segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

The Quiet Man e a violência doméstica.

The Quiet Man é o filme de John Ford que eu prefiro. Talvez por não ser um fã do western ou do filme de cavalaria. Ou ainda porque The Quiet Man tem Mauren O'Hara.
Trata-se de um filme saído em 1952, e é um velho projecto de John Ford, homem com raízes irlandesas, que ele finalmente consegue realizar nos estúdios Republic, uma segunda linha. John Wayne é um irlandês que volta da América para comprar a casa que foi dos seus pais. Todo o resto é a Irlanda que nós não sabemos se alguma vez existiu mas supomos que antigamente assim seria, pois os arquétipos, como as lendas, alguma razão terão para existir. O filme, um clássico, é intemporal. Tem detalhes que só por si valem a visita. Mas hoje queria falar sobre a cena final.
Li algumas coisas na internet sobre o fantástico papel de Maureen O'Hara. Incluindo algumas considerações sobre o anacronismo das relações homem-mulher no filme e, inclusive, algumas menções bastante explicitas à violência do personagem masculino representado por Wayne. A relação entre John Wayne e Maureen O'Hara é tempestuosa durante todo o filme mas nunca violenta. "Sacudida" talvez, violenta não. Na famosa cena de pugilato - com o irmão dela - em que John Wayne pretende voltar a ganhar o respeito da aldeia e o da esposa, uma assistente - mulher portanto - oferece-lhe um pau para que ele possa "educar adequadamente a sua adorável esposa". Na última cena Maureen O'Hara segreda algumas palavras ao ouvido de John Wayne e este depois segue-a saltitando para dentro de casa. Consta que essas palavras segredadas ficaram em segredo entre os dois actores e o realizador. Ninguém reparou porém que imediatamente antes do segredar John Wayne tem um pau - será o mesmo? - nas mãos e Maureen O'Hara lho tira das mãos e atira-o para o chão, sem mais. Este final feliz, que o é, inclui este detalhe, mas que é - oh tão - importante.

The Quiet Man é um filme que os homens portugueses não viram.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

G. K. Chesterton - extracto de "Tremendas Trivialidades".

"Se os ceifeiros cantam ao ceifar, porque é que os contabilistas não haverão de cantar ao contabilizar, e os banqueiros ao realizarem o seu comércio bancário? Se há cânticos diferentes para cada uma das coisas que se fazem num barco, porque é que não há cânticos diferentes para cada uma das coisas que se fazem num banco? Enquanto o comboio voava através dos jardins de Kent, tentei escrever umas cantigas apropriadas a cavalheiros comerciantes. Desse modo, a tarefa dos bancários de calcular colunas de números poderia comecar com um coro ribombante em louvor da Adicão Simples:

(...)

E de seguida, naturalmente, necessitaríamos de outra cantiga para os tempos de crise financeira e de coragem, uma cantiga de métrica mais feroz e mais assustadora, como o galopar de cavalos na noite:

(...)

E, à medida que me aproximava da nuvem de Londres, encontrei um amigo  que trabalha efectivamente num banco, e mostrei-lhe estas sugestões em rima para uso entre os seus colegas. Mas ele não se mostrou particularmente entusiasmado sobre o assunto. Não era que (assegurou-me) considerasse os meus versos inferiores, ou que de algum modo lamentasse a minha falta de mestria. Não: era antes devido, assim o sentia, a algo indefinível na própria atmosfera da sociedade em que vivemos, que faz com que seja espiritualmente difícil cantar em bancos. E parece-me que ele deve ter razão, apesar de o assunto ser muito misterioso. Posso observar, neste ponto, que deve haver algum erro nos cálculos dos socialistas. Responsabilizam, pelas nossas dificuldades, não o nível moral, mas o caos da iniciativa privada. Pois bem, os bancos são privados; mas as estacões de correio são socialistas; em consequência, eu, naturalmente, esperaria que numa estação de correios incorreria a ideia colectivista de coro. Julguem a minha surpresa quando a senhora adstrita à estação de correios do meu distrito (e a quem incitei a cantar) rejeitou a ideia com muito mais frieza do que a mostrada pelo meu amigo bancário! Ela de facto parecia estar num estado de depressão consideravelmente maior do que ele. Acaso alguém suponha que tal derivava do efeito causado pelos próprios versos, é bom referir que se destinavam a ser o hino da estacão de correios estes versos que diziam assim:

(...)

