sexta-feira, 6 de abril de 2018

A Flâneur, mais uma vez.

Hoje de manhã decidi ir a pé até à Flâneur para comprar um livro para um Amigo meu. Ainda não tinha visitado as instalações da Livraria Flâneur depois de ela ter mudado da Rua Ribeiro de Sousa para a Fernandes Costa, 88.
Livraria mais discreta não há. Uma montra decorada (escrita mais propriamente) numa rua das traseiras da Boavista, não havendo letreiro sobrejacente. Já lá tinha passado de carro mas hoje, com um veículo volumoso estacionado à frente, passei pela Flâneur no passeio oposto e não a vi. Não fosse o Google Maps... 
Convido todos a visitarem a livraria. O chão de madeira, as estantes de madeira, as mesas e as cadeiras de madeira. Encostada ao balcão a já conhecida bicicleta que serve para explicar que a Flâneur faz entregas ao domicílio. E a Flâneur tem ou aparenta ter... os livros todos que interessam! Para dar um exemplo, o "Veneza" da Jan Morris, que eu quis oferecer no virar do ano sem o encontrar, ali estava. Bem como o último livro de poesia do José Alberto Oliveira, o objecto das minhas procuras. E pode-se dar o caso de querermos um café, uma fatia de bolo, um copo de vinho...

Chuviscava.  A rua que liga a Fernandes Costa à Avenida do Bessa é a Rua João de Deus. À volta deu-me para apreciar e fotografar as variadíssimas ilhas que por ali subsistem. Para norte, cruzando a Pedro Hispano, a rua descaracteriza-se. À direita um edifício grande e até arquitectonicamente interessante tem a encimar um letreiro que diz "Altice". Antes havia Portugal, hoje não sei bem. Resta por vender o SNS, as escolas, os Jerónimos...

Pouco antes de chegar à Avenida do Bessa à esquerda um edifício alto, uma ilha moderna, que tanto perde em comparação com as antigas... E à direita também, passado o edifício "Altice". Lembrei-me de outro edifício que desenhava a esquina entre a Fernandes Costa e a João de Deus. Uma ilha de ricos. Plantada em terreno artificialmente elevado, as paredes de granito avermelhado liso, mudo. Numa esquina uma "loja" alta, sem letreiro que a identificasse - o condomínio? Dentro, sózinho, um funcionário ao computador fumava um cigarro pensativo, o alarme de incêndio desligado. E assim pela vida vamos.








quinta-feira, 5 de abril de 2018

Portugal - A Terra e o Homem.

Antes havia Portugal, agora não sei bem. Quando penso em comprar um livro vou a casa dos meus pais e subo a percorrer as estantes. Um livro sempre aparece que me amaina a fome. E leio. Em 1978 ainda havia Fundação Calouste Gulbenkian. Por alturas do Dez de Junho editou um livro onde Vitorino Nemésio antologiava textos escritos em português de Portugal sobre o Homem Português e a sua Terra nos séculos XIX-XX. Os autores antologiados foram Oliveira Martins, Herculano, Cesário Verde, Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Júlio Dinis, António Nobre, Eça de Queirós, Camilo, Aquilino Ribeiro, Antero de Figueiredo, Almeida Garrett,  Fialho de Almeida e Manuel Teixeira Gomes. Folheando percebe-se que a língua portuguesa era mais bem tratada nesses tempos do que nos de hoje. Por outro lado o Portugal aqui tão bem retratado não mudou nem melhorou, simplesmente desapareceu.

Nota: por morte do antologiador a edição do livro foi "póstuma", ganhando e bem como adenda dois poemas dele.

