinhos. O Senhor de Matosinhos é sede da poderosa Misericórda (e em terra de pescadores que falta faz...) e tem um parque interessante anexo, mas o jardim de Basílio Teles, o quadrilátero central da terra e que fica junto à Câmara. é mais interessante. Já o conheci com os caminhos em terra batida - asfaltaram-nos criminosamente. Os matosinhenses usam este parque em abundância, sobretudo ao fim da tarde e no fim-de-semana. Os pais tiram bilhete nas manhãs de domingo para que os filhos usem os poucos baloiços que existem. Ou não tiram e daí surgem generosas discussões. Em frente está a Ferreira onde, depressa ou devagar, nunca se come mal. E é isto, podemos parar e, rodando, temos onde brincar, onde sentar, onde rezar, onde comer. Onde jogar umas cartas, onde dormir na relva. Porque tudo isto por aqui acontece; Matosinhos não se esconde. "Homem simples, mas inteligente, foi benemérito ilustre até ao momento em que inicia carreira no sector das pescas, para o qual não estava preparado e que, pouco a pouco, lhe consumiu os bens." Eis o que se lê no site camarário. Falo de Ló Ferreira, o homem que dá nome à rua seguinte. Oriundo do Douro e emigrante no Brasil depois de ter trabalhado no Porto de Leixões, mandou construiu o Teatro Constantino Nery - o nome sendo do governador de São Paulo que o tinha ajudado a fazer fortuna! Go figure...E o Bairro dos Pescadores...Em Ló Ferreira fica o Tapas e Papas e o Lua, um restaurante e um café. Ainda há poucos anos a minha cara aparecia no site do Tapas e Papas. Não vou agora verificar. No Lua o Alberto conversou quase tudo comigo antes de fugir para a Madeira. É agora mister seguir por Tomaz Ribeiro, e o "z" é homenagem à antiga grafia de um antigo poeta. Já não existe a confeitaria Dallas que, na esquina. fornecia os melhores croissants. Foi absorvida pelo Mauritânia, uma instituição da comida em Matosinhos. Noutro Mauritânia, uns metros atrás, jantei uma vez com uma "geração médica", o João, o Albino, o Luís. Acho que esse jantar não é para esquecer - até porque acho eu que foi algo mais do que um jantar. Este Mauritânia da Tomaz Ribeiro servia quartos de dose. Na vida nunca será suficiente um quarto de dose, mas à mesa do Mauritânia era assim. E, por uns bocados, ficávamos contentes e convencidos que com pouco podíamos seguir em frente. A generosidade dos portugueses é um mito: não existe. Por isso lembro bem o João a carregar um móvel escada acima. O João é das pessoas mais generosas que eu já conheci. Depois, na Brito e Cunha ou seja em frente ao Mauritânia a Garagem Leixonense do Senhor Sousa. Este homem merecia não uma referência de rodapé mas sim um livro. E prova que os quadros de desorientação pos-operatória são mesmo transitórios. Brito Capelo está tomada pelo metro. Na esquina esquerda estão os Bombeiros Velhos de Leixões. Conheci-os como um restaurante. Explicar Matosinhos é como explicar tudo o resto, depende por onde se tome. Já esqueci o nome do restaurante, dos donos e do filho do dono que podemos considerar que era um amigo. Era um restaurante onde se podia comer mal - mas nunca comi mal. Onde podia haver uma zaragata - muitas - mas sempre me trataram bem. A minha filha tinha acesso livre á cozinha - o que podia não ser obrigatoriamente bom, mas era. Matosinhos é isto: pode ser mau, pode ser bom. Depende de com quem te encontres, de quem te guie ou te explique por onde ir, os leixões que é preciso evitar para conhecer o bom porto.


E, girando à esquerda, estava o infantário, o Pestinhas. A miúda que se fazia passar por educadora de infância e que não o era fez a minha filha muito feliz. O que só demonstra que há mentiras que são óptimas verdades, e que há verdades que às vezes não chegam. 



Posto isto, Nelson, obrigado mais uma vez pelo café da passada qunta-feira, e pela inesperada dedicatória. E és das poucas pessoas que me podes perguntar tudo o que quiseres. Outra coisa é que te responda. 



Respondi? Talvez sim, talvez não...

De Águas Santas para Matosinhos - parte dois.

