quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Elogio e Morte da Revolução - uma explicação para todos.


"A HISTÓRIA INVENTADA DE UM AMOR PARA QUANDO COMEÇARMOS A NÃO QUERER SABER DOS DEUSES MAS DE COMO É QUE NASCEU HÉRCULES OU GERMINAL


O homem cortou a língua, cortou a língua com uma gilette. Há quase sessenta anos, cortou a língua ao voltar de Espanha. Na fronteira do Caia, é o que eu imagino, ao ver os pides a avançarem para ele, desconfiou, receou, mais vale cortar a língua, cortar a língua com uma gilette e não falar.
É o que eu imagino. O que me contaram foi só isso: o homem cortou a língua, era rapaz, vinte e poucos anos. Tinha ido para Espanha combater, operário, partira do Barreiro de manhã um dia, partira e andara por Espanha. E a História começou a ceder, as traições, sim, os traidores a traírem, as traições a somarem-se, a pouco e pouco já não havia ninguém ao seu lado, já nem sabia da rapariga do norte com quem andara uns meses, Pilar, operária de Santander, rapariga morena que bebia tanto, operária com quem andou e um dia não soube mais dela, era manhã, a derrota já vinha nos jornais. Foi nessa altura que decidiu voltar a pé, e os pides chegaram-se a ele na fronteira do Caia, é o que eu imagino, e o homem cortou a língua com a gilette romba que trazia no saco. 
 
Esse homem vivia no Barreiro ou no Montijo, operário. Operário sem língua, aos pontapés de uns desempregos e outras cadeias, uns folhetos na sacola, à noite umas reuniões, cada vez menos, não era comunista. Já quase não saíam os jornais de que gostava, de vez em quando alguém mencionava os homens que conhecera, por causa de um cancro, estavam doentes, uma trombose, ou lia no "República" os obituários. Lá iam morrendo o Pinto Quartín, o Alexandre Vieira, homens valentes que conhecera, com quem à noite às vezes reunira, sem falar, sem língua, a ouvir e a escrever uns papelinhos. Ao Emídio Santana ainda de vez em quando o via. E abraçavam-se, é o que eu imagino. Não que concordassem sempre, o homem sem língua era teimoso, queria tudo preto no branco. Mas uma vez o Emídio (se calhar foi outro...) levara-o ao Coliseu, era o Fidelio, e quando chegou o coro dos prisioneiros, aqueles homens a saírem das masmorras em farrapos, à luz azul dos projectores, e a voz desses homens a subir, a ouvir-se cada vez mais, a cantarem a luz do dia, a liberdade, os dois homens, velhos casmurros (não, não era o Emídio, era um mais velho, sapateiro da Praça da Alegria que tinha um sobrinho a que chamaram Vitor Hugo...), deram a mão e  o homem sem língua chorou.
 
Deram-lhe um disco, daqueles 45 rt, com coros de ópera, o Verdi de um lado e o Beethoven do outro. E o velho operário, cada vez mais velho, que vivia agora com a Ermelinda, viúva da Vidigueira que à noite lhe lia em voz alta o Zola, aquelas histórias da greve, da greve na mina, o homem sem língua e a Ermelinda ouviam de vez em quando em recolhimento (às vezes davam a mão) o coro dos prisioneiros daquela ópera, a única que vira. Ele vira, ela não, ficara em casa, que os bilhetes ainda assim eram caros.

Um dia, chegou uma carta. Nunca soube como lhe descobriram a morada, rua Cupertino de Miranda no Montijo. Mas já foi depois do 25 de Abril, uma carta de Santander, poucas palavras em espanhol, era da Pilar, a brigadista com quem ele andara uns meses há mais de trinta anos. Uma cirrose, agonizava num hospital, descobrira-o, nem ela nem ninguém lhe disse como. A Pilar. A Ermelinda leu a carta e chorou com ele. É que a Pilar contava que tinham tido um filho, que depois da derrota nascera um rapaz, rapaz que era um homem e já tinha três meninas, rapaz a que ela dera o nome de Germinal e a quem em Bilbao, no porto de Bilbao em que trabalhava, nesse porto, todos chamavam El Portugues.

E o operário e a Ermelinda arranjaram uns dinheiros e ele meteu-se num comboio para Bilbao. A Pilar morrera umas semanas antes, mas o Germinal, o estivador a quem no porto todos chamavam El Portugues, o Germinal estava na estação à espera dele. Tinham combinado: os dois teriam um lenço preto ao pescoço. E o Germinal tinha levado um cravo.

E o homem sem língua ouviu o filho falar-lhe da vida. Viera buscá-lo mas tinha pouco tempo nessa noite. Foram a pé para casa, não era longe. E o homem sem língua olhava o filho da Pilar: pequenito mas forte, moreno, os olhos vivos, o cabelo já a cair. Sabia umas palavras em português, cantou mesmo: "O povo é quem mais ordena", e o velho riu, encolhendo os ombros, numa careta de quem desconfia, há muitos anos desconfia. Mas não tinham muito tempo: o rapaz estava metido na greve dos trabalhadores do porto e estava de piquete nessa madrugada. Nem era ainda meia noite, noite ventosa de Bilbao, e o homem sem língua foi levar o filho, Germinal, El Portugues, até ao portão dos estaleiros. Ainda beberam uma cerveja - três... - num bar do outro lado da rua.

O filho apresentou-o aos outros homens. Há quase quatro semanas que estavam em greve, não iriam ceder. E falaram dos mineiros, os mineiros em Inglaterra que ainda haviam de dar cabo daquela Tatcher. Aí pelas duas da manhã, um dos grevistas, rapaz novo, nervoso, belo moço, acompanhou-o até à casa do filho. O velho estava a ficar cansado, a viagem de comboio e tudo. E à despedida o rapaz disse-lhe: "Tu hijo, hombre, tu hijo... no sé cómo decirtelo... Es como si fuéramos hermanos!"




Jorge Silva Melo, Prometeu-Rascunhos, ed. &etc. 1997.




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