quinta-feira, 26 de julho de 2018

Do que me lembro da Guiné - sexta e última parte.

 
Era o dia da partida. Não foi por isso que o pequeno-almoço foi mais nervoso. Fomos visitar o Presidente do PAIGC. No quintal da frente da sua casa estacionava uma viatura militar da Ecomib, possivelmente senegaleses, togoleses ou nigerianos. A Ecomib está na Guiné para garantir a paz desde 2012. Também por ali uns quantos elementos da entourage, malta nova e entroncada, alguns deles conhecidos dos nossos anfitriões. O Presidente é do Sporting e sobre a reunião nada mais posso comunicar. Onde para além do Presidente estava a Secretária de Estado da Saúde para tirar apontamentos. No fim de tudo ele confessou-nos que iria viajar connosco também para Lisboa - o seu chefe de segurança tinha um problema cardíaco, em Lisboa saberiam o que fazer com ele. Que engraçado, um chefe de segurança com uma cardiopatia!
Antes tinhamos ido a um coreano tirar fotografias. Para ganharmos direito à volta de ter visto de residentes, mais simples. A entrada amarela da fotografia? É o coreano.
As sedes das delegações do Benfica e do Sporting em Bissau são referências geográficas. O Benfica tem, para além do mais, um bom restaurante, gerido por um senegalês. Ali almoçámos. 
Pela tarde fomos a uma missão entregar encomendas várias e variadas. Uma missão é, entre outras coisas, um espaço ordenado, limpo, e cuidado, o que fora de Bissau é uma excepção, um oásis. O demais também será bom.
Ao fim da tarde o meu amigo oficial da Força Aérea veio entregar-me uma encomenda de camarões pescados horas antes, que viajaram comigo para Portugal - ainda estão no congelador, à espera de uma decisão. 
Tinha chegado a hora de partir. As despedidas fizeram-se no quintal onde as mangas continuavam a cair audivelmente.
Ao sobrevoar Bissau e ao despedir-me (era noite) esta pareceu-me mais iluminada do que à chegada, mas pode ter sido apenas uma impressão minha.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Do que me lembro da Guiné - quinta parte.


E, finalmente, saímos de Bissau. Não posso dizer que Bissau seja uma terra bonita. Terá sido antigamente? Dizer que uma cidade era bonita nos tempos coloniais é, mais do que incorrecto, injusto para os colonizados - faziam eles parte da beleza cénica criada por Portugal? A famosa beleza "português suave" ?
Por outro lado não posso manifestar qualquer opinião sobre os habitantes de Bissau. Caminhei pouco por Bissau. E nós, dois brancos, efectuámos todo e qualquer contacto com a intermediação dos nossos anfitriões, outros dois brancos, estes sim, percebi, bem conhecidos de muita gente. É um elogio a este simpatiquíssimo casal dizer que nunca senti receio. Posto isto, Bissau não me pareceu uma cidade particularmente perigosa.
Saímos de Bissau. Para onde? Se eu soubesse contava. Na estrada, em bom estado, uns mocinhos tinham uma corda estendida para ver se parávamos e dávamos uma ajuda. Não parámos. À volta de Bissau adivinha-se que houve muitos arrozais. Dizem-me que ainda há alguns. Alguns quilómetros andados entramos em terra de monocultura da castanha de caju, actualmente a maior exportação da Guiné.
No meio de uma desolação encontrámos o mais improvável dos resorts. Gerido por um português com sotaque e biótipo alentejano, não consegui perceber como aquelas cabanas tinham qualidades para temperar o calor asfixiante que estava e convencer alguém a nelas ficar. A praia estaria a quilómetros, enfim, eu não sabia onde estava. O que retenho deste almoço? As ostras. Confesso: nunca tinha comido ostras. Noutra vida voltarei à Guiné para voltar a comer aquelas ostras. O peixe depois também foi correcto. Falava-se de negócios, fugas, fronteiras passadas sob ameaça, dinheiro, muito dinheiro. Falavam em português mas era para mim como que uma língua estranha.
A praia ficava uns quilómetros mais à frente. Mais do que uma praia era a curva de um rio. Outro resort, uma esplanada com um avarandado com cheiro antigo, colonial. As instalações um pouco sofridas. Um calor perfeito, uma brisa a pedido, a linda curva de um rio cujo nome nem perguntei. Voltei a arriscar no gelo.
À noite jantamos nas traseiras da casa dos nossos anfitriões, à luz do luar e de uns petromaxes, sem luz e também avariado o gerador da casa. Éramos cubanos, éramos portugueses, éramos guineenses. Irmanados pela boa comida e uma amizade de dias. A guerra voltou à conversa, sempre voltava. Amílcar, e os mais. E a diabetes da decana dos cubanos, que a obrigava a voltar à ilha. A Guiné e a doença não são boas amigas. Fiz boa amizade com um simpatiquíssimo oficial (ex- ?) da Força Aérea da Guiné. Que ajudara os cubanos a fazer, nos anos setenta, a ponte aérea para Angola.

