domingo, 17 de outubro de 2021

Da Medicina que vai acontecer - 4.

O fecho pelo menos parcial dos Centros de Saúde entupiu as Urgências. A pandemia libertou parcialmente as Urgências. Agora que a pandemia retrocedeu, o refluxo, sem o backup dos Centros de Saúde, de doentes na Urgências está a ser complicado. E vem aí a gripe, desaparecida em 2020 porque andávamos todos de máscara em 2020. Há décadas que se fala em diminuir a procura dos Serviços de Urgência. Embora os Hospitais recebam por cada Urgência que acontece. Diminuir a procura das Urgências implicaria uma revolução nos Cuidados Primários e uma campanha alargada de educação das populações. Isto sim, seria mudar alguma coisa! E pur...

A Urgência. Não há melhor escola. Não há pior escola. É a porta para todas as situações desesperadas. E também para as outras. A minha especialidade é Medicina Interna. O Internista é o gajo que diagnostica. Há velocidades de diagnóstico. Na consulta, em enfermaria, em camas de intermédios, de intensivos. Na urgência o doente pode aparecer com qualquer uma destas velocidades. É este o desafio. 

Talvez desta vez o empurrão para a criação da Medicina de Urgência seja definitivo. Nestes tempos ninguém está gostar de fazer Urgência. Nada melhor do que estes tempos para criar algo para fazer o que ninguém quer fazer. Mas, nestes dias difíceis, quem faz Urgência? A Urgência é feita, com muito sacrifício, por quem sempre a fez. Na maior parte dos Hospitais o grosso da Urgência é garantido pela Medicina Interna, com uma carga especial a recair sobre os Internos, os mais novos, e uma plétora de tarefeiros, de médicos que, individualmente ou através de empresas de recrutamento, preencher os turnos em falta. O governo tem tido estas necessidades em atenção. Desde há uns anos a esta parte as vagas para as Especialidades têm sido inferiores ao número de médicos produzidos, fazendo-se assim ano a ano mais uns quantos médicos indiferenciados, prontos para o Serviço Urgência mais perto de si. 

Adivinho aqui um paradoxo. Ao criar-se a especialidade de Medicina de Urgência, o que fazer com estes médicos indiferenciados que temos criado nos últimos anos? E criado o core de competências do que será um Urgencista, o Urgencista não vai querer observar os milhares de doente não-urgentes que todos os dias vão à Urgência. Aí vai pedir-se a tal revolução nos Cuidados Primários que, se bem sucedida, vai colocar uma especialidade criada de novo a servir em Urgências a receber apenas metade dos doentes que hoje recebem. A razão primária para criar a Especialidade de Medicina Urgência desapareceu. E pur...

sábado, 16 de outubro de 2021

Da Medicina que vai acontecer - 3.

Tenho sorte. Tomei café com um bom amigo esta quinta-feira. Ele falou-me de uma conhecida em comum, médica, que cuidou bem do seu pai, fazendo-lhe o elogio adicional: "mas ela não era assim só com o meu pai, era assim com toda a gente!". Este elogio não é frequente. Ser bom médico com o "doente recomendado" fica bem, ser bom médico com todos é o indicado pela profissão abraçada. Conheço a minha médica de família desde muito nova, de recém-saída da faculdade. Cuida muito bem de mim. Sei que cuidará muito bem de toda a sua lista de utentes. E presencialmente se necessário.

Os Cuidados Primários vivem hoje em Portugal uma crise única e que não está em vias de solução.  Muito do que vou escrever escrevo-o assumindo que se me enganar serei corrigido. 

