domingo, 31 de dezembro de 2017

E já que passei pelo Bunheiro.

Hoje decidi abordar Ovar pelo sul, ou melhor, pelo ocidente. Passei pelo centro de Estarreja - bem menos destruído que o de Ovar, pareceu-me - e fui raspar a Murtosa. Não sou um homem do norte. Dai-me um campo verde, húmido, liso e eu fico em paz. Assim os campos do Bunheiro até chegarmos à ponte da Varela, de um verde limpo, plano, liso, brilhado pelo sol poente. Ouvíamos Kings of Convenience, o que também ajuda. A corcova da ponte da Varela, subindo, permite-nos ver, à esquerda, à direita, a Ria. Ou seja, a água do paraíso, se há um onde. Havia a melhor das companhias. E há um plano. É mister executá-lo.

2017.

Ontem colhi uma camélia, roubei-a na minha rua, para ser mais exacto. E dei uma broa de avintes que me tinha sido oferecida no dia anterior, um paladar muito forte para este filho único. Camélias e broa de avintes. Eis um ano. E vou andando. Ou seja, sei por onde ando e para onde vou.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Entrem bem. Mas atentos.

Há dias passei pela paroquial da Boavista e havia um rapaz novo a arrumar carros, cuspindo para o chão, o bigode ainda ralo, uma penugem.
Lembrei-me então de que falta ainda muito por fazer.


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

E com uns quantos poetas já passei dos cem! Cento e quatro, sejamos precisos!

Entramos nos autores nascidos nos anos 50. A entronização destes nomes está aqui ou ali por acontecer, por isso posso ser completamente discricionário. Por outro lado a má-língua poética diz "os setenta foram piores que os sessenta e os oitenta piores que os setenta", portanto, é aproveitar. Paradoxalmente os nomes abundam, a grelha do tempo em parte ainda por acontecer. E já passámos os cem!



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EMANUEL JORGE BOTELHO (1950- )

Açoriano oriental (da Ponta Delgada), diz que não há uma literatura açoriana nem gosta de falar nem escrever sobre o mar. A "Sião" descreveu-o como "escravo de uma profissão". Ele, entrevistado, disse que gostou muito de ser professor até que a doença - costuma ser o coração - o reformou. Vive ancorado portanto na sua terra natal, sem mais.


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DIAGNÓSTICO DO SÍTIO
POR QUEM ESTÁ NO LUGAR


dêem-me um muito longe que não arda.
mascar vidro não é profissão, dizem-me, 
nem deixa que o amor da morte me leve
para perto da lisura do vinho.

embora não me vou,
e se for irei ficando,
sem oiro no rosto
nem coice que  me peça cicatriz.
fico.
ato o amanhã no dedo de pescar
e saco-lhe a guelra quando picar
o calendário. 

não tenho tempo.
eles não sabem onde estou
e só por isso não me mato. 
quero deixar um açoite armadilhado,
antes que a data prima
a leveza do gatilho. 

fico. 
fico com um pão a morrer no bolso
e os lábios secos de nomes
para dar a cada dia. 

que horas são, meu amor?
a que horas chega a hora certa?



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ROSA ALICE BRANCO (1950- )

Nasceu em Aveiro e dá aulas em Matosinhos. De alguma forma rodeia-me. Acho o seu site virtual soletrarodia.com demasiado opulento, com aquela fotografia onde aparece ela apoida nuns livros onde o primeiro é um "Portugueses Célebres" virado ao contrário... A sua poesia, porém, é muito boa, e parece ter muita saída lá fora. A cólera (real?) faz-lhe bem.


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ANIMAIS DA TERRA


O caracol avança tenazmente
para que o tempo erga o seu império com o visco
que alastra pelo solo. E se nasce uma árvore,
é pela resina que a morte se infiltra
na candura dos animais, na sua sombra.
Eles ignoram que as antenas do caracol
prevêem cada naufrágio antes do nevoeiro
sobrevoar as ilhas e morrem com os olhos,
o corpo ainda a contorcer-se nos ramos.
Os animais vêem para dentro.
Vivem até ao último coágulo e depois a seiva
da árvore esbanja-se sob o manto da terra
a animar as partículas ínfimas em que se tornaram.
As almas descem. É por isso que o mundo não acaba.