Do que eu me lembro da Guiné - terceira parte.

 
Bissau deve ser das cidades do mundo com mais farmácias. Há centenas. Percebe-se que o mercado é mesmo livre e que na Guiné não haverá nada parecido com o Infarmed a funcionar. Os nossos anfitriões possuem uma farmácia que só importa de Portugal - e que por isso assim se chama, Portugal. Visitei-a. Não conseguia competir em preço com as demais. Várias caixas de medicamentos estavam marcadas. O doente só tivera dinheiro para comprar "x" comprimidos. Quando tivesse mais dinheiro voltaria para comprar mais.
A Faculdade de Medicina fica um pouco desviada do centro de Bissau. Desviada do centro equivale a mais buracos na estrada, muitos. A Faculdade de Medicina é uma oferta e um esforço cubanos. Para a minha segunda palestra fui recebido num auditório pelos alunos e o grosso do corpo docente. A decana mandou levantar os alunos quando entrámos. O respeito cubano é de louvar. Não há hoje cá anfiteatros assim tão atentos, embora o rácio de telemóveis presente fosse similar. Na minha opinião correu bem.
Bissau é atravessada por uma Avenida / Auto-Estrada com aproximadamente duas faixas de rodagem de cada lado e um separador central. Nela circulam predominantemente dezenas e dezenas de táxis azuis e brancos decrépitos. Nela acontecem várias rotundas onde entrar faz lembrar os velhos tempos da Rotunda da Boavista sem semáforos mas melhor, melhor... e atenção que em toda a minha estadia não vi um acidente. Um enorme mercado informal acontece num dos lados desta Avenida, o mercado de Bandim. Que à noite é limpo meticulosamente, o que em Bissau é obra. Para que no dia a seguir tudo volte a acontecer.
Jantámos em casa dos nossos anfitriões, opiparamente. Foi o meu primeiro contacto mas não o último com os camarões da Guiné. No quintal, enquanto a conversa, alumiada por um luar magnífico, se prolongava pela noite dentro, de vez em quando acontecia o som de uma manga a cair.
 


Do que me lembro da Guiné - quarta parte.