Quanto mais pensava sobre o assunto, mais dolorosa se tornava a certeza de que as coisas modernas mais típicas e importantes não podem ser levadas a cabo com um coro. Não se pode, por exemplo, ser um grande financeiro e cantar, porque a essência do grande financeiro consiste em estar calado."






"Os bancários estão desprovidos de cánticos, não porque sejam pobres, mas porque estão tristes."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Nem Moretti já nos salva.

A filmografia de Moretti organiza-se em grupos de três filmes, depois de dois, e, finalmente, um a um. Voltará a realizar?
Não vi os seus primeiros três filmes, ditos panfletários, "Io Sono un Autarchico", "Ecce Bombo" e "Sogni d'Oro". Diga-se que Moretti, se é muito aplaudido pela Europa fora, em Itália está longe de ser consensual. É visto como um (ex-)esquerdista dogmático filho de uma família bem romana.
Com "Bianca", "La Messa é Finita" e "Palombella Rossa", Moretti cruza os anos oitenta e a progressiva desintegração das certezas da esquerda italiana. Moretti tinha criado nos seus primeiros filmes um alter-ego, Michelle Apicella. Moretti escreve, representa, produz, dirige. Em "Bianca" Michelle é um professor desadaptado numa escola de fantasia chamada Marilyn Monroe. Não consegue encetar uma relação douradoura com as mulheres porque antecipa a mentira e a traição. A vida é incerta e Michelee não aceita isso. Em "La Messa e Finita" o mesmo raciocínio é levado mais além. Moretti foge ao seu alter-ego e faz de padre, "don Giulio", que, após uns tempos numa comunidade afastada volta à sua terra de juventude para constatar que todos os seus amigos "se perderam": separaram-se, tornaram-se violentos e estão presos, enfim, até a sua irmã mudou. Don Giulio não aceita estas mudanças de bom grado e o filme alterna momentos lúdicos com situações de conflito físico. É o primeiro grande filme de Moretti e pô-lo no mapa europeu do cinema. A seguir vem "Palombella Rossa". Moretti foi praticante federado de polo aquático, Este filme é ainda com o alter-ego Michelle e gira à volta de uma piscina onde se joga, metaforicamente, numa partida de polo aquático o futuro da esquerda italiana. É um filme ruidoso, onde todos falam e ninguém ouve, e onde repetidamente se ouve a litania de "Somos iguais, mas somos diferentes! Somos iguais, mas somos diferentes!" Nem sempre há paciência para todo o filme que, literalmente, demora a acabar. Mas a amargura é evidente. Assim como não ser este filme a sequência mais óbvia a seguir a "La Messa é finita".
O próximo filme demorou cinco anos a aparecer. Antes Moretti rodou um documentário sobre a desintegração do PCI. Depois aparecem dois filmes, "Caro Diário" e "Aprile", que colocam Moretti no centro do cinema dos anos 90. São dois filmes onde Moretti já não se chama Michelle mas sim ele-mesmo, "o" Nanni Moretti. "Caro Diario" é uma narrativa em três capítulos da indecisa vida de um realizador de cinema que não se decide a fazer um filme mas sim anda de vespa, viaja de ilha em ilha e, no fim, tem uma doença grave. A política está "escondida", o humor não: Moretti exibe-se e provoca e transforma um argumento aparentemente simples numa comédia refinada, menos truculenta, e onde a singularidade de um autor definitivamente se afirma. Assim aconteceu também em "Aprile": Moretti passa todo o filme a pensar em fazer um filme comprometido, um documentário sobre a "nova esquerda" - o follow up hipotético aquele que realmente ele já tinha feito, mas perde por completo a paciência, parece-me com a Itália. Coisas mais importantes acontecem - um filho, por ex., e termina literalmente a cagar-se para a política e... a Itália? Ficou para a história a imprecação contra uma televisão onde um d'Alema escutava silencioso a Berlusconi: "d'Alema, diz qualquer coisa de esquerda! Diz, diz qualquer coisa ao menos cívica!" Moretti desiste e assume-se como "superior" à pavorosa nova Itália televisiva de Berlusconi. E agora?
Em dezoito anos Moretti ofereceu-nos mais quatro filmes. Mas o Moretti antigo só ofereceu um... e meio.
Em 2001 sai "O Quarto do Filho". Foi Palma de Ouro em Cannes. Neste filme Nanni Moretti é Giovanni e é um pai que perde um filho num acidente de mergulho. Serviu este filme linearmente para que Moretti exorcizasse todo o medo que qualquer pai tem: o de perder um filho sem razão. que sempre o é. O filme é mais palavroso e extrovertido mas anuncia em alguns dos seus mecanismos o "Mia Madre" de 2015, de que já falei. Literalmente percebemos que, embora com um grau de poesia singular, o filme conta-nos uma história que-podia-ter-acontecido-exactamente-assim. Como "Mia Madre" 14 anos depois, com a diferença de neste a mãe de Moretti efectivamente ter falecido. Dizem que em "Mia Madre" Moretti representa o filho que gostaria-de-ter-sido.
Em 2006 sai "Il Caimano". E a política volta à primeira linha. Moretti tem um pequeno papel no filme. Silvio Orlando é um realizador que tem uma vida em torvelinho e que não consegue fazer um filme sobre Berlusconi. Que é, pelo meio, o que Moretti consegue fazer. A crítica à forma directa e obscena como Berlusconi domina o audiovisual italiano está ali. Mas o filme é muito mais e, talvez, seja o retrato mais carinhoso que Moretti faz sobre o "fazer cinema". Com música, coreografias e o romper de todas as ilusões: a nova Itália não é para sonhadores.
Em 2011 sai "Habemus Papam". Michel Picolli é um papa-eleito que tem dúvidas. Moretti o psicanalista que o vai ajudar a decidir. Moretti é, pela última vez, bastante divertido. O filme é uma boa ideia que então pareceu ousada mas que o tempo, Ratzinger e Bergoglio, banalizaram: afinal um Papa resigna e um Papa "novo", ao contrário do do filme de Moretti, não tem dúvidas. A crítica a uma Igreja "esclerosada" já foi ultrapassada pelos eventos. 
Já escrevi que "Mia Madre" "não é" um filme de Moretti. Mas é. Acontece que aquele Moretti que nos invectivava nos anos oitenta e noventa já cá não está. E agora?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