O grosso do seguimento dos doentes Covid está entregue aos médicos dos Centros de Saúde. A plataforma Trace-Covid obrigará ao contacto diário com os doente Covid bem como com os contactos em isolamento. Hoje há pouco mais de 30000 casos activos, que se adicionarmos os doentes em isolamento, para os aprox 600 Centros de Saúde, implicará aprox. 100 chamadas telefónicas por Centro de Saúde por dia. Nos tempos áureos de Janeiro terão sido 400 ou mais chamadas por dia. Isto e os medos de contágio, os distanciamentos, etc., literalmente fecharam grande parte dos Centros de Saúde aos seus utentes habituais. O contacto com estes passou a fazer-se preferencialmente pelos telemóveis ou pelos mails dos sobrinhos, filhos, netos dos utentes. Já perdi a conta aos meus doentes que me dizem - e não tenho razão para não acreditar - que já não vêem o seu Médico de Família há ano e meio. Sim que estes serviços parecem funcionar as mais das vezes bem e rapidamente, mas o contacto presencial, aquilo para que seis anos de curso e outros de formação pos-graduada andaram a preparar os profissionais, afinal perdeu-se algures no meio da bruma de uma pandemia, pelo menos em grande parte dos Centros de Saúde que conheço.

Os Centros de Saúde não são todos iguais. Existem modos de organização e de articulação com os cuidados hospitalares diferentes e também formas de remuneração diferentes. Isto é confuso. O número de utentes por médico de família subiu se não me engano há uns dez anos, no tempo da troika. Se afinal podemos controlar muitos destes utentes via mail ou telefonema não percebo como nos poderemos opor a uma subida adicional da lista de utentes por  médico de Centro de Saúde, ainda mais quando a tutela - nomeadamente o Ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor - tem tão alta opinião sobre o que é preciso para se trabalhar num Centro de Saúde, Médico especialista de Medicina Geral e Familiar ou outra coisa qualquer... ou seja a disseminação do modelo USF tipo B com maiores vencimentos afinal pode-se atrasar, é só fornecer um telemóvel extra e alargar a banda da net e está a coisa resolvida.

 

Da Medicina que vai acontecer - 2.

Os cursos de Medicina são, desde tempos hoje já imemoriais, dos cursos mais difíceis para entrar. Por vergonha não vou dizer com que média entrei em Medicina em 1982. A nota mínima de entrada para FMUP nesse ano foi de dezasseis. Hoje entra-se em Medicina só com médias acima de dezanove. Em 1982 o aluno (uma aluna) com média de entrada mais elevada do país teve dezanove. Recebeu um prémio por isso. Hoje não entrava em Medicina.

O meu curso tinha pouco mais de cem alunos. Foi engrossando um pouco com o passar dos anos, saímos em 1988 praí uns cento e cinquenta. Os cursos agora são muito maiores. O país produz centenas e centenas de Mestres em Medicina (Licenciados era antes de Bolonha) todos os anos. Já vai uns anos que não dou aulas na FMUP. Quando dava ficava espantado com a dimensão das turmas das aulas práticas, que assim de aulas práticas tinham pouco ou nada. Acham que a questão de não abrir mais vagas é mania. Eu digo que é bom senso no que às dimensões das faculdades diz respeito. Agora mais ainda porque com o Covid o acesso aos doentes está muito curto. Voltando aos números, em 33 anos (licenciei-me em 88), inscreveram-se na Ordem mais de 40000 médicos. Eu sou o 32452, estão a increver-se neste ano os 73000 e tal.

Alunos que entram num curso com médias acima de dezanove só podem ser seres excepcionais. Só podem. Sei que alguns deles não pensam assim. Outros pensam. O erro é humano. Uma das razões para se escolher o Curso de Medicina, para além de uma putativa vocação, é a empregabilidade. Mas não uma empregabilidade qualquer. 

Uma das aprendizagens que acontece assaz precocemente é a das especialidades a procurar e aquelas que é para evitar. Uma das que uma parte importante dos alunos de Medicina aprende a evitar é Medicina Geral e Familiar. Alguns deles não vão conseguir entrar para especialidade nenhuma e isto é uma coisa nova, uma invenção recente.   