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FERNANDO GUERREIRO (1950- )

A cara simpática que aparece no citador.pt promete outra pessoa. Investigador e académico, mereceu poema na Antologia "Século de Ouro", com um gordo ensaio anexo onde é definito como "poeta, ensaísta, professor, editor, comunista". Prefiro o poema abaixo. Estuda também cinema o que é bom.

 
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RETÓRICA DA PAISAGEM


O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos 
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo? 
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem 
de cestos em que se recolham - dilatados, quase 
a cair das árvores - os frutos. E contudo, continuamos 
a confundir os caminhos do poema com os do mundo 
quando eles, na natureza, apenas nos apontam 
a incerteza do destino. As palavras repetem-se - 
frutos atirados sobre a mesa - e a morte, 
para quem não acredita no poder de transfiguração 
das metáforas, esgota da vida todo o sentido. 
Diz-se: os ramos não crescem no quadro, 
os pássaros deixam de assolar a paisagem - 
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela 
pejada dos restos em que se perdeu pelo 
horizonte. Mas todo o conhecimento 
acaba no ponto em que o voo se 
confunde com a linha acidentada da planície. 



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LUÍS FILIPE CASTRO MENDES (1950- )

É o actual Ministro da Cultura. A sua poesia vive nas formas mais tradicionais. E, ás vezes, sobrevive a isso da melhor forma.

 
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POEMA


para a Graça


 
A falta de ti.
O coração procura o mais fundo da terra.
O mar e a infância tecem
uma aliança acerada contra
a vida. A vida imediata.

Só o teu riso dura. Mostrei-te o mar.
Mostrei-to antes e depois de morreres. 


 
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HELGA MOREIRA (1950- )


Tenho a sorte de possuir o livro seu que é mais citado: "Tumulto" de 2003, na & etc. No ano anterior tinha publicado na Quasi, o que me atrapalha. Atrapalha-me mais ainda que críticas a este livro apareçam na badana de "Tumulto". Que promiscuidade. Poesia óptima.


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Como já disse, toda ouvidos sou.
Embaraçada docemente com a vossa atenção.
Entrem por favor, não façam cerimónia.
Que a dor é recente, eu sei

se transmigra, ou por vezes persiste
fecho janelas, portas e não a qualquer
chamada responderei. 
Mas perplexa ainda sou.

Entrem, meus amigos,
sem cerimónia.
Se fujo é apenas à memória

contriste ou alegre
misto de coisa abstracta
ou conforme



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CARLOS POÇAS FALCÃO (1951- )

Advogado de formação, vimaranense, dá aulas na Francisco de Holanda. A edição da sua obra completa "Arte Nenhuma" deu-lhe maior visibilidade. A poesia mais recente é bem menos efusiva mas igualmente certeira. Dos poetas que começaram a publicar nos oitenta talvez aquele que mais certeiramente ficará?


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Em linguagem clara o abandono é o amor.
Quando a hora chega e o tempo se consuma
as mãos podem estar tranquilas
que o olhar vê tudo bem e o coração desprende

a nuvem exaltada. Disto muitos querem prova.
Estende-lhes a taça para sua provação
pois só quem faz a prova conhece este sabor.

Abelha no açúcar e ave no pomar
som inicial duma canção fraterna
noite que ascende a uma estação mais pura
- ah, como escandaliza aquele que não ama
ver o amor provado do que todo se abandona!



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MANUEL FERNANDO GONÇALVES (1951- )


Bragantino. Que tenha um livro publicado na & etc chamado "Fechamos a Alma, ao Fim da Tarde, com Estrondo e Animação", diz muito. Não acredita muito em si nem em ninguém e na realidade em quase nada. Frequenta as editoras certas e elas fazem bem em deixarem-se frequentar por este homem.


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INSTAMATIC


Achei graça a isto de ir
tomando notas, pelos sítios
ao acaso, e cafés. Não às notas
que essas seriam sempre
marcadas na pele, como tatuagens,
se os filtros, digamos dos olhos, 
deixassem. Não! Acho graça
aos lugares indiscriminados
da cidade por onde se passa levado
pelo dedo arbitrário, pelo destino
tecnocrático de pedir, aqui 
e não em outro terraço, nesta sala
quase ao lado de outro cinema
qualquer, um café cheio, água
fresca, como se pudesse iluminar
o instante para o crime
do olhar. Assim se escrevem
alguns poemas, já que perguntas
e o difícil é manter o foco
ou julgas que a vida
é um romance?