outra vez O Ano do Cometa de Álvaro Cunqueiro.

"Quando o cadáver, levado pelos maqueiros, entrou na cidade, as casas afastaram-se, redemoinhando como folhas secas levadas pelo vento. As ruas alargaram, misturaram-se, perdendo-se umas das outras, abrindo-se como praças. Os maqueiros voluntários pousaram a carga no meio de uma que nunca tinham visto, pavimentada de mármore, que através de umas escadas deixava chegar ao mar. Pelos quatro lados. Sim, era uma ilha. Fez-se noite e a luz do farol lambeu as águas. Do veleiro ancorado na baía chegava um homem, caminhando sobre as vagas. Era muito alto, envolto numa capa negra. Os seus olhos tinham uma luz estranha. Para onde olhava, via-se um pequeno círculo dourado, que ia para onde queriam os olhos, iluminando as coisas que desejava ver.
- Indocumentado! - explicou-lhe o comissário de estrangeiros, que falava de uma varanda que se separara de uma casa que viajava para o mar.
O homem da capa negra puxou o lençol que cobria o cadáver. A sua cabeça descansava numa almofada coberta de seda vermelha, apoiando a face esquerda na palma da mão. Na mão direita agarrava um livro fechado, onde um punhal, com a cruzeta adornada de pedras preciosas, marcava o lugar onde estava a ler quando adormeceu. Ou morreu. Vestia de branco e verde. Os candeeiros da praça, que se desprendiam das suas esquinas e vinham revolutear como pássaros sobre ele, permitiam contemplá-lo. Tinha o cabelo negro comprido, muito bem aparada a pêra provençal no rosto redondo e pálido. Respirava? Dir-se-ia que respirava pausada e tranquilamente.
 - Quando disparámos tinha umas calças encarnadas!"

