quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Nem Moretti já nos salva.

A filmografia de Moretti organiza-se em grupos de três filmes, depois de dois, e, finalmente, um a um. Voltará a realizar?
Não vi os seus primeiros três filmes, ditos panfletários, "Io Sono un Autarchico", "Ecce Bombo" e "Sogni d'Oro". Diga-se que Moretti, se é muito aplaudido pela Europa fora, em Itália está longe de ser consensual. É visto como um (ex-)esquerdista dogmático filho de uma família bem romana.
Com "Bianca", "La Messa é Finita" e "Palombella Rossa", Moretti cruza os anos oitenta e a progressiva desintegração das certezas da esquerda italiana. Moretti tinha criado nos seus primeiros filmes um alter-ego, Michelle Apicella. Moretti escreve, representa, produz, dirige. Em "Bianca" Michelle é um professor desadaptado numa escola de fantasia chamada Marilyn Monroe. Não consegue encetar uma relação douradoura com as mulheres porque antecipa a mentira e a traição. A vida é incerta e Michelee não aceita isso. Em "La Messa e Finita" o mesmo raciocínio é levado mais além. Moretti foge ao seu alter-ego e faz de padre, "don Giulio", que, após uns tempos numa comunidade afastada volta à sua terra de juventude para constatar que todos os seus amigos "se perderam": separaram-se, tornaram-se violentos e estão presos, enfim, até a sua irmã mudou. Don Giulio não aceita estas mudanças de bom grado e o filme alterna momentos lúdicos com situações de conflito físico. É o primeiro grande filme de Moretti e pô-lo no mapa europeu do cinema. A seguir vem "Palombella Rossa". Moretti foi praticante federado de polo aquático, Este filme é ainda com o alter-ego Michelle e gira à volta de uma piscina onde se joga, metaforicamente, numa partida de polo aquático o futuro da esquerda italiana. É um filme ruidoso, onde todos falam e ninguém ouve, e onde repetidamente se ouve a litania de "Somos iguais, mas somos diferentes! Somos iguais, mas somos diferentes!" Nem sempre há paciência para todo o filme que, literalmente, demora a acabar. Mas a amargura é evidente. Assim como não ser este filme a sequência mais óbvia a seguir a "La Messa é finita".
O próximo filme demorou cinco anos a aparecer. Antes Moretti rodou um documentário sobre a desintegração do PCI. Depois aparecem dois filmes, "Caro Diário" e "Aprile", que colocam Moretti no centro do cinema dos anos 90. São dois filmes onde Moretti já não se chama Michelle mas sim ele-mesmo, "o" Nanni Moretti. "Caro Diario" é uma narrativa em três capítulos da indecisa vida de um realizador de cinema que não se decide a fazer um filme mas sim anda de vespa, viaja de ilha em ilha e, no fim, tem uma doença grave. A política está "escondida", o humor não: Moretti exibe-se e provoca e transforma um argumento aparentemente simples numa comédia refinada, menos truculenta, e onde a singularidade de um autor definitivamente se afirma. Assim aconteceu também em "Aprile": Moretti passa todo o filme a pensar em fazer um filme comprometido, um documentário sobre a "nova esquerda" - o follow up hipotético aquele que realmente ele já tinha feito, mas perde por completo a paciência, parece-me com a Itália. Coisas mais importantes acontecem - um filho, por ex., e termina literalmente a cagar-se para a política e... a Itália? Ficou para a história a imprecação contra uma televisão onde um d'Alema escutava silencioso a Berlusconi: "d'Alema, diz qualquer coisa de esquerda! Diz, diz qualquer coisa ao menos cívica!" Moretti desiste e assume-se como "superior" à pavorosa nova Itália televisiva de Berlusconi. E agora?
Em dezoito anos Moretti ofereceu-nos mais quatro filmes. Mas o Moretti antigo só ofereceu um... e meio.
Em 2001 sai "O Quarto do Filho". Foi Palma de Ouro em Cannes. Neste filme Nanni Moretti é Giovanni e é um pai que perde um filho num acidente de mergulho. Serviu este filme linearmente para que Moretti exorcizasse todo o medo que qualquer pai tem: o de perder um filho sem razão. que sempre o é. O filme é mais palavroso e extrovertido mas anuncia em alguns dos seus mecanismos o "Mia Madre" de 2015, de que já falei. Literalmente percebemos que, embora com um grau de poesia singular, o filme conta-nos uma história que-podia-ter-acontecido-exactamente-assim. Como "Mia Madre" 14 anos depois, com a diferença de neste a mãe de Moretti efectivamente ter falecido. Dizem que em "Mia Madre" Moretti representa o filho que gostaria-de-ter-sido.
Em 2006 sai "Il Caimano". E a política volta à primeira linha. Moretti tem um pequeno papel no filme. Silvio Orlando é um realizador que tem uma vida em torvelinho e que não consegue fazer um filme sobre Berlusconi. Que é, pelo meio, o que Moretti consegue fazer. A crítica à forma directa e obscena como Berlusconi domina o audiovisual italiano está ali. Mas o filme é muito mais e, talvez, seja o retrato mais carinhoso que Moretti faz sobre o "fazer cinema". Com música, coreografias e o romper de todas as ilusões: a nova Itália não é para sonhadores.
Em 2011 sai "Habemus Papam". Michel Picolli é um papa-eleito que tem dúvidas. Moretti o psicanalista que o vai ajudar a decidir. Moretti é, pela última vez, bastante divertido. O filme é uma boa ideia que então pareceu ousada mas que o tempo, Ratzinger e Bergoglio, banalizaram: afinal um Papa resigna e um Papa "novo", ao contrário do do filme de Moretti, não tem dúvidas. A crítica a uma Igreja "esclerosada" já foi ultrapassada pelos eventos. 
Já escrevi que "Mia Madre" "não é" um filme de Moretti. Mas é. Acontece que aquele Moretti que nos invectivava nos anos oitenta e noventa já cá não está. E agora?

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