Voltei ao hospital Simão Mendes. Quem começou a trabalhar na triagem do São João há trinta anos não se assusta com pouco, menos ainda com o acampamento montado pelos familiares à volta do Hospital. Atrapalham sim as conversas, aperceberes-te da enorme falta de meios, diagnósticos e terapêuticos. Numa parede o quadro hospitalar: o director da Radiologia não é médico. Radiologia, um serviço que faz... radiografias. 
Voltámos ao centro. Aconteceu-nos uma coisa engraçada no caminho: o velho Mercedes onde um jovem e heróico médico (digo-o a sério) nos estava a dar boleia ficou sem gasolina. O ponteiro do nível estava avariado. Conseguiu-se encostar o carro e ali ficámos na famosa avenida central, perto do  mercado de Bandim, onde o nosso atrapalhado motorista foi comprar gasolina. 
O centro de Bissau é a Praça do Império. Sempre terá sido. Agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, uma estrela aposta em cima ao monumento central erguido pelos portugueses ao "esforço da raça". No antigo Palácio do Governo reside o Presidente da República. Ali antes residia o governador português da província. Ardeu na guerra de 98-99, foi reconstruído recentemente com dinheiro chinês. Que um Presidente em teoria sem poderes executivos ocupe o antigo Palácio do Governador pode explicar em parte as últimas décadas da atribulada história guineense. Mais importante do que o Palácio, naquela praça está o Hotel do Império e os seus anexos, o Restaurante Império e a Confeitaria Império - onde se podem comer boas natas. Tem uma esplanada onde a Bissau viva passa e pára. Num canto sentado estava, a consultar um computador portátil e com malta jovem à volta, o cineasta Flora Gomes. Mas fomos outra vez almoçar ao Coimbra. O Hotel Coimbra alberga, para além de um Spa, uma libraria.
O Hotel Coimbra tem um terraço simpatiquíssimo, onde umas caturras não param de assobiar. De vez em quando o meu companheiro de aventura encara-as, sério, e elas calam-se. Assim sabe melhor o gin tónico, com gelo que eu já sei ser de confiança.
Jantámos outra vez, e bem, na Pizzaria Bistro.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Do que eu me lembro da Guiné - segunda parte.


O Hospital Central de Bissau chama-se "Simão Mendes", um enfermeiro herói dos tempos da guerra da independência. O calor era muito. Bissau é um enorme mangueiral com ruas e casas pelo meio. De vez em quando uma manga cai ao chão. O Hospital é uma construção colonial onde foram feitos acrescentos e remendos. Num pavilhão pre-fabricado numa lateral ia eu fazer a minha primeira conferência sobre o AVC.
O ensino médico pré e pós-graduado na Guiné é cubano. Foram os cubanos que me emprestaram o material para fazer a minha apresentação, assistentes os internos das mais diversas especialidades. Que foi feita. Bebendo muita água. Duas coisas apenas: o Simão Mendes não tem um aparelho de TAC. Ele só existe (o único do país) no Hospital Militar e, às vezes, funciona. Outra: o único anti-hipertensor endovenoso disponível chama-se furosemida.
Almoçámos no restaurante do Hotel Coimbra, bem. Arrisquei ao usar gelo local na cola. 
O calor complicava aquela coisa de não expor braços nem pernas porque haverá mosquitos e... Todas as manhãs tomava o meu Malarone religiosamente. Descansámos um pouco no hotel e depois, por questões colaterais que não são aqui chamadas fomos visitar uma casa antiga, abandonada, colonial, que pertencia a um antigo comandante do PAIGC. A guerra, a dura guerra da Guiné, sempre presente. O nosso anfitrião fez a guerra na Guiné e ele e o comandante partilharam memórias bem comuns. Conheciam os mesmos sítios, falaram das mesmas batalhas, paradoxais aliados.
Ainda me foi também apresentado o porto de Bissau. Que vi? Um molhe um pouco maltratado e uma imponente maré vaza sobre a qual pousados estavam vários barcos, à espera que a água voltasse. Acho que só me foi apresentada parte do porto. Ao longe o mangal.
Jantámos uma óptimas entradas e umas excelentes pizzas na Pizzaria Bistro.
 

Do que eu me lembro da Guiné - primeira parte.

 
Um amigo meu convenceu-me a ir - fins de Abril passado - falar sobre a minha área de trabalho à Guiné. Esclareço uma vez só que ao dizer Guiné refiro-me à Guiné-Bissau. E especifico que a minha área de trabalho é o diagnóstico e tratamento agudo do acidente vascular cerebral (AVC).

A ponte aérea da TAP entre o Porto e Lisboa é um atraso de vida. O que é o pior que se pode dizer sobre uma ponte aérea. No dia em que eu devia ir para Bissau perdi a ligação em Lisboa. Providenciaram-me um hotel em Santa Iria da Azóia e bilhete para dois dias depois. Passei a noite a vinte kms de Lisboa e junto a uma churrascaria que reclamava serem os frangos "Virados Para Si!". Ao jantar assisti ao Liverpool-Roma até aos 4-0 e subi para o quarto e para o wifi.
Na manhã a seguir fui apanhar o Alfa Pendular a Lisboa e vim passar o tempo de espera a Serralves. Bem pensado!