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

The Right Hemisphere.

"The right hemisphere is mainly in charge of spatial habilities, face recognition and processing music. It performs some math, but only rough estimations and comparisons. The brains's right side also help us to comprehend visual imagery and make sense of what we see. It plays a role in language, particularly in interpreting context and a person's tone."

A mãe tinha uma hemorragia cerebral profunda mas que se manifestava com algumas das alteracões acima, para além de outras. Tinha repetido TAC, tinha feito levante. A filha entrou na sala a pedir informacões no preciso momento em que, por artes do escafandro, o meu computador ganhou vida e comecou a emitir música, alto. "Eu peco imensa desculpa", dissemos ao mesmo tempo. "Eu não lhe queria interromper o Lionel Ritchie..." "Marvin Gaye", corrigi. 


Informei, esclareci, Menti ao dizer que a mãe seria transferida para Santo Tirso domingo: foi sábado porque estava bem e era necessário. Despediu-se agradecendo e pedindo outra vez desculpa por interromper: "Marvin Gaye" - antecipei-me - "Era Marvin Gaye...". Ela sorriu.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Daqui a ano e meio.

Daqui a ano e meio vou ser mulher. Perdida num grande hospital conseguirei encontrar a minha consulta e o meu médico. Tido um pequeno AVC meses antes, nada de especial na carta de apresentação: diabetes, hipertensão arterial, peso a mais, por artes do diabo sei que o meu médico de família diz e escreve que eu tenho um "avental abdominal" - será porque já fui cozinheira? - sei também que ele escreveu há dois anos "abuso crónico do álcool" e, a verdade é que não me lembro de isso ter acontecido, por ter acontecido é que eu esqueci? Razões teria, pois já sou viúva com esta idade. Razões teria, pois da minha mão esquerda faltam-me um total de cinco falanges de um acidente com uma máquina numa fábrica de fazer brinquedos, tinha eu treze anos, 1975, o ano do PREC. O anelar não dá para trazer uma aliança, posso portanto dizer que foi ela por ela. Chegarei à conclusão que era simpático o médico, até aliviou um pouco a medicacão e eu terei prometido perder peso. No fim da consulta ele dir-me-á: "pode começar a beber forte e feio, não vamos desiludir o seu médico de família!". 
Não perceberei se brinca.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Notting.

Descubro com dezassete anos de atraso que o personagem representado por Hugh Grant no filme "Notting Hill" chamava-se William...

O Ano do Cometa - Alvaro Cunqueiro.


"- Como é que os vossos pais se salvaram do dilúvio?
- Havia entre as pessoas do poente, que então viviam pastoreando grandes manadas de cavalos de crina prateada e pêlo cor de mel, um homem e uma mulher cujas almas transbordavam de inocência, como de crianças na véspera de dizerem a primeira palavra ou de darem o primeiro passo. Desde a criação ainda não tinha chegado nenhum tordo à ilha até aquela manhã. A sua inocência permitia-lhes ouvir pássaros a sete léguas de distância. Cada um foi por seu caminho para ver num ramo de cameleira aquele novo e feliz trovador. Deram-se as mãos para ouvi-lo ao meio-dia, porque assim o pediu a ave, e cantou-lhes uma soledad, e depois pediu-lhes que entre os dois abraçassem a árvore e cantou-lhes uma vidalita, e tão belo era o canto, e posso dizer-te que os enfeitiçava, que não repararam que começara a chover. A ilha inclinou-se para estibordo e toda a gente que a povoava caiu ao mar, menos o homem e a mulher inocentes que estiveram abraçados à cameleira os quarenta dias e as quarenta noites do dilúvio. A ilha elevou-se sobre as águas os côvados suficientes para que pudessem passar por debaixo dela Leviatã e as outras baleias.
- E casaram e tiveram filhos?"

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Regina.

MINÉRIO

roubar ruído ao que toca,
e ouro à água corrente

roubar os dentes à roda
da fortuna

retirar todo o sentido
ao castigo
que faz vão e descabido
tudo quanto em nós se faz

arrumar lá para um canto
aquele antigo condão
de fechar os olhos cedo
e pedir ao sonho certo
que viesse e que durasse
até ao dia seguinte

Regina Guimarães, Caderno do Regresso, Hélastre, 2010.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Mia Madre, de Nanni Moretti - 2015.