Outra coisa que se aprende rapidamente é a pensar que Hospital para lugar de futuro. E a periferia é um lugar a evitar. Definir periferia? Para além de Bragança, Guarda, Beja, pode ser também Setúbal, Santo Tirso, Penafiel. A periferia está ao virar da esquina. A especialidade é feita num lugar onde o médico vai muito provavelmente ficar. Uma especialidade termina-se aos trinta anos ou depois. as contratações extra que aconteceram com o Covid contrariaram um pouco este impulso endogâmico mas não, cada Hospital tenta sempre acabar por contratar no fim da especialidade "os seus". Quem não? Note-se que nem discuti a periferia extra que é o Algarve.

Mas quando se acaba uma especialidade há um outro caminho que agora está criado, e isto assumindo que o caminho tomado já não foi o internato na privada - que os há. O novo caminho, já adivinharam, é a Medicina Privada. E onde se localiza a Medicina Privada? Sobretudo no litoral também, embora a mancha se esteja a estender.

Hoje Portugal tem já dois Serviços de Saúde, o SNS (Serviço Nacional de Saúde) e o SVPS (Serviços Variados Privados de Saúde), cuja distribuição geográfica é mais ou menos similar. E é preciso médicos a preço cada vez mais baixo, digo "competitivo", para bem preencher estes dois S's. O governo compreendeu, o governo está a tentar.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Da Medicina que vai acontecer.

Lembro-me do tempo em que havia médicos a mais em Espanha. Estou a falar de há mais de vinte anos. Conheci numa caminhada perto da Coruña uma médica espanhola bem simpática, tinha uma filha da mesma idade da minha. Tinha apenas a licenciatura, não conseguira diferenciação adicional. Trabalhava apenas em contratos curtos a fazer substituições no sul de Espanha. E levava assim a vida. Conhece-se bem quando falamos com um médico. Há um jargão, uns termos que cortam caminho que identificam a classe. Ela não falava como médica, nâo pensava como médica, presa a uma vida estúpida de contrato em contrato, uma criança para sustentar. Conversei sobre a hipótese dela vir trabalhar para Portugal, há mais de vinte anos havia muitos médicos espanhóis a trabalhar cá, a fazer internatos, a suprir inúmeras faltas. Adivinhei que ela se ia adaptar mal. Julgo que nunca deu o salto. 

"Sonhei" vai para uns dias que em 2030-2035, "numa rotunda perto de si", umas dezenas de médicos sem emprego e acolhidos a tendas e roulottes vão estar à espera de que um encarregado chegue e chame: "Hoje preciso de quatro, repito, quatro, mais não, daqueles que cortam e cosem, outros não, quatro, só quero quatro, tu e tu, mais dois, agora tu, mais um, parem senão vou-me embora, outro!" E os médicos desempregados, dezenas deles, a saírem aos saltos das tendas e das roulottes a gritar: "eu corto, eu corto, eu coso, eu coso!" Como diria uma publicidade conhecida, vai acontecer.

Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais médicos por 100000 habitantes, 497 vs uma média de 360 (Pordata 2019).

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Farah.



A província de Farah alberga pouco mais de meio milhão de habitantes em 48000 km2 e fica no oeste do Afeganistão, a sul de Herat. Tem uma longa e desértica fronteira com o Irão mas sem qualquer fronteira de passagem reconhecida. A população é predominantemente pashtun mas também uma influente minoria tajik. É a 2ª província com menor densidade populacional e mais de 10% dos habitantes são ainda nómadas. A capital é a cidade de Farah, que fica na preciosa margem do rio Farah. É uma província muito isolada, com ligações difíceis com o resto do país. A província de Farah cortou as suas ligações com a Pérsia e passou a integrar o nascente reino do Afeganistão no século XVIII. Os seus destinos sempre estiveram muito ligados ao destino da importante cidade a norte, Herat, mas o coração dos Pashtuns olha para sudeste, para Kandahar.