Pode não parecer mas esta estrada para o mar que percorro discorre em oculto diálogo com um rio, o Rio Leça. Ao descer do Mosteiro de Águas Santas aproximamo-nos muito do rio em questão até nos encontrarmos com o cruzamento - hoje uma rotunda - onde à direita fica a ponte de Parada e à esquerda a Milaneza, hoje chamada de Cerealis, a maior fábrica de massas do país. A Rua chama-se de Manuel Gonçalves Lage, o fundador da dita. O cruzamento da Milaneza é uma referência geográfica. Para a direita seguimos para Milheirós, para a esquerda subimos a encosta para Pedrouços. Cada ponte sobre o Rio Leça terá uma história, de nenhuma eu a sei. Ponte da Alvura, Ponte da Pedra, Ponte do Carro. Começamos a subir por Moalde e o concelho já é Matosinhos, a freguesia S. Mamede de Infesta. Nesta terra tive eu bons amigos, o Augusto, o Armando Urger. Muita gente daqui trabalha onde trabalho eu, por óbvia proximidade. S. Mamede tem ares de vila e população de cidade. Há um centro, uma organização urbana com raízes relativamente antigas. Passada a igreja chegamos aos semáforos que definem o centro da terra e cruzamo-nos com a antiga estrada Porto-Braga, que antes saia do Porto pelo Amial. Siga a rusga. Outra vez nos cruzamos com a linha férrea de Leixões, outro traço que define esta área, e por Picoutos subimos para o Padrão da Légua.
Nesta fase podia obviar o caminho pela Rua do Monte da Mina seguindo pela recente Rua Elaine Sanceau. Não faço a mais mínima ideia - nem o Google me consegue explicar - porque há uma Rua Elaine Sanceau aqui e que depois segue como Avenida Xanana Gusmão (seriam primos?). Jovem li muitos livros de Elaine Sanceau, livros simples e escorreitos de divulgação dos nossos feitos ultramarinos. Historiadora e escritora de origem britânica, escolheu Portugal e o Porto (seria S.Mamede?) como residência e a nossa História como vocação. Muito galardoada (alinhada com portanto) antes do 25 de Abril, talvez daí a razão de hoje ninguém a conhecer - a não ser os habitantes desta rua da freguesia de S.Mamede cujo nome utilizarão sem saber  porquê - sempre que mencionarem onde vivem, onde dormem. À esquerda da Rua do Monte da Mina fica a Igreja do Padrão da Légua. A primeira vez que vi a minha filha dançar foi no seu Salão de Festas. Ainda não me cansei. Nesta igreja vem muita gente casar.
O Padrão da Légua é uma confluência de estradas e freguesias: Custóias, Senhora da Hora, S. Mamede e Leça do Bailio. Existe alguma aglomeração de comércio e pequenos cafés, pastelarias... Antigamente havia dois videoclubes, um abaixo e outro acima. Fui sócio dos dois, para além do clássico Indiana Jones que ficava no Brasília. Assim sendo, nunca faltava filme para entreter os humores. Voltando ao AX, por aqui lhe mudei a primeira roda, à chuva. E por aqui perto caiu-lhe inteiro ao chão sem aviso o pára-choques dianteiro. Para baixo do Padrão da Légua fica o Seixo, que vai até à Circunvalação. Num bairro camarário alojaram um meu amigo, velho calceteiro, que antes habitava - ele e várias famílias que eram da sua família, numa ilha ali perto da Boavista. Alojaram-no e tiraram-lhe meia saúde. Sobreviveu dois anos ao alojamento. O Seixo termina, já disse, na Circunvalação. Outras pessoas conheço que por ali moraram, que me deixaram entrar na sua casa. 

De Águas Santas para Matosinhos - primeira parte.

O Porto é uma cidade pequena, sejamos sinceros. A sua população há 30 anos que diminui. É de um quarto de milhão de habitantes. Na vizinha Espanha, com mais habitantes há uma dezena de cidades ou mais. O Porto necessita da rede suburbana que o rodeia para recobrar fôlego, fazer peito. E são poucos os portuenses verdadeiros, afinal. Até porque, retirados para o subúrbio serão apenas uma minoria. A maior parte dos suburbanitas vieram do resto do Norte do país, atraídos pelo ensino, pelo emprego. A rede suburbana que abraça a cidade do Porto tem capítulos, subdivisões, linhas que antes eram bem claras mas hoje são apenas detalhes, solavancos num todo contínuo de casario e gente, gente com um querer especial, bem mais firme do que os nossos citadinos, amolecidos por esta história do Património Mundial, o Turismo e tal e coisa... 