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ISABEL DE SÁ (1951- )

Olha, nasceu em Esmoriz. Também é artista plástica. Poesia de muito precipício e sua vertigem.  A morte, o corpo, a infância, etc. Às vezes conseguindo o equilíbrio adequado. Notoriedade nos anos oitenta que hoje vive um certo refluxo.


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DEIXEI O POEMA


        Deixei o poema na folha dobrada, gastei o tempo a ver o desejo nos teus olhos sabendo que este instante ilude a morte.
        Entre os lábios fendidos a língua acaricia. Soltas um gemido, quero que grites, que o grito acompanhe o tremor do corpo e tome conta do rosto inteiro. Fechas os olhos e a poalha espalha-se até aos ombros. A força das palavras, o poder infernal do amor. Disponho deste corpo que convida à violação.



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JOSÉ CARLOS SOARES (1951- )

Um leceiro discreto. Poesia já sinalizada na "Sião", continua a produzir poemas pequenos, que se localizam "do lado de fora" da vida (assim se chama um dos seus livros), ou não, ou talvez apenas existam a sinalizar como o coração é pequeno mas está.


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Não te aproximes tanto
de uma alma em cinzas. Apenas
arde

ou dá-me
do sol estrelas, escuros
fragmentos da mansidão. So tired

of dying
digo, baixinho, amo-te. Digo-o
pela tua boca.



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R. LINO (1952- )

Nasceu em Évora e a planície, as coisas, os espaços, aparecem muito na sua poesia, noemadamente a dos anos oitenta onde esta poesia (sim, o R. é feminino) ganhou notoriedade. Depois desapareceu da escrita publicada uns vinte anos, voltou. 


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Tenho de construir hoje esta planície.
Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.



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JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA (1952- )

É ou foi cardiologista no Santa Maria. Poesia "inglesa", dizem, ou seja, comedida, de pequenos abalos telúricos no virar da esquina. Sempre acrescenta, frequentes vezes eleva.


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        PITÁGORAS não gostava de cavalos. Vá-se lá saber porquê. Talvez algum tivesse tentado mordê-lo, ou acertado um coice, quando ele era criança.
        Os cavalos fazem aqueles esgares, que parece que estão a rir de nós. Mas não estão - nem sequer de Pitágoras, que eles não conhecem. Estão a rir-se uns dos outros.
        Ainda agora, um cavalo dizia para a mulher: "Olha-me ali para aqueles cavalos, a fazer caretas, que parece que estão a rir. Que imbecis! Depois espantam-se que aquele outro - nunca me lembro do nome dele, o grego, arquitecto ou o que era - difamasse os cavalos."
        "E Mafoma amaldicoou o toucinho" - respondeu a mulher.
        O cavalo começou a palitar os dentes e a discussão ficou por ali.



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RUI BAIÃO (1953- )


O que fazer com Rui Baião? O "terceiro elemento" da "Sião", continua a publicar poesia adusta e impermeável. Não toma prisioneiros, não atira para as pernas. O Rui Baião não gosta de nós. 


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Outra maneira de ser: um homem
de facto, às riscas. Um vulto
com sintomas às costas,
no lodo da fala, uma pausa
turva, de homem
conforme o ódio. Moribundo
que escolha, o início a nada,
o cio a perdas e danos,
uma vida negada, repleta
de segundas intenções.



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AMADEU BAPTISTA (1953- )

Poeta convulso nascido no Porto, tem obra muito extensa de que pessoalmente destaco "O Ano da Morte de José Saramago". Nesse livro está uma frase que já usei em diapositivos: "A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder à esperança dos seus habitantes". Publicado em 2010, o momento era o certo. Escreve comprido e nem sempre exacto mas tem exaltações e indignações muito dignas de serem lidas. Foi comentada a fase em que, desempregado, ganhava prémios literários em série. Compararam-no por isso ao José Jorge Letria. Meu Deus...