Fui ver este filme a uma sessão do Cineclube de Joane, na Casa das Artes de Famalicão. Não sei se teve exibição comercial em sala o ano passado. Servia este filme para apresentar Nanni Moretti à minha filha. Servia mas não serviu. Porque não é um "daqueles" filmes de Moretti.
É costume de Moretti fazer um cinema palavroso, seja ele ou não o actor principal. O drama, o humor e o absurdo invadem a tela e dividem a atenção. A música, habitualmente italiana e comercial, ilustra, precipita, resolve a acção. Nada dito acontece em "Mia Madre".
O filme é sobre uma realizadora de cinema que faz um filme político onde John Turturro é o actor americano convidado e que tem - a realizadora -  a mãe internada com uma doença grave e que, depois percebemos, vai morrer. A realizadora de cinema tem uma filha, um ex-namorado que é actor no filme, um ex-marido, e um irmão - interpretado por Moretti - que tirou uma licença sem vencimento para acompanhar a doença da mãe. Há momentos extremamente engraçados com Turturro, sim, mas são um engraçado até "natural", credível, um actor americano mediano mas americano no meio de uma produção mediana italiana. Aqui não há qualquer absurdo. E o resto não cresce, não sobe, não abre. O filme quase desce ao nível de um documentário ou dum docudrama. Às vezes quase perguntamos: onde está o filme?
O filme está ali entre a realizadora e a sua mãe. E é nessa relação difícil - um ménage a troi entre duas mulheres e uma doenca terminal - e só aí que ele está e ganha asas. Em pequenos detalhes. Em sonhos vistos. No silêncio. Não me lembro de um filme de Moretti assim silencioso. Ou com uma régie tão parcimoniosa. Filmam-se os livros da antiga professora de latim que ainda ensina a neta a declinar por entre nebulizações e oxigénio. Os seus antigos alunos. Talvez a agonia aconteça demasiado bem. Talvez a figura de Moretti - o irmão - seja demasiado contida - nunca Moretti representou assim, que eu tenha visto. Mas o fim - "domani!" - é perfeito.
Moretti pretendeu dat-nos a sua opinião sobre o que fica de alguém depois da morte. A sua mãe - mais um filme algo autobiográfico - era professora de letras/latim e falecera poucos anos antes. Moretti conseguiu e bem.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

E Moretti?

Nanni Moretti é um realizador de cinema italiano que se tornou conhecido nos anos 80 e depois foi aparecendo e desaparecendo, até ter ganho a Palma de Ouro em Cannes em 2001 com "O Quarto do Filho". Se se podia esperar, após esta consagração, mais constância na produção de filmes, tal não aconteceu. Moretti demorou cinco anos a voltar a mandar cá para fora um filme, "O Caimão", filme também sobre Berlusconi mas sobre muitas outras coisas mais. Tinham passado cinco anos, a crítica não foi unânime, e Moretti manteve o ritmo de antes, um filme cada 3 a 5 anos. Só vieram portanto mais dois. Moretti não é o Almodovar italiano nem o Woody Allen italiano. É atípico em tudo. Os seus filmes são frequentemente protagonizados pelo próprio, jogam à autobiografia, metem números musicais, têm um humor muito próprio, ora contra o sistema ora contra a intelectualidade ora contra a Itália como um todo, com uma melancolia própria de um homem xde esquerda em luto pela morte da esquerda italiana. Um luto que em Moretti não cessa.


Moretti é do pouco que nos resta. Vais ao Google, pesquizas os 20, 40, 50 realizadores de cinema vivos mais importantes, do mundo ou europeus, não interessa, Moretti não consta. Não entendo.