Vejamos por exemplo a EN 208. Descendo da Santa Rita - onde uma doente minha uma certa vez com cravos pretendeu curar-me umas verrugas - chega à ponte sobre o comboio da Palmilheira e - puff! - saímos de Ermesinde e entramos em Águas Santas. Não só a Maia nos obriga a sorrir mas transforma logo possessivamente a EN na Avenida do Lidador. Confesso-te, Nelson, que, porque atrasado, nem me lembrei que já ali vivi. Quem puxaria para ali uma Rua Camilo Castelo Branco... Mas este mundo dá essas voltas todas, e finalmente tenho-me dedicado a ler o meu Camilo, so... A Avenida do Lidador dirige-se ao Alto da Maia. Que seja um alto é bem prático. Várias vezes, por mau feitio do meu carro de então, caminhei a pé até ao meu emprego, o mesmo de hoje. Se fosse a subir teria sido impossível. Corim, Forno, Giesta, Triana, Areosa. Os arredores do Porto mudam de nome cada duzentos metros. A minha filha conheceu muito bem "os" Modelo que ficava(m) ali em frente.  E havia uma Pizzaria na esquina. A dono era simpático. Sempre achei que a pizzaria era um negócio de fachada e que na realidade ele era um traficante de droga. Uma ou duas zaragatas nocturnas inespecíficas só fizeram acumular as minhas suspeitas. A zona de que falo é a Granja - outro nome. Entretanto forneceram-lhe algum verde. A urbanização de que falo e onde vivi era conhecida pela "dos Sonhos". Curioso nome. O meu Citroen AX - carro mítico - morreu ali atrás, mais de 280000 km de vida, a Câmara da Maia recolheu-o para abate. Na realidade o conta-quilómetros dele parara durante uns meses, a cause d'un petit accident... posso bem especificar que foi em 96; portanto quilometragem completa desconhecida. Mas, rodando, com pressa ía, Nelson, atrasado mais uma vez para tomar contigo um café. 

No Alto da Maia poderia rodar à direita e, seguindo pela Rua Dom Afonso Henriques, estaria a rodear por fora a mole imensa que é Ermesinde, passando pela Gandra e seguindo até Ardegães. Águas Santas, Ermesinde (com Alfena) e Rio Tinto (com Baguim): uma cúspide que encabeça o Porto e que lhe fornece mais cento e trinta mil almas - não era assim que se dizia antigamente? Na Gandra viveu um bom amigo meu, em cuja casa dormi algumas vezes. O prato especial daquela casa era almôndegas. Acho que ainda hoje esse meu amigo não sabe o quanto gostei de com ele privar nesses antigos e selvagens anos. Vi com ele o Sakamoto no Coliseu em 96. Foi uma boa forma de dele me despedir. Mas no Alto da Maia o melhor é seguirmos em frente, pela Rua do Mosteiro, e começarmos a descer. Sem saber - as casas cobriram tudo - estamos a descer para o Rio Leça. Ao fim de algum tempo uma elipse permite-nos derivar para a direita. Há ali um Centro de Saúde - onde a minha filha levou a primeira vacina portuguesa. O nome do Centro de Saúde é dum autarca que então ainda vivia, quando da atribuição do patronímico - odiosa prática. Cinquenta metros e eis-nos no Parque de Moutidos. Mas esta não é sobre estes cafés que às vezes tomamos.

A Rua do Mosteiro é o começo de uma estrada que nos vai conduzir até Matosinhos. E que durante uns meses me levou, com uma menina atrás levada, até um infantário na Rua Brito Capelo. Porque, a viver em Áuas Santas, Matosinhos seria a próxima paragem, ainda não se tinha decidido onde com precisão. O primeiro infantário foi uma casa de alegria. Descobriu-se depois que a educadora não o era. A Cata nunca se queixou disso. Morava em Pedrouços - que também fica aqui perto. Anos e anos e anos e anos a transportá-la: à criança menina. E a mil e uma partes. Ainda é assim. Mas estará a coisa por pouco, resvés Campo de Ourique. Há várias explicações para esta engraçada expressão. A mais gira tem a ver com o maremoto que compôs o terramoto de 1755. O trajecto que mais lembrarei é este: Águas Santas-Matosinhos. Que vou recriar. Nelson, não adormeças. 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

De Águas Santas para Matosinhos - parte três.