Eis seis coisas sobre a província de Farah:


1 - As referências nas redes sociais à província de Farah giram predominantemente à volta da guerra: mortos, feridos, raptos, bombas, destruições. "Emboscada talibã mata 22 militares afegãos levando veículos e armas.". "Oito mortos e quarenta feridos no rebentar de uma bomba ao passar de um autocarro. Culpa atribuida aos talibã." "Os talibã atacam uma esquadra de polícia matando 3 e ferindo 6". E porquê? A província de Farah (como outras) nunca foi completamente expurgada da presença talibã. A maioria dos seus habitantes são Pashtuns. Milhares de talibãs em 2001 "desapareceram" simplesmente voltando a casa, à espera de ordens ou de perceber como seguiam as modas. Poucos anos depois de 2001 voltaram ao combate. Muitas aldeias desta província nunca deixaram de ser na realidade terra talibã.


2 - Farah é uma cidade de tamanho médio, para aí 50000 habitantes, mais, e que fica estrategicamente a meio caminho entre Herat e Kandahar. É uma cidade antiga, com origem milenar, talvez refundada por Alexandre, talvez bem anterior. Atesta esta antiguidade a sua cidadela, com um km de diâmetro, ao lado e acima da cidade moderna. Nesta velha cidadela pastam cabras, vive gente, guardam-se armas, consome-se droga, fazem-se piqueniques. 


3 - Numa aldeia desta província aconteceu um dos ataques a civis por forças americanas mais noticiado, na aldeia de Granai, em 2009. O texto que aparece na Wikipedia reza assim: "The Afghan government has said that around 140 civilians were killed, of whom 22 were adult males and 93 were children.[3][4] Afghanistan's top rights body has said 97 civilians were killed, most of them children.[3] Other estimates range from 86 to 147 civilians killed.[7][10] An earlier probe by the US military had said that 20–30 civilians were killed along with 60–65 insurgents.[3] A partially released American inquiry stated "no one will ever be able conclusively to determine the number of civilian casualties that occurred"". Julian Assange disse que tinha o vídeo do ataque a Granai. Depois disse que o tinha perdido.


4 - Os Kochi ou Kuchi são os Pashtuns que ficaram nómadas, como seriam quase todos os Pashtuns há centenas de anos. São nesta província 10 a 15% da população. Ninguém gosta deles pois numa terra castigada pela seca, o chegar dos animais dos Kochis é um peso extra para o pouco que as terras aguentam. No parlamento afegão foi-lhes atrinuída uma quota de deputados, como se constituissem a 35ª província. Mas claro que não têm qualquer representação no poder provincial, visto não pertencerem a nenhuma província. Embora Pashtuns e seguindo o pesado código de honra tradicional, as mulheres e as crianças distinguem-se pelas roupas coloridas e com brilhos, reflectindo o castigo do sol à medida que prosseguem pelo caminho fora com as suas cabras, ovelhas, camelos. Os mais desgraçados dos mais desgraçados deixam um rasto de cor por onde passam.


5 - Esta província é uma terra que durante mais de m milénio viu o seu fado ligado às terras a oeste, as terras persas. Foi contruído um "porto seco", um terminal de camiões, no meio do deserto, o Sheik Abu Hasr e Farahi Dry Port, muito perto da fronteira. Com frequência era notícia por duas razões, pelos preços exorbitantes que os camionistas tinham que pagar aos polícias afegãos para desalfandegar a sua mercadoria, pelas vezes que os talibã incendiavam o terminal. Incendiaram-no pela última vez em Março de 2021. Conquistaram-no 4 meses depois. 

6 - Farah é também a província ocidental que mais ópio produz. As fronteiras são sempre terras de perigo..

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Daykundi.