Serge Abramovici

Serge Abramovici / Saguenail viu publicada uma entrevista sua em 2010, muito interessante, dentro dum projecto de investigação do CIAC  - "Novas e Velhas Tendências no Cinema Português".
A entrevista é de André Gil da Mata.
Cito:

"O estado actual do cinema português, para mim, está ligado ao seu contexto político-social. Está ligado à geração que, graças ao 25 de Abril, pôde chegar ao cinema e tentar impor a ideia de um cinema "diferente"; num primeiro tempo numa vontade de intervenção, num segundo tempo numa vontade de originalidade. Essa geração está a morrer, o João César Monteiro, que era talvez o melhor representante dessa geração, já morreu, e o José Álvaro Morais... Ao mesmo tempo, dentro dessa geração teremos aquilo a que posso chamar os loucos, tipos que entraram em paranóia e quiseram, num país como Portugal, fazer cinema talvez não à americana, mas à espanhola, pelo menos; advogaram a ideia de um cinema comercial sabendo perfeitamente que os recursos em termos de distribuição do país invalidam completamente essa hipótese. Porque cinema comercial não é só uma história comercial e a utilização de receitas, é também ter um público e os meios adequados a esse tipo de cinema — coisas que não existem."

"E Portugal sempre sofreu de outra coisa, como dizia o Luís Pacheco: "não era um país de avançados era um país de avençados." Eu vi, durante 30 anos, os meus colegas passarem mais tempo em intrigas no ICA e à espera de um subsídio, do que preocupados realmente em aprender pura e simplesmente o ofício. A maior parte dos cineastas portugueses são eternos debutantes. Quem faz um filme de cinco em cinco anos vai levar três vidas para saber um bocado do ofício."
"Geralmente diz-se que o cinema português é muito palavroso, mas não é. O cinema francês é tagarela, mas no cinema português o que é impressionante é a solenidade da palavra. Há sempre mais silêncio do que palavra, e essa palavra é sempre quase ritual, o que exclui o cinema português de um certo realismo cinematográfico. Cada filme é quase uma cerimónia."

"Muitas vezes há deficiências técnicas. No cinema português, o som, em particular, tem sido pessimamente tratado, pouquíssimo cuidado. Estive a rever filmes do Paulo Rocha, do António Pedro Vasconcelos, que têm a ver com o equipamento das salas, mas o som é pouco audível. O que é terrível, porque os filmes portugueses em Portugal não são legendados, e o espectador português não consegue apanhar o que os actores lá estão a dizer."
"A tentação na minha geração era o europudding, porque permitia mais dinheiro. O World Cinema não sei bem o que é."


"Defendi e defendo a proposta do endividamento para se fazer cinema. O produtor que acredite no projecto, que o faça levar para a frente sem subsídio. Se o pessoal acreditar realmente nos projectos, não há motivo para não se fazer uma curta, ou um terço de uma longa, e depois sim, ser avaliado e, caso ganhe o subsídio, serem reembolsados os custos reais."

"O problema é que as escolas de cinema, por toda a Europa, são formadas por pessoas de televisão. A televisão não tem rigorosamente nada a ver com cinema, é preciso meter isso na cabeça. Talvez quem melhor definiu isso foi o Régis Debray, quando analisou, em mediologia, a diferença entre imagem ampliada e imagem reduzida, a diferença entre sala de teatro e outros locais. O cinema faz coisas para tentar ficar, para poderem ser vistas daqui a vinte anos, enquanto a televisão faz coisas para serem esquecidas logo, para não serem vistas no dia seguinte. São funções e funcionalidades, e logo práticas e estéticas, totalmente opostas. E o facto de ensinar cinema, mas pensar que a profissionalização vai ser na televisão, é falsear completamente as coisas. E a lei do emprego, vigorando desta forma, leva a que formemos pessoas de televisão. Por isso as escolas de cinema são formadoras de profissionais de televisão."

"Mas a minha ideia também é a de que não se forma um artista. Um artista é uma pessoa que de alguma maneira não está satisfeita com o estado das coisas. É alguém que está insatisfeito ao ponto de consagrar a sua vida a criar outra coisa. Isso para mim é a definição do "artista". É um chato, um inútil. Esta minha concepção do artista não tem nada a ver com a arte como mercado, a arte como lugar de reconhecimento. Não pode haver carreira nisso. Ora, os grandes cineastas são artistas. A raiva, o desespero, que está dentro desse "artista" e que o leva a criar, ele ou os tem ou não tem, ninguém lhe vai poder ensinar isso. E esse há-de safar-se, qualquer que seja a escola por onde passe. As escolas são boas na eventualidade de um óvni desses passar por lá. O resto, e eu estou a dar aulas neste momento, são turistas bem intencionados, que colocam palas. Na minha primeira aula disse aos alunos: "Até hoje ainda não saiu nenhum cineasta desta escola, vocês são 30 e tal, o que vão fazer mais tarde na vida, já que não vão fazer cinema?" E eles respondem que querem fazer cinema, mas eu digo que os que passaram por lá antes também o queriam... Estamos a labutar nesse mal- entendido."