Pela Rua de S.Gens entramos na Senhora da Hora. Rua de bairros térreos, bairros operários. A Senhora da Hora forneceu o grosso da história escolar da minha filha. Que não acabou bem - um dia falaremos da jericada que é a criação dos Agrupamentos Escolares. Mas foi feliz na Escola dos Quatro Caminhos, deslocada para  a Escola do Sobreiro, cinquenta metros acima. Por ali perto nasce a Rua do Senhor, onde nasceu e hoje, milionário e moribundo, subsiste um mau infantário que já foi bom. Um infantário nunca devia poder passar de mãe para filha. Nas fases mais recentes o lanche era meia pêra e para condicionar as crianças a não desperdiçar comida eram projectadas na parede imagens de meninos africanos com barrigas-de-água. Não, os pais nunca sabem por completo o que na(s) escola(s) acontece. A não ser quando acontece o maltrato psicológico violento em que a Escola Amarela - bem aplicado nome - se especializou. Por ali - Senhora da Hora - viveu um primo meu por afinidade. Vivia maritalmente com uma criatura que o maltratava e o procurava nos cafés: "Viram o meu homem?". Sempre me pareceu exagerada a crítica a esta bruta expressão: não somos nós animais de posse sem mais? Também na Senhora da Hora fica o meu Centro de Saúde. Ou ficava, já não sei bem. Na esquina da Rua da Estação Velha com a Avenida Fabril do Norte - e o Metro - fica uma apertada e muito boa sala de estudo. Ajudaram-nos a perceber tudo e no momento certo.

Junto à Escola dos Quatro Caminhos há bons sítios para estacionar. Mas estacionar pode ser também perder o lugar se não prestarmos atenção.

De um infantário falei mal e com razão. Et, pourtant, danser...

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Berlim dia quatro.

No dia 4 fomos de metro até Potsdamer Platz e depois caminhámos até uma zona de museus e edifícios públicos. Caminhamos junto ao Landwehrkanal - o canal para onde atiraram o corpo de Rosa Luxemburgo em 19 - e depois passamos ao lado da Neue Nationalgalerie de Mies van der Rohe até encontrar a Gemäldegalerie. É um edifício novo, não espectacular, onde está uma extensa colecção de pintura antiga, com grande destaque para alemães e italianos. Extensa e com extrema qualidade. Ali almoçamos. A tarde foi para, lentamente, disfrutarmos do Tiergarten, um enorme parque, aqui e ali um bosque,  que marca o centro de Berlim. No centro do parque fica a Siegenssäule ou Coluna da Vitória. A coluna é encimada pelo anjo dourado que é personagem principal nos filmes deWim Wenders sobre Berlim. O anjo dourado é, atenção, um anjo guerreiro, pois celebra a tríade de vitórias que no século XIX criaram a Alemanha Prussiana, as vitórias sobre a Dinamarca, o Império Austro-Húngaro e sobre a França. 
NoTiergarten lanchamos numa casa de chá bastante simpática. Voltamos depois para a Alexanderplatz. Entramos e caminhamos um pouco pela Karl Markx Allée mas o tempo já escasseava, só conseguimos cheirar alguma da construção típica do  Leste, a maior parte reconstruída, um ou dosi blocos abandonados. Jantamos na esplanada dum NordSee (um fastfood de peixe que também havia em Viena).

Elogio e Morte da Revolução - uma explicação para todos.


"A HISTÓRIA INVENTADA DE UM AMOR PARA QUANDO COMEÇARMOS A NÃO QUERER SABER DOS DEUSES MAS DE COMO É QUE NASCEU HÉRCULES OU GERMINAL


O homem cortou a língua, cortou a língua com uma gilette. Há quase sessenta anos, cortou a língua ao voltar de Espanha. Na fronteira do Caia, é o que eu imagino, ao ver os pides a avançarem para ele, desconfiou, receou, mais vale cortar a língua, cortar a língua com uma gilette e não falar.
É o que eu imagino. O que me contaram foi só isso: o homem cortou a língua, era rapaz, vinte e poucos anos. Tinha ido para Espanha combater, operário, partira do Barreiro de manhã um dia, partira e andara por Espanha. E a História começou a ceder, as traições, sim, os traidores a traírem, as traições a somarem-se, a pouco e pouco já não havia ninguém ao seu lado, já nem sabia da rapariga do norte com quem andara uns meses, Pilar, operária de Santander, rapariga morena que bebia tanto, operária com quem andou e um dia não soube mais dela, era manhã, a derrota já vinha nos jornais. Foi nessa altura que decidiu voltar a pé, e os pides chegaram-se a ele na fronteira do Caia, é o que eu imagino, e o homem cortou a língua com a gilette romba que trazia no saco. 
 