Chega-se a Bissau noite fechada. O aeroporto de Bissau chama-se Osvaldo Vieira, um herói da luta pela independência. Tínhamos um simpático casal de portugueses à nossa espera. As formalidades existem e é preciso preencher um formulário onde se estabelece a residência temporária e data previsível da partida. Os vistos já tinha sido tratados. A mala apareceu. Lá fora dezenas de taxistas esperavam pelos potenciais clientes. Havia alguma presença militar. Fomos desviados desta confusão e embarcámos num jeep que foi conduzido pela nossa destemida anfitriã até ao centro de Bissau e ao Hotel Coimbra. O quarto era correcto com um pé direito alto e um WC qb. Ah, e ar condicionado, claro! O gerador do hotel arrancou várias vezes durante a noite e o ar condicionado também.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Zero em Comportamento - uma exposição em Serralves.

Qualquer Museu de Arte arrisca-se a ser um Museu da História da Arte ao invocar sempre o passado para construir uma exposição no presente. "Zéro de Conduite" é uma média metragem de Jean Vigo de 1933, autobiográfica qb. Nela o realizador, usando uma forma cinematográfica inovadora, filma a revolta de um internato de jovens. Anos trinta...

No texto de introdução fala-se de irreverência, desrespeito, etc. Contra a Escola, contra o Museu. Mas nesta exposição as peças não são para tocar, os vigilantes vigiam. Um vídeo fala-nos do record da visita mais rápida ao Louvre, feita sobre patins, nove minutos e algo. Não vi  ninguém a patinar na exposição de Serralves. No mesmo vídeo aparecem as imagens dos protagonistas de "Ferrybueller's Day Off" a visitar alegremente o Art Institute of Chicago. John Hugues um revolucionário?

Vejamos bem: onde está a escola retratada por Vigo? Morta e enterrada. Sou velho quanto baste para ter vivido ainda os tempos do castigo corporal na escola portuguesa. Outras rebeldias aparecem, nos materiais usados, nas atitudes anti-artísticas, etc. Há o desperdício absoluto de um Jaguar dos antigos quase completamente destruido. E depois aparecem a mulher e o sexo. When porn is the new normal, tudo o que aparece, incluindo os testículos manipulados de Bruce Nauman, parece datado. E umas peças de auto-estimulação feminina serão, acho, perfeitamente incapazes de atingir o prometido pelo título: "The Pleasure Is All Mine". Não, Patrícia? Embora a emancipação sexual feminina ainda hoje seja um tema MUITO actual.

A sala principal tem um gradeado, umas jaulas, que ampliam a lógica da exposição. Circulamos a ver as peças com se numa prisão, mas com as portas abertas... 
No corredor aparece o importante "El Pasamanos" de Juan Muñoz, que há anos nos (eu estava com a Catarina) foi "explicado" por um vigilante na primeira versão do Espaço Axa nos Aliados. Um canivete oculto colado a um corrimão é um engano intemporal, uma traição. Não uma rebeldia.

Arte actual? Gostei de uma instalação de vídeo onde um homem com dois sacos pendurados das mãos impede o caminho a uns carrinhos de supermercado, imitando o herói de Tiananmen. 
Arte de hoje? Uma peça sobressaiu sobre as demais: "Liberté, Egalité, Beyoncé": em letras douradas sobre fundo escuro estas palavras estavam escritas, com um vídeo abaixo à direita onde uma jovem nos mostra a língua. Isto e a referência a "Ferrybueller's..." ficou-me.

A Revolução só tem sentido se criar Esperança. Como a que eu senti quando um vigilante me chamou à atenção, educadamente, para o "El Pasamanos" de Juan Muñoz, há meia dúzia de anos.