 


A província de Daykundi é de invenção recente e tem pouco mais do que meio milhão de habitantes predominantemente Hazaras. Está a sul de Bamyan mas não terá nem a beleza (que se conheça ou seja mencionada) nem o protagonismo dessa província. A capital é Nili, uma pequena cidade de 20000 habitantes a aprox 2000m de altitude. Estamos no coração do Hazarajat e no "fim" ocidental do Hindu Kush. A sua criação pode ter a ver com fricções étnicas com os Pashtuns que vivem logo a sul. Um único distrito da província tem um predomínio Pashtun, Gizab, e saiu da provínica em 2006 e foi reincorporado em 2009. Lá está. Estas terras estão muito isoladas do resto do Afeganistão. É uma sociedade muito tribal. Produzem as melhores amêndoas do país.

Eis seis coisas sobre Daykundi:



1 - Há poucas semanas, segundo a Amnistia Internacional, os talibã mataram 13 pessoas de etnia Hazara na província de Daykundi. O príncipio de uma coisa velha? O fim de algo novo? 


2 - Daykundi é o nome de uma das tribos principais Hazara.


3 - Num estudo das Nações Unidas sobre a literacia em Daykundi é interessante comparar gerações: 20% dos homens com 60+ anos sabem ler e escrever vs 1% das mulheres; nos 10-14 anos 71% dos rapazes lêem e escrevem vs 64% das raparigas.


4 - Nili teve em 2008 a primeira mulher presidente da câmara, Azra Jafari, nomeada por Hamid Karzai. É de etnia Hazara, nascida na província de Ghor, viveu muitos anos refugiada no Irão mas voltou para o Afeganistão em 2001 e participou na criação da nova Constituição. Foi Presidente da Câmara de Nili 6 anos. Convenceu os homens de Nili, tanto que lhe chamavam de "Senhor Presidente" pela força de carácter, que só poderia ser masculina. Escreveu sobre a situação laboral da mulher no Afeganistão. Hoje vive refugiada nos Estados Unidos.


5 - A UNICEF patrocinou em dez províncias mais "complicadas", uma delas Daykundi, dezenas de Centros de Aprendizagem Acelerada para que mulheres e raparigas ganhassem a literacia e o estudo que não tinha adquirido a tempo. Em 2016 a UNICEF punha online uma reportagem sobre uma professora, Golsom Soljaee que, pendurada da motocicleta do marido, percorria as montanhas de Daykundi para dar aulas. 


6 - Na wikipedia aparecem várias personalidades como originárias da provínicia de Daykundi, eg Zahra Mahmoodi, a primeira capitã da equipa de futebol feminino do Afeganistão, ou Sahraa Karimi, a primeira mulher cineasta a ser presidente da Afghan Film. No entanto ambas nasceram perto de Teherão, em campos de refugiados Hazaras, voltaram para o país de origem depois de 2001 e depois acabaram por ter outra vez que fugir, Zahraa Mahmoodi para o Canadá depois de ameaças dos talibã, em 2013, Sahraa Karimi em Agosto passado via para Kiev para a Eslováquia, onde tinha aprendido cinema e cuja nacionalidade também tem.

domingo, 3 de outubro de 2021

Bamyan.



Os ocidentais souberam da existência de Bamyan quando os talibã fizeram explodir os dois famosos budas erectos, esculpidos na rocha que domina o vale da cidade de Bamyan, a capital da província. Mas a província de Bamyan era e ainda é - e infelizmente continuará a ser - o paraíso turístico escondido do Afeganistão. A província tem meio milhão de habitantes a viver em 18029 km2 que se localizam na espinha dorsal montanhosa do Afeganistão, entre a corcova do Hindu Kush e um seu braço a norte, o Koh-i-Baba. A maioria da povoação é Hazara, Bamyan com mais de 100000 habitantes a capital cultural deste povo, sendo que os Hazaras sempre estiveram um pouco em contra-mão com o resto do Afeganistão, fosse na religião, fosse na relação com o governo vigente, etc. Para os Hazaras ser perseguido foi historicamente uma rotina que ainda se mantém. 