Esse homem vivia no Barreiro ou no Montijo, operário. Operário sem língua, aos pontapés de uns desempregos e outras cadeias, uns folhetos na sacola, à noite umas reuniões, cada vez menos, não era comunista. Já quase não saíam os jornais de que gostava, de vez em quando alguém mencionava os homens que conhecera, por causa de um cancro, estavam doentes, uma trombose, ou lia no "República" os obituários. Lá iam morrendo o Pinto Quartín, o Alexandre Vieira, homens valentes que conhecera, com quem à noite às vezes reunira, sem falar, sem língua, a ouvir e a escrever uns papelinhos. Ao Emídio Santana ainda de vez em quando o via. E abraçavam-se, é o que eu imagino. Não que concordassem sempre, o homem sem língua era teimoso, queria tudo preto no branco. Mas uma vez o Emídio (se calhar foi outro...) levara-o ao Coliseu, era o Fidelio, e quando chegou o coro dos prisioneiros, aqueles homens a saírem das masmorras em farrapos, à luz azul dos projectores, e a voz desses homens a subir, a ouvir-se cada vez mais, a cantarem a luz do dia, a liberdade, os dois homens, velhos casmurros (não, não era o Emídio, era um mais velho, sapateiro da Praça da Alegria que tinha um sobrinho a que chamaram Vitor Hugo...), deram a mão e  o homem sem língua chorou.
 
Deram-lhe um disco, daqueles 45 rt, com coros de ópera, o Verdi de um lado e o Beethoven do outro. E o velho operário, cada vez mais velho, que vivia agora com a Ermelinda, viúva da Vidigueira que à noite lhe lia em voz alta o Zola, aquelas histórias da greve, da greve na mina, o homem sem língua e a Ermelinda ouviam de vez em quando em recolhimento (às vezes davam a mão) o coro dos prisioneiros daquela ópera, a única que vira. Ele vira, ela não, ficara em casa, que os bilhetes ainda assim eram caros.

Um dia, chegou uma carta. Nunca soube como lhe descobriram a morada, rua Cupertino de Miranda no Montijo. Mas já foi depois do 25 de Abril, uma carta de Santander, poucas palavras em espanhol, era da Pilar, a brigadista com quem ele andara uns meses há mais de trinta anos. Uma cirrose, agonizava num hospital, descobrira-o, nem ela nem ninguém lhe disse como. A Pilar. A Ermelinda leu a carta e chorou com ele. É que a Pilar contava que tinham tido um filho, que depois da derrota nascera um rapaz, rapaz que era um homem e já tinha três meninas, rapaz a que ela dera o nome de Germinal e a quem em Bilbao, no porto de Bilbao em que trabalhava, nesse porto, todos chamavam El Portugues.

E o operário e a Ermelinda arranjaram uns dinheiros e ele meteu-se num comboio para Bilbao. A Pilar morrera umas semanas antes, mas o Germinal, o estivador a quem no porto todos chamavam El Portugues, o Germinal estava na estação à espera dele. Tinham combinado: os dois teriam um lenço preto ao pescoço. E o Germinal tinha levado um cravo.

E o homem sem língua ouviu o filho falar-lhe da vida. Viera buscá-lo mas tinha pouco tempo nessa noite. Foram a pé para casa, não era longe. E o homem sem língua olhava o filho da Pilar: pequenito mas forte, moreno, os olhos vivos, o cabelo já a cair. Sabia umas palavras em português, cantou mesmo: "O povo é quem mais ordena", e o velho riu, encolhendo os ombros, numa careta de quem desconfia, há muitos anos desconfia. Mas não tinham muito tempo: o rapaz estava metido na greve dos trabalhadores do porto e estava de piquete nessa madrugada. Nem era ainda meia noite, noite ventosa de Bilbao, e o homem sem língua foi levar o filho, Germinal, El Portugues, até ao portão dos estaleiros. Ainda beberam uma cerveja - três... - num bar do outro lado da rua.

O filho apresentou-o aos outros homens. Há quase quatro semanas que estavam em greve, não iriam ceder. E falaram dos mineiros, os mineiros em Inglaterra que ainda haviam de dar cabo daquela Tatcher. Aí pelas duas da manhã, um dos grevistas, rapaz novo, nervoso, belo moço, acompanhou-o até à casa do filho. O velho estava a ficar cansado, a viagem de comboio e tudo. E à despedida o rapaz disse-lhe: "Tu hijo, hombre, tu hijo... no sé cómo decirtelo... Es como si fuéramos hermanos!"