"Comecemos de oriente para ocidente. O Alto-Alentejo tem o clima de Trás-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16º a 17º), porque a menor altura das montanhas dá frios menos intensos no Inverno; as chuvas estivais são menores também (30 a 50 mm). Fronteira aberta de Espanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura castelhana. As mesmas planícies onduladas, as mesmas culturas cerealíferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas, os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e de outro da fronteira. Torrado pelo sol, a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, porte nobre e seguro, bizarro, folgazão, hospitaleiro e comunicativo, o Alentejo exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre que vive. Não é decerto um grego de Atenas, mas é um grego da Beócia. Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas longas e alinhadas estradas, entre lençóis de de matas de azinho escuro, sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem de poeira que a luz ilumina, e ouvimos o tilintar alegre das campainhas e guizos nas coleiras dos machos - é o caseiro que a trote largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções de briche oreto, vai à feira de Vila Viçosa, em Maio, ou à de Évora, em Junho, tratar dos negócios da lavoura."

(Oliveira Martins)

"Em 1850 o Porto parecia-se mais com o estreito e cavo burgo medieval que Garrett descreve no Arco de Santana do que com a cidade comercial, civilizadamente cosmopolita, incaracterística e banal, que hoje é.
Algumas ruas tinham o aspecto mais interessantemente arqueológico ou mais vivamente pitoresco. A antiga Banharia era ainda a esse tempo quase exclusivamente habitada por latoeiros. Tinha toda ela um tom doirado produzido pela refracção de luz nas bacias, nos tachos, nos candeeiros de três bicos, em cobre polido, pendurados às portas; e o permanente martelar dos arames aviventava-a com o mesmo ruído laborioso e alegre do tempo em que a Aninhas morava ali perto, ao bendito Arco da Senhora Santana. A angustiada e tortuosa Reboleira, calçada de enormes lajedos de granito, com os prédios em ressalto na altura do primeiro andar, como nas velhas ruas de Flandres, deixando apenas ver do céu, por entre os beirais dos telhados, uma estreita fita azul e serpenteante, era fechada à borda do mar pelo gótico arco da Porta Nobre; e às três horas da tarde, no Verão, envolvia-a já uma sombra de crepúsculo, a que o cheiro picante e aperitivo das aduelas batidas pelos tanoeiros à porta de cada loja dava uma refrigerante sensação de adega. A Rua das Hortas lembrava um trecho de bairro antigo de Tânger ou de Marrocos, coberta com os seus largos toldos de linhagem branca, cheia de cães de caça, semi-selvagens, podengos e galgos, que dormiam estiraçados a toda a largura e a toda a extensão da rua, por entre os feixes de verga de ferro e os balotes de linho em rama."

(Ramalho Ortigão)

"Tenho de atravessar o Alentejo isolado e concentrado, para chegar ao Algarve. É uma província farta, mas a aparência esquelética, a árvore triste a que arrancam a pele em vida, o monte solitário, meteram-me sempre medo. É a terra do ódio. Tudo em que a gente põe a vista é duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir - mas o sorriso fica em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns com os outros para fugirem à solidão do deserto... No Baixo Alentejo, porém, os sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o céu esbranquiçado, as lascas de pedra que reluzem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma grande fumarada levanta-se no fundo de deserto...
Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário, que goza em Lisboa, e que lhe deixa de quando em quando uma folha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo à atroz realidade. Fica só e o ódio, sob a abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio: com o ódio enche o deserto e enche a própria vida...
De manhã saio em Olhão deslumbrado."

(Raul Brandão)

"Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes - e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
Sacudi violentamente Jacinto:
- Acorda, homem, que estás na tua terra!~
Ele desembrulhou os pésdo meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra. 
- Então é Portugal, hem?... Cheira bem.
- Está claro que cheira bem, animal!"