Eis treze coisas sobre a província de Bamyan:





1 - Podemos começar por falar dos famosos budas. Construídos nos séc. VI-VII, simbolizam a importância da presença budista no vale de Bamyan, o Budismo a seguir o seu caminho a partir da Índia em direcção a terrenos mais a norte. A sua arte é Greco-Budista ou Gandhara, o fantástico resultado do encontro entre as artes Grega, chegada tão longe e a Indiana, vertente Budista. O vale de Bamyan foi centro de peregrinação e, ao ser isso, um nó de intersecção na Rota da Seda, mesmo ficando o vale de Bamyan a 2500m de altitude, entre Kabul e Balkh. Mesmo depois da conquista islâmica os budas continuaram a ser figuras populares e localmente veneradas. Eram os budas de pé mais altos do mundo, 55 e 38m de altura, virados os dois a sul, as suas figuras dominando o lindíssimo vale. Logo que Bamyan foi conquistada pelos talibã, em 1998, logo se percebeu que os budas estavam em perigo. O Mullah Omar decidiu finalmente a sua destruição em 2001, oficialmente por discordar das "ofertas milionárias que o ocidente fazia para reconstruir e preservar os budas, enquanto se recusava a ajudar as crianças afegãs." A destruição não foi fácil, e ter-se-á pedido ajuda a peritos da Al Qaeda em explosivos.


2 - O vale de Bamyan foi sempre o destino turístico preferido do país Afeganistão, em parte pela relativa proximidade da capital, mas não só. O número de visitantes estrangeiros nunca foi muito elevado primeiro por desconhecimento, depois pela instabilidade do país. Os naturais  do país, habituados à dita cuja, mas sabendo que, nos 20 anos da presença americana, Bamyan era das províncias mais seguras, viajavam até aqui quer no verão quer inclusivé no inverno, praticando até alguns desportos de inverno!




3 - Um dos destinos mais procurados pelos turistas é o primeiro Parque Nacional do país, o Parque Nacional de Band-e-Amir. O postal fantástico deste parque, também muito rico ao nível da flora e da fauna, são seis lagos localizados a 2900m de altitude, separados por diques naturais de depósito mineral de carbonato de cálcio, um fenómeno único. Estes lagos  são conhecidos como o "Grand Canyon do Afeganistão", embora não tenham nada a ver, e são a origem do rio Balkh, o rio que fertiliza as terras de Balkh e Mazar i Sharif. Na margem dos lagos há restaurantes e gaivotas para as pessoas passearem na água azul cristalina. Não serão estas gaivotas também imagens para destruir pelos talibã? Sobreviverão? 


4 - Como comprovativo da paz vigente em Bamyan, a partir de 2015 disputou-se no vale da capital da província a "Maratona do Afeganistão", um evento desportivo aberto a homens e mulheres, afegãos e estrangeiros!


5 - Há restaurantes com o nome Bamyan na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, na Europa. Desconheço se a população de Bamyan teve uma diáspora particularmente extensa e gastronómica, ou a razão está na infeliz popularidade que este nome hoje tem.  Por equívoco há também um restaurante japonês com o nome Bamyan e que fica em Fernandópolis, São Paulo, Brasil.