Jorge Silva Melo, Prometeu-Rascunhos, ed. &etc. 1997.




quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Agora mesmo a vida lá fora.

Trabalhei de noite. Não muito, confesso. O suficiente porém para necessitar reparação adicional em casa. Saí à rua agora mesmo para fazer umas poucas compras, buracos na rede de cuidados que é ter umas coisas em casa para a sobrevida. Na rua havia música e as pessoas estranhamente falavam umas com as outras. Numa esplanada uma jovem rapariga baloiçava-se repetindo talvez uma situação havida para as amigas e desfazia-se numa gargalhada forte, grave, que assustava. Guardanapos, café, shampô; iogurtes, leite, pasta dentífrica. Demorei-me a estudar os snacks que agora fazem com fruta, "100% nacional", a empresa chama-se "Frutea" e a sede é aqui na Invicta. Sim, quero um saco, dou o contribuinte e pago em dinheiro. O shampô tinha ficado atrasado no tapete e fora englobado pelos pães do próximo cliente: "é o shampô, também...". O pão, pelo que ouvi era o único e mais nenhum servia. Quatro da tarde. "Amanhecer"...
Volto a subir no elevador e duas funcionárias de uma empresa - de limpeza? cuidadoras? - comigo sobem para o quatro; "e depois no caso de morte, ficam-lhe com tudo, casa, tudo!". "Boa tarde!" - desejámo-nos mutuamente, para no caso de morte não nos voltarmos a ver e ficarem-nos com tudo.

Na realidade as pessoas dividem-se em dois grupos, as que fazem noites e... 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mas é um edifício bonito e com vista para um rio - achegas para um programa de televisão.

Vi ontem 5 minutos de um Prós e Contras. O tema era o Cancro da Mama e se havia igualdade de cuidados para todas as doentes em Portugal. Cinco minutos chegaram.
 
O programa Prós e Contras no geral é um mau programa. Já vi outros... Os temas são mal apresentados, avaliados, discutidos. Mas não é sempre assim na televisão? Acresce que a apresentadora, Fátima Campos Ferreira, costuma ser PARCIAL. Como ontem me pareceu que estava a ser. A RTP devia fazer melhor. e no entanto creio que acha que este é um dos seus melhores programas!
 
Os cuidados aplicados ao Cancro da Mama são possivelmente desiguais no interior vs no litoral. Isto aplica-se porém não só ao Cancro da Mama mas também a uma plétora de patologias, incluindo muito possivelmente aquela a que eu hoje me dedico, o Acidente Vascular Cerebral. Este sim que seria um debate interessante e transversal e que afecta 15-20% da população portuguesa. E que reflecte como um País se projecta no futuro como um Todo.
 
Muito se falou de equipas pluridisciplinares. Que eu saiba, há mais de vinte anos que o grosso das doentes com Cancro da Mama são orientadas e tratadas por equipas pluridisciplinares. Ponto final, parágrafo. As excepções possivelmente reportam-se ao interior, mais uma vez - mas também sei que os Hospitais mais pequenos (do litoral ou do interior) que fazem Oncologia suprem este défice de quórum fazendo deslocar médicos seus às Unidades mais diferenciadas periodicamente para discutir os doentes. Desconheço se hoje existe telemedicina nisto envolvida. Assisti à presença de médicos exteriores ao IPO do Porto a apresentar doentes em Consulta de Grupo no IPO do Porto em 95. As linhas de tratamento, as chamadas guidelines, não são decididas nessas consultas pluridisciplinares, antes internacionalmente e são acessíveis na Internet. A sua aplicação implica porém saberes vários e é aqui que as várias cabeças se podem complementar e completar. Para além de que rever um doente pode sempre ser melhor do que apenas ver.
 
As acreditações são muito importantes mas não são tudo. A minha acreditação, a minha, é uma licenciatura, uma especialidade, uma graduação, e vinte e oito anos de prática clínica, dos quais quinze na área cerebrovascular. É velha como a Medicina a desigualdade de cuidados. Eu, médico, não sou igual a ele, médico - no que diz respeito a método, capacidades, qualidades. Repito que o pluridisciplinar, a funcionar há décadas, tenta também obviar a isto. Outra coisa é os meios à disposição. E aqui também o diálogo é sobretudo uma vez mais interior vs litoral.
 