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2008


(para o Baptista Bastos)


Sou um homem do norte e um homem do norte
continuarei a ser até que a morte me separe.
As minhas circunstâncias são exactamente
as mesmas circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas
a granito, os vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a que possam
subir para começar uma aventura
que não tenha fim. Na minha memória
o que está mais marcadamente aceso
tem a ver com o mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo choques inimagináveis,
com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia permanente por não haver
o que dar de comer a velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir para os braços de alguém
que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,
como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para celebrar.
A vida era dura nesse tempo,
que eu fui vigiando quase por instinto,
fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro, consolidam, sem mais,
o que passaram a saber, porque o sofreram.
A vida era dura nesse tempo, sobretudo
para quem me estava próximo
e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em estoicismo feroz,
capaz, se necessário, de abalar montanhas.
Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,
andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos meus progenitores.
Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum
–  por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo
ou o alento que alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a infância, a minha infância,
me entregou ao duro acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.
E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para me dar,
além da sua eterna progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu encantamento.
Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado, falava-me das flores –  as brancas, as vermelhas –,
falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não, a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi que há,
entre os vários planos em que existimos,
outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho ao desacato
das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva pela vida circundante.
Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba e exaltante,
tanto mais que sempre quis ser poeta,
e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção vier e a deslembrança
tiver que ser a última recompensa.
Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,
a constatar como na alma os passos se abismam
se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi que a enxertia resultava
em algo mais sensível do que alguma vez supus,
sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita e bravia,
se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em multidões inúmeras,
com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,
e das palavras tomei o que podia para encontrar
o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa e obscura,
que sabemos e não sabemos como existe,
mas sentimos na alma e no espírito,
e nos enche o olhar como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não, interessa pouco.
O que escrevo é só um tempo breve,
em que os mortos e os vivos se procuram
para que haja testemunho e não seja longa a espera
do fim que há em tudo. Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça o que é o norte,
e onde fica.



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PAULO DA COSTA DOMINGOS (1953- )

O artesão que é a Frenesi e que é o "irmão do meio" na antologia Sião. Das suas mão não sai livro feio. E edita Fialho de Almeida. Poesia libertária sempre, sendo o privilégio para aquilo que se quer dizer, que habitualmente é contar. Por outra forma já ele ajustou as contas, dando a sua versão numa espécie de autobiografia, "Narrativa". 


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EM VOGA


Um escritor cheio
de ferragem e tatuagem,
como um escravo, besta
de carga. Admira como não
cravaram ainda cravos
na palmilha de seu pé e não
lhe bolearam o casco...

Pedia você para o beijar
e festejar, e eu só dei
com penduricalhos
e a repulsa do papiro
engelhando os tempos
modernos sobre seu
estigmatizado corpo.



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O

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Mais uns quantos a perfazer... 90!

E aqui estamos nas margens dos setenta ou na transição para os oitenta. Ocultos ou desocultos, estes poetas são ilhas. Agora é que de uma vez por todas não há correres paralelos. Estejamos atentos. Mais dez.



JOSÉ AMARO DIONÍSIO (1947- )

É ou foi repórter e a referência iterada que aparece na internet a ter sido "sucessivamente expulso dos media onde foi passando" será apenas uma boutade que resulta da preguiça do copy and paste. Publica aqui e ali, pequenos textos, apontamentos, coisas. Notas sobre um real destruído que alguém devia fotografar. E ele assim o faz, com filtros.


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sequência 18


Porque foi na manhã dessa viagem que encontrei Muriel, a camponesa de Suzet. As maçãs vermelhas do rosto mas sobretudo a harmonia do que diz. Por exemplo: se quiseres descer em Toulouse ficas em minha casa. E de como crescem os animais ou se fabrica o pão.
- Tudo começa a ser fácil quando compreendes que acabarás por ficar só - murmura. - E compreendes isso mais dia menos dia.



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RUI NUNES (1947- )

Aparte uma edição de autor começou a publicar nos anos setenta e a sua obra, extensa, reparte-se entre a poesia e a prosa, um pouco mais esta, com reconhecimento crescente. Viverá entre Portugal e a Áustria, o que tem lógica, dado que a dor, o desamparo e a morte são temas seus recorrentes e o país do "Sul Germânico" já morreu há muito, esqueceram-se é de o avisar. Terá ou não deixado de escrever, porque invisual ou quase, ou seja, de vez em quando recomeça, com a ajuda de quem lhe leia o que escreve.


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vésperas portuguesas


o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante

no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências



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JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948- )

Outro madeirense. Escritor que apareceu em 76 mas que foi ganhando corpo e projecção apenas a pouco e pouco. Escreve comprido, ele há poemas que são livros. Tem tendência para o excesso e o emocionalismo. Nos tempos que correm isso é benvindo, não tenhamos dúvidas!


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(...)


Oh, prodígio dos prodígios, o leão, o tigre, os rapazes.
E eles voavam, os irmãos do sul,
esses anjos perdidos na tenda das assombrações.
Ao fundo era a morte. E pela morte tu crescias.