(Eça de Queirós)

"O atum, que anda em cardumes, procurando a proximidade da costa para desovar, se entra na faixa de água limitada pela rabeira e lhe vê a sombra, assustadiço como é, em vez de tentar atravessá-la, vai-a seguindo mansamente, à busca da saída, e mansamente cai nas portas da armação, que se fecham apenas o apanham dentro.
Antes de desovar o atum chama-se "de direito", e as armações que o apanham têm a boca voltada para oeste, de onde ele vem na derrota do Estreito; essas armações, postas com a boca voltada para leste, servem para o atum de "revés", que regressa em poucas semanas, já desovado e magríssimo. Daí a grande diferença de valor entre os atuns de direito e de revés, sendo aqueles aproveitados especialmente em conservas e estes para a salga.
(...)
A copejada faz-se levantando uma rede móvel chamada "céu", que está no fundo do copo, e vai lentamente trazendo o peixe à superfície da água, onde ele é apanhado pela gente da campanha debruçada sobre as barcas, e tendo preso no pulso direito, por uma corda, um pequeno arpão móvel. O peixe corre em círculo à roda das barcas, e quando lhes passa ao alcance, o pescador mete-lhe o arpão e puxa-o para dentro da barca, onde ele entra e cai pelo seu próprio impulso, desprendendo-se do arpão automaticamente, apenas transpõe a borda da lancha. Uma criança de dez anos pode, assim, pescar peixes de dez arrobas."

(Manuel Teixeira Gomes)

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Comer com os olhos.

A Rita é uma simpática doente da minha consulta, nem cinquenta quilos terá, anos oitenta e cinco. Não há quem venha melhor vestido à minha consulta. Havia o sr. Caixeiro mas ele ultimamente tem-se repetido um pouco. A Rita vive ali para Penafiel ou Paredes, todas as manhãs vai tomar o pequeno-almoço ao café em frente à sua casa, a nacional de permeio, um mistério como ainda não foi atropelada. Vem de carro de praça a que a senhora que a acompanha chama de "táxi" mas não é. A consulta é uma risota, a Rita já me ameaçou com o dedo e já tentou puxar-me uma orelha. Aqui há dias ofereceu-me as clássicas amêndoas, brancas e cor-de-rosa. Ofereceu-mas dizendo que só "comia das cor-de-rosa, as outras deixo ficar". Sendo o sabor igual, pensando bem, aos oitenta e cinco como não ia a Rita saber (e pôr em prática) a velha sabedoria que diz que se come, e muito, com os olhos?

terça-feira, 3 de abril de 2018

A cafetaria que fica dentro de um horto.

Os bonsais não têm tido sorte comigo. Não me orgulho disso. Mas viver é tentar e estou decidido a tentar outra vez. Os do Horto da Boavista, aquele que me fica mais perto, não me convenceram. Achei melhor procurar noutros sítios. Primeiro, deixem que vos diga: essa história do neo-liberalismo está muito inflacionada. Todos os hortos do Porto estavam fechados na tarde do Domingo de Páscoa. Segundo, este Março é o SEGUNDO Março mais chuvoso desde que há registo, o primeiro o de 2001 do qual me lembro bem nomeadamente quando o meu Ibiza se afogou na rotunda dos Produtos Estrela. Bom, lá fui eu então ao Horto do Tronco, na Circunvalação quem ruma para o Amial. Os bonsais eram giros, a senhora com quem me informei simpática. Tinha deixado o carro a uns cem metros ou mais. E começou a chover. Para meu espanto descobri que a casa que serve de núcleo de granito ao horto é uma cafetaria, com esplanada interna anexa. Na esplanada havia um arremedo de biblioteca e o JN do dia para consulta. Um casal  tomava o pequeno-almoço, uma senhora lia, um homem fazia umas contas com apoio de um computador. Uma televisão debitava canais tão importantes como o RNV e o LNTV, ou seja, não era a TVI, o que é sempre bom. O grupo mais animado era constituído por um par de sindicalistas a industriar umas raparigas fardadas com uns impermeáveis coloridos a fazer greve. Discutia-se direitos, falava-se de "nós" e de "eles". Fumava-se, porque permitido. Li o JN , o Porto perdera.
O Porto, cidade, ainda me surpreende. Não parava de chover. Sai bem disposto e preparado para correr. Numa aberta, a compra ainda por decidir, lá me despedi do horto mais sua cafetaria.