Conheço bem duas Unidades de Mama, a do Hospital onde trabalho (o CHSJ) e a do IPO do Porto. Tenho absoluta confiança nas duas e nas duas já tive pessoas amigas e familiares sob tratamento. E muito bem. É de uma gravidade extrema num programa de uma televisão pública criar alarmismo social sobre especificamente o quanto bem se trata pelo país fora uma patologia específica. Os fins - que eu não quero perceber quais foram - não justificaram os meios. E o Cancro da Mama não é a Hepatite C.
 
Esclareço que conheço bem a Prof. Maria João Cardoso (mencionada no programa pelo que me foi dito) - minha colega de curso e uma óptima profissional, e cujo pai me deu aulas. E que julgo considerar-me amigo da Dra. Fátima Cardoso, também uma profissional excelente, que foi minha interna geral de primeiro ano, ou seja, começou a fazer clínica hospitalar comigo.
 
A discussão foi Champalimaud vs IPO Coimbra. Tenho gente amiga a fazer Oncologia em Trás-os-Montes. o  Dr. Miguel Barbosa, por ex. Gostaria de ter ouvido a opinião dele. Essa sim teria sido uma mais-valia fundamental. Não me pareceu que o Dr. Vitor Veloso fosse o defensor mais indicado para os trasmontanos.

Este programa não devia ter acontecido no Auditório da Fundação Champalimaud. MESMO. Porque não Guarda, Bragança... Beja?

domingo, 16 de outubro de 2016

Porque gostamos de Miró e outras coisas.

A exposição de Miró na Casa de Serralves está a ser um sucesso. São dezasseis euros, dezasseis, pois a entrada oferece/obriga também a visita ao Parque de Serralves. Há descontos para bastante gente - a malta do BPI, eu... - mas mesmo assim pelo que me apercebi a maior parte da malta que vai é pagante, e uma percentagem alta paga em euros não portugueses, moeda mais valiosa como sabemos. 

E Miró? Surrealistas espanhóis - catalães, para sermos mais precisos - foram dois, Dali e Miró. Dali criou um personagem e uma linguagem pictórica muitos elaborados, Miró aparentemente todo o contrário. Mas estes dois pintores conseguiram uma adesão do público menos entendido que não conseguiram por exemplo surrealistas franceses como Ernst ou Masson. Talvez porque não se ativeram tanto ao cânone e dedicaram-se mais a construir uma narrativa pessoal.

A pintura de Miró é a procura de uma nova simplicidade. E nunca é triste. Querem obrigar-nos a sermos tristes. Miró, que na vida real era uma pessoa discreta, não concorda. Talvez por isso a intelligentsia o tenha abandonado um pouco. Mas atenção, é tudo menos um pintor "decorativo".

PS.: numa terça à tarde - e porque o espaço dentro da Casa de Serralves é limitado - mesmo assim havia... pessoas a mais.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Os rostos femininos da Gemäldegalerie - Berlim.

Guess who wrote this? (thank you Señor Blas...).

"Early one mornin’ the sun was shinin’
I was layin’ in bed
Wond’rin’ if she’d changed at all
If her hair was still red
Her folks they said our lives together
Sure was gonna be rough
They never did like Mama’s homemade dress
Papa’s bankbook wasn’t big enough
And I was standin’ on the side of the road
Rain fallin’ on my shoes
Heading out for the East Coast
Lord knows I’ve paid some dues gettin’ through
Tangled up in blue

She was married when we first met
Soon to be divorced
I helped her out of a jam, I guess
But I used a little too much force
We drove that car as far as we could
Abandoned it out West
Split up on a dark sad night
Both agreeing it was best
She turned around to look at me
As I was walkin’ away
I heard her say over my shoulder
“We’ll meet again someday on the avenue”
Tangled up in blue

I had a job in the great north woods
Working as a cook for a spell
But I never did like it all that much
And one day the ax just fell
So I drifted down to New Orleans
Where I happened to be employed
Workin’ for a while on a fishin’ boat
Right outside of Delacroix
But all the while I was alone
The past was close behind
I seen a lot of women
But she never escaped my mind, and I just grew
Tangled up in blue

She was workin’ in a topless place
And I stopped in for a beer
I just kept lookin’ at the side of her face
In the spotlight so clear
And later on as the crowd thinned out
I’s just about to do the same
She was standing there in back of my chair
Said to me, “Don’t I know your name?”
I muttered somethin’ underneath my breath
She studied the lines on my face
I must admit I felt a little uneasy
When she bent down to tie the laces of my shoe
Tangled up in blue