Viver é um acto de resistência e a resistência ao cinema comercial e à televisão faz parte. Apesar de tudo, quem gosta de poesia não vai procurar um livro na secção de best-sellers. Mas no cinema, o cinéfilo, sim! O grande responsável pela baixa qualidade dos filmes são os cinéfilos. Eu tinha uma revista de cinema. Decidimos boicotar a revista quando os próprios colaboradores não iam às salas. Viam os filmes nos VHS’s da altura."
"Mesmo quando estás com quem amas, o tempo é contado, não há tempo para preguiças. A vida é curta de mais."


 
 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Cristo está vivo e tem 91 anos.

Sempre me pareceu estranho que as estimativas sobre o ano de nascimento de Cristo fossem entre 4 e 6... Antes de Cristo. Parecia-me uma contradicão - e é! Se nos enganámos e falhámos as contas, pondo o ano "Zero" atrasado... quatro anos ou mais, não devíamos corrigir a contabilidade? Estarmos agora no ano 2016 "Depois de Cristo" é... um engano! Sería mais correcto 2020 ou 2021 ou 2022. Enfim... dilemas e mais dilemas.

Hoje vi na minha consulta um homem de 91 que dá pelo nome de Cristo. Pensei perguntar-lhe pela questão supra. Não me pareceu qualificado para responder. Nem preocupado. Cristo sobreviveu a um pequeno Acidente Vascular Cerebral. Vive sózinho e assim prefere. Não é homem para buscar companhia ou discípulos, com ou sem redes de pesca. Descreveu-me as suas rotinas, quando sai de casa, vai ao café, ao quintal, os trabalhos que faz. Tem uma doença respiratória crónica com uma gravidade moderada, não sei se causada pelos ventos do deserto, se de alguns anos a fumar cigarros. Cristo vive com medo da sua falta de ar. Auscultei-o. Gostaria que o meu pai, dois anos mais novo, tivesse a sua  auscultação. Mas Cristo tem mais dois anos e tem medo. Da noite, do entupimento dos brônquios, da garganta, do nariz. Gostaria de um internamento rápido para fazer aqueles vapores tão mais eficazes que há no hospital. Ou pelo menos vir fazê-los ao hospital cada quinze dias, para limpar as vias, o nariz. Cristo explicou-me com os dedos graficamente como faz para limpar os carranhos - ranhos do ca...? - os braços agitavam-se, Cristo sentava-se e levantava-se, "sem quaisquer sinais de insuficiência respiratória", e cito registos alheios. Cristo gesticula e afasta os fantasmas da noite e da asfixia. Ele não sabe que eles não estarão afinal assim tão perto, ao contrário do fantasma da longevidade, crédito que sempre se acaba por pagar. Cristo, primeiro nome Manuel, sabe que "quem não chora não mama", ele não chora mas faz o seu barulho, o seu protesto, que para ele é como uma obrigação. Dois anos mais novo, o meu pai, Manuel também de seu primeiro nome, vive em expiracão prolongada e, aparentemente, sem medo. E isto preocupa-me.

Se este Cristo que eu auscultei fosse Aquele que decidiu a nossa contabilidade de - enganados - 2016 anos, em 91 anos teríamos então compactados dois milénios e uns trocos e o Império Romano teria sido ontem. Há dois mil anos a Síria tinha sido conquistada, poucas décadas antes, por Pompeu. Lembrei-me disso ao visionar as filmagens do cerco e bombardeamento de Aleppo pela coligação Putin-Assad. Sim, passou muito pouco tempo, na realidade.  . 

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Petição a Favor da Inundação Definitiva de Santa-Clara-a-Velha.

Em Francos é muito rápido o tempo porta-agulha.