6 - Os Hazaras são um povo aparentado com os uzbeques e os mongóis, portanto com uma aparência algo diferente do resto dos afegãos. Constituirão 1/10 da população do país e encontram-se sobretudo no centro montanhoso. Bamyan é a sua capital cultural. Os Hazaras tornaram-se xiitas nos séc XVI-XVII. Os problemas dos Hazaras começaram ou agravaram-se quando, na sequência da 2ª Guerra Anglo-Afegã, o rei Abdur Rhaman Khan quis tornar efectivo o seu domínio sobre largas partes do Afeganistão. As províncias de predomíno Hazara, conhecidas como o Hazarajat, revoltaram-se em três vagas, 1888-90, 1892 e 1893. O Rei transformou estas revoltas em guerras religiosas, aproveitando o preconceito contra o facto dos Hazaras serem xiitas. No fim destas três revoltas os Hazaras tinham perdido um parte muito importante da sua população, morta, escravizada, deslocada. Muitas terras dos Hazaras foram tomadas pelos Pashtun. O harém do rei ficou enriquecido com mulheres Hazara. Este é um genocídio de que não se fala. No século XX os Hazara foram, como outras minorias, estrategicamente protegidos pelo governo comunista. Isto provocou mais massacres por parte dos talibã. Os Hazaras fizeram parte da Aliança do Norte que derrotou os Talibã com as ajuda dos USA em 2001. O derrube dos Budas de Bamyan, imagens populares no folclore Hazara, foi uma humilhação mais. Nestes últimos 20 anos o Hazarajat de vez em quando foi sacudido por ataques suicidas do ISIS, visando civis Hazaras. Agora, em 2021, tudo voltou ao (mau) princípio. A cultura Hazara é no geral menos conservadora que a Pashtun e permite maior liberdade e expressão às mulheres. Na primeira metade do séc XX alguns clérigos sunitas diziam que matar um Hazara (xiita) era uma forma de entrar no céu.


7 - Muito perto de Bamyan existe o lago Band-e-Azhdahar, criado da mesma forma que os lagos de Band-e Amir e que fica num vale chamado o Vale do Dragão, por uma crista de rocha que o atravessa e desenha o dorso de um dragão enterrado. É um destino de fim-de-semana para as gentes de Bamyan. Este dragão, já agora, que aterrorizava aquelas terras, foi derrotado pelo Califa Ali, com a sua fiel espada Zulfiqar.




8 - Para norte de Ban-e-Amir fica a Reserva Natural do Vale de Ajar. Uma antiga reserva de caça dos reis do Afeganistão, sobrevive - mal - pela caça ilegal que persiste. Para oeste fica uma enorme formação natural, um arco de pedra com 64m de largo e que é a Ponte Natural de Hazarchishma




9 - Voltando ao vale de Bamyan, as estátuas dos Budas estavam rodeadas por centenas de cavernas onde viveram durante séculos monges budastas. Estas cavernas mais recentemente tiveram e ainda têm os usos mais díspares, entre os quais os de refúgio/residência de naturais de Bamyan. Algumas cavernas são hoje visitáveis, nomeadamente aquelas onde se descobriram pinturas murais contemporâneas dos Budas, as primeiras pinturas feitas a óleo documentadas no mundo.




10 - Pela província fora existem pequenas cidades e vilas, arruinadas ou não, com o seu pitoresco. A ruína de castelo mais imponente parece-me ser a do Forte das Quarenta Torres, Chehel Burj, semi-destruído como tudo o mais que foi semi-destruido por Gengis Khan no século XIII. A ruína com mais história é a de Shahr e Gholghola, no vale de Bamyan, o último castelo a resistir a Genghis Khan, conhecida hoje pela Cidade dos Gritos, pois não sobreviveu ninguém.. 


11- Bamyan tem a maior parte do seu território acima de 2000m de altitude. Não tem qualquer indústria e o comércio é escasso e os acesso difíceis.  O famoso turismo é apenas algum e agora vai voltar a desaparecer. 


12 - Existe uma equipa de cricket chamada os Band-e-Amir Dragons. No  entanto a sua cidade-base é Ghazni, uma cidade Pahtun centenas de kms para o sul. O cricket veio para o Afeganistão com o retorno dos refugiados que se tinham instalado no Paquistão e que voltaram nos anos 90. Curiosamente foi o único desporto não completamente banido pelos Talibã.


13 - O Parque Nacional Band-e-Amir.é vigiado em grande parte por mulheres-polícia. É ou era.