She lit a burner on the stove
And offered me a pipe
“I thought you’d never say hello,” she said
“You look like the silent type”
Then she opened up a book of poems
And handed it to me
Written by an Italian poet
From the thirteenth century
And every one of them words rang true
And glowed like burnin’ coal
Pourin’ off of every page
Like it was written in my soul from me to you
Tangled up in blue

I lived with them on Montague Street
In a basement down the stairs
There was music in the cafés at night
And revolution in the air
Then he started into dealing with slaves
And something inside of him died
She had to sell everything she owned
And froze up inside
And when finally the bottom fell out
I became withdrawn
The only thing I knew how to do
Was to keep on keepin’ on like a bird that flew
Tangled up in blue

So now I’m goin’ back again
I got to get to her somehow
All the people we used to know
They’re an illusion to me now
Some are mathematicians
Some are carpenters’ wives
Don’t know how it all got started
I don’t know what they’re doin’ with their lives
But me, I’m still on the road
Headin’ for another joint
We always did feel the same
We just saw it from a different point of view
Tangled up in blue"

Berlim dia três.

A minha opinião sobre o Memorial do Muro de Berlim é igual aquela sobre o Memorial do Holocausto: não chega. Mas chegaria de alguma forma?

O nosso hotel ficava na Bernauer Strasse, rua retalhada ao comprido pelo Muro de Berlim a partir de 1961, rua onde aconteceram das histórias mais desesperadas e lancinantes sobre fugas, separações de famílias, e algumas dezenas de mortos. No chão da rua, dezenas placas redondas de bronze assinalam aqui e ali os sítios: "Fugiu um casal"; "Fugiu um homem; mulher não conseguiu."; "Sr. Herschel atirou-se de uma janela, sobreviveu embora gravemente ferido.". Se não tiveres curiosidade pisas estas pequenas planas "redomas" cheias de história. 

O Memorial recria num amplo rectângulo "como era". No caminho até lá a linha do Muro é desenhada por barras de ferro enferrujado ao alto, como farpas caídas do céu ou espigões que brotaram do chão. Há também algum verde e uma igreja em madeira no lugar onde antes uma igreja havia e que o Muro trespassou e depois destruiu. Num coberto resta o grande sino. O Memorial tem um museu que se organiza em vários andares a partir de um varandim de onde se domina o tal rectângulo que recria. Vi sobretudo adolescentes a visitar o Memorial do Muro, adolescentes alemães, o que é bom. Algo barulhentos, é certo, mas a adolescência e o silêncio nunca se deram bem.

Depois fomos à procura do Hackesche Höfe, uma zona comercial muito interessante que consiste numa série de pátios entrelaçados e que já foi uma zona alternativa de Berlim, hoje mais domesticada. Muito do filme "Faraway, So Close" de Wim Wenders acontece em Hackesche Höfe. Por ali perdido um museu dedicado a Anne Frank, onde não entrámos.

Logo  no seguir da rua a Neue Sinagoge de Berlin, ou o que resta dela. Um edifício do século XIX construido em estilo neo-mourisco (bons tempos...) e com parte de estrutura com uma base em ferro, é muito bonita.  Funciona hoje sobretudo como museu - tinha interessantes exposições dentro - mas também como sinagoga da minúscula comunidade judaica berlinense. Os níveis de segurança à entrada são altos. 

Comemos por ali. Uma vez mais as vespas de Berlim chatearam um pouco. Procurámos depois via metro o Viktoria Park. É este um espaço verde de dimensão média localizado numa encosta e que possui uma cascata muito engraçada dentro da qual literalmente brincavam várias famílias berlinesas. Lanchámos num boteco de rua do bairro de Kreuzberg. Bebi uma cola local que - porque tinha tanta cafeína como um Red Bull - depois não me deixou dormir. Daí a popularidade?

Decorria o Festival de Dança de Berlin - a Cata tinha tido uma masterclass no Porto com uma tal de Meg Stuart, americana a viver em Berlim. Havia uma espectáculo seu por ali a acontecer, numa sala chamada HAU2. O problema foi descobrir a sala. Comemos grego, vimo-nos gregos para conseguir as entradas, mas por fim lá aconteceu. Eu, para conseguir entrar, tive que me sentar nas escadas laterais. O espectáculo? chamava-se "Blessed". Muito bom. Dançado quase todo "à chuva", fantástico. 

Afrontámos depois a noite do Metro de Berlim - sem espiga.