quinta-feira, 5 de abril de 2018

Portugal - A Terra e o Homem.

Antes havia Portugal, agora não sei bem. Quando penso em comprar um livro vou a casa dos meus pais e subo a percorrer as estantes. Um livro sempre aparece que me amaina a fome. E leio. Em 1978 ainda havia Fundação Calouste Gulbenkian. Por alturas do Dez de Junho editou um livro onde Vitorino Nemésio antologiava textos escritos em português de Portugal sobre o Homem Português e a sua Terra nos séculos XIX-XX. Os autores antologiados foram Oliveira Martins, Herculano, Cesário Verde, Ramalho Ortigão, Raul Brandão, Júlio Dinis, António Nobre, Eça de Queirós, Camilo, Aquilino Ribeiro, Antero de Figueiredo, Almeida Garrett,  Fialho de Almeida e Manuel Teixeira Gomes. Folheando percebe-se que a língua portuguesa era mais bem tratada nesses tempos do que nos de hoje. Por outro lado o Portugal aqui tão bem retratado não mudou nem melhorou, simplesmente desapareceu.

Nota: por morte do antologiador a edição do livro foi "póstuma", ganhando e bem como adenda dois poemas dele.

"Comecemos de oriente para ocidente. O Alto-Alentejo tem o clima de Trás-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16º a 17º), porque a menor altura das montanhas dá frios menos intensos no Inverno; as chuvas estivais são menores também (30 a 50 mm). Fronteira aberta de Espanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura castelhana. As mesmas planícies onduladas, as mesmas culturas cerealíferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas, os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e de outro da fronteira. Torrado pelo sol, a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, porte nobre e seguro, bizarro, folgazão, hospitaleiro e comunicativo, o Alentejo exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre que vive. Não é decerto um grego de Atenas, mas é um grego da Beócia. Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas longas e alinhadas estradas, entre lençóis de de matas de azinho escuro, sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem de poeira que a luz ilumina, e ouvimos o tilintar alegre das campainhas e guizos nas coleiras dos machos - é o caseiro que a trote largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções de briche oreto, vai à feira de Vila Viçosa, em Maio, ou à de Évora, em Junho, tratar dos negócios da lavoura."

(Oliveira Martins)

"Em 1850 o Porto parecia-se mais com o estreito e cavo burgo medieval que Garrett descreve no Arco de Santana do que com a cidade comercial, civilizadamente cosmopolita, incaracterística e banal, que hoje é.
Algumas ruas tinham o aspecto mais interessantemente arqueológico ou mais vivamente pitoresco. A antiga Banharia era ainda a esse tempo quase exclusivamente habitada por latoeiros. Tinha toda ela um tom doirado produzido pela refracção de luz nas bacias, nos tachos, nos candeeiros de três bicos, em cobre polido, pendurados às portas; e o permanente martelar dos arames aviventava-a com o mesmo ruído laborioso e alegre do tempo em que a Aninhas morava ali perto, ao bendito Arco da Senhora Santana. A angustiada e tortuosa Reboleira, calçada de enormes lajedos de granito, com os prédios em ressalto na altura do primeiro andar, como nas velhas ruas de Flandres, deixando apenas ver do céu, por entre os beirais dos telhados, uma estreita fita azul e serpenteante, era fechada à borda do mar pelo gótico arco da Porta Nobre; e às três horas da tarde, no Verão, envolvia-a já uma sombra de crepúsculo, a que o cheiro picante e aperitivo das aduelas batidas pelos tanoeiros à porta de cada loja dava uma refrigerante sensação de adega. A Rua das Hortas lembrava um trecho de bairro antigo de Tânger ou de Marrocos, coberta com os seus largos toldos de linhagem branca, cheia de cães de caça, semi-selvagens, podengos e galgos, que dormiam estiraçados a toda a largura e a toda a extensão da rua, por entre os feixes de verga de ferro e os balotes de linho em rama."

(Ramalho Ortigão)

"Tenho de atravessar o Alentejo isolado e concentrado, para chegar ao Algarve. É uma província farta, mas a aparência esquelética, a árvore triste a que arrancam a pele em vida, o monte solitário, meteram-me sempre medo. É a terra do ódio. Tudo em que a gente põe a vista é duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir - mas o sorriso fica em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns com os outros para fugirem à solidão do deserto... No Baixo Alentejo, porém, os sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o céu esbranquiçado, as lascas de pedra que reluzem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma grande fumarada levanta-se no fundo de deserto...
Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário, que goza em Lisboa, e que lhe deixa de quando em quando uma folha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo à atroz realidade. Fica só e o ódio, sob a abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio: com o ódio enche o deserto e enche a própria vida...
De manhã saio em Olhão deslumbrado."

(Raul Brandão)

"Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes - e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
Sacudi violentamente Jacinto:
- Acorda, homem, que estás na tua terra!~
Ele desembrulhou os pésdo meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra. 
- Então é Portugal, hem?... Cheira bem.
- Está claro que cheira bem, animal!"

(Eça de Queirós)

"O atum, que anda em cardumes, procurando a proximidade da costa para desovar, se entra na faixa de água limitada pela rabeira e lhe vê a sombra, assustadiço como é, em vez de tentar atravessá-la, vai-a seguindo mansamente, à busca da saída, e mansamente cai nas portas da armação, que se fecham apenas o apanham dentro.
Antes de desovar o atum chama-se "de direito", e as armações que o apanham têm a boca voltada para oeste, de onde ele vem na derrota do Estreito; essas armações, postas com a boca voltada para leste, servem para o atum de "revés", que regressa em poucas semanas, já desovado e magríssimo. Daí a grande diferença de valor entre os atuns de direito e de revés, sendo aqueles aproveitados especialmente em conservas e estes para a salga.
(...)
A copejada faz-se levantando uma rede móvel chamada "céu", que está no fundo do copo, e vai lentamente trazendo o peixe à superfície da água, onde ele é apanhado pela gente da campanha debruçada sobre as barcas, e tendo preso no pulso direito, por uma corda, um pequeno arpão móvel. O peixe corre em círculo à roda das barcas, e quando lhes passa ao alcance, o pescador mete-lhe o arpão e puxa-o para dentro da barca, onde ele entra e cai pelo seu próprio impulso, desprendendo-se do arpão automaticamente, apenas transpõe a borda da lancha. Uma criança de dez anos pode, assim, pescar peixes de dez arrobas."

(Manuel Teixeira Gomes)

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