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Um protocolo só é bom quando quebrável.

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Nos grandes vasos costumo por grandes flores.

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A intumescência é às vezes tão só edema.

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Cada vez menos suscita interesse a comunicacão oral.

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Sem os ladrões as cadeias não seriam possíveis.

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Podes comparar, eu deixo.

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Uma subanálise faz-se às escondidas.

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É muito contraditório o contraditório do contraditório!

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Olha o ácido úrico!

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Mil vezes se diz que tudo o que parece está!

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O bom humor é uma variável dependente.

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Tudo devia eu interpretar com cautela.

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Aplausos para a tua negativa.

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A razão dos dias valorosos não tem sido elevada.

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Anel a percutir o rebordo de metal da cadeira.

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Regressar, regredir.

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Ser engraçado não dá pontos.

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A idade, esse grande preditor.

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Já não é tarde.

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Flutuação expontânea?

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O ganho de um nível pode ser um piscar de olhos.

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As palavras longas permitem erros mais lentos.

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Esta é uma boa fase?

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Os teus números não são os meus números.

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É pequeno o professor, mas o que ele sabe!

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Uma estratégia dinâmica seria abraçar-te.

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Eles tinham um gesto comercial.

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Antes nunca sabemos.

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No futuro não vai haver Medicina.

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Ainda ontem repensava.





sábado, 6 de fevereiro de 2016

Hulot, Tati e a vida real.

Jacques Tati não é Hulot. Ele afirmou-o várias vezes. O perfeccionismo confesso de Tati não é traduzido na dispersão bem intencionada de Hulot. Jacques Tati pertence à dezena de cineastas franceses indispensávdeis à história do cinema. Falemos então de Hulot.

A história do cinema tem três grandes mimos: Charlot, Buster Keaton e Tati. A filmografia do personagem Mr. Hulot é composta por quatro filmes quatro: "Les Vacances de Mr. Hulot", "Mon Oncle", "Playtime" e "Trafic". Hulot tem uma mensagem para o mundo: que o mundo não se tome a sério. O mundo, subentende-se, dos adultos. Ao qual Hulot não pertence. Nos filmes de Tati há sempre crianças e cães a contrastar com a mundo dos adultos, crianças e cães. "Mon Oncle" termina com uma criancice. "Les Vacances" termina com a maior criancice de todas, um fogo de artifício fora de controlo, e a manhã seguinte, onde Hulot só tem direito à despedida da americana e do marido atrasado. "Playtime"  termina com um último gesto romântico, ou não seja o romance, sempre, uma criancice. Já "Trafic" não, o último plano é uma geometria de carros e guarda-chuvas com gente por baixo, Tati a elevar o discurso final do seu último filme para nos lembrar "Playtime".

Crianças e cães: seria tudo tão mais simples se fôssemos como eles. Esta é a opinião de Hulot. Mas Hulot glorifica também a França velha, o francês velho, que ainda não evoluiu, não comprou, não se vendeu ao "admirável mundo novo" do pós-guerra. O francês que discute, se abraça, faz barulho, engana, ajuda, dança, gesticula, queixa-se, vai fazendo ou nem por isso. Um francês que Hulot mostra ser uma criança grande, em vias de extinção. Hulot pretende lutar contra a extinção desse francês antigo. Em "Trafic" ainda inventa a sua existência através do desenho de um carro-camping "bestial". Mas neste filme, francês antigo... já só Hulot.



Tati filmou um último "filme", que nunca teve projecção nas salas. Dá pelo nome de "Parade" e é a filmagem dum espectáculo mais ou menos ao vivo de circo e music hall numa sala de espectáculos em Estocolmo. Assim como Hulot em "Trafic" já ensaiara uma emigracão para a Holanda, país com costumes algo mais liberais que a França, desta vez Tati emigra para a Suécia. Emigra mas não vence: os homens só podem voltar a ser crianças num ambiente fechado e especial, o ambiente de um circo. "Parade" onde, com ao mesmo tempo nostalgia mas também com uma qualidade notável, Tati, com 67 anos, faz várias rábulas sensacionais.



"Parade" termina com duas crianças a brincar no set desfeito do espectáculo enquanto os pais, parados, apenas observam.