Cala um quadro assim,
o rumor dos dedos, dos seus prateados anéis, de alguns
pincéis.
Um sarcofago os há-de conter, um adeus santificado sobre
 o talento dos aflitos, dos malditos.

Sim, os amigos partem, elegem os covis, e o lobo espreita
com o metal das suas garras.
Desapaixonados lugares para onde eles partem, os amigos,
e devagar se apagam,
frente aos ecrãs.

Ausente, gerando a ausência.

E os filhos, esfinges de sombra na sombra dos
recifes?
Leve lhes seja a terra, as terras.

Ilumina-os com a tua luz púrpura, essa lâmpada,
essa roseira derramada, oculta.

Derrama-te, coração maior do sacrifício.
Coração profundo.

Centro do mundo.
Princípio e fim.



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AL BERTO (1948-1997)

Saiu recentemente um filme sobre os primeiros tempos de Al Berto em Sines. Tempos selvagens, tempos "solares". Antes tinha sido a Bélgica (deve ser dos melhores lugares para uma pessoa exilar-se). Depois veio o "Lunário", isto é, Lisboa. Conheço quem me tenha dito "Vi o Al Berto escrever este poema!" A viagem terminou com um linfoma aos 49 anos. A Al Berto devo a palavra "Salsugem" e o livro "Três Cartas da Memória das Índias". Antes os livros do Al Berto eram brancos e editados pela Contexto. Depois veio a fotografia do Nozolino e "O Medo". O poema abaixo foi escrito para o João Maria?


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CARTA DA FLOR DO SOL


3


(a meu amigo)


Há ainda outra árvore de natureza mui singular, chamada irudemaus, que em sua língua significa flor do sol, porque as suas flores não abrem nem aparecem nunca senão ao nascer do sol, e caem quando ele se pões; o que é o contrário da árvore triste. É a mais excelente flor, lança melhor cheiro que todas as outras; e da qual fazem ordinariamente uso o rei e as rainhas.

Viagem de Francisco Pyrard de Laval: TRADUÇÃO E DESCRIÇÃO DOS ANIMAIS, ÁRVORES E FRUTOS DAS ÍNDIAS ORIENTAIS


vou partir
como se fosses tu que me abandonasses

o último sonho que tive era estranho
via o fundo límpido de uma rua estreita
que desembocava num largo iluminado
havia leões empalhados nos passeios em areia solta
já não me lembro bem
parece que uma mulher avançava com um envelope na mão
estendia-mo e gritava
mas eu não conseguia perceber
insultava-me muito provavelmente
tinha a cara escondida por um pano branco bordado
apenas via a sua enorme boca abrir-se
e furiosamente engolir a púrpura do ar
que envolvia as cabeças reclinadas dos leões
ouvia o buzinar nervoso dos carros
exactamente como se ouvem agora
mas não conseguia vê-los
depois
um rapaz apareceu a uma esquina e reconhecia-te
uma voz gravada na memória acompanhava-nos
quando nos dirigimos um para o outro
em câmara lenta
ouvíamo-la sussurrar: procuro-te
no interior das penumbras no esquecido sal
das casas abandonadas à beira-mar
procuro-te no perfume excessivo do mel
armazenado pelas abelhas no entardecer das pálpebras
vem
mergulha as mãos nos troncos das árvores
suspende a noite da longa viagem
estás a naufragar
o espelho quebrou-se e tu já não reconheces as paisagens
o corpo estilhaçou-se

tua presença só é visível nas fotografias dos barcos
as quilhas são a tua memória longínqua das Índias
vai
com os pássaros de bicos exuberantes e sonha
e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca
onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas
a cidade espera-te com o cais de madeira
junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios
agarra-os dentro de ti
até que da terra lodosa brotem especiarias
porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade
só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade
inundando um breve instante a noite de nossos desastres
só longe daqui
terás a consciência da quotidiana morte de Deus

repentinamente a voz cessou de se ouvir
eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais
depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas
pelas amarras húmidas dos lençóis rotos
barcos
velas sem sol papel pintado deslocando-se das paredes
silêncio espesso sarro da noite
uma viatura boceja no asfalto
o corpo treme cintila
resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches
buenas noches mi amor
lençóis floridos ranho cabeças de cafres
pingue-pingue de torneira avariada esferas de flipper
noches buenas noches
barcos despedaçados bolor da memória
da memória da memória da memória

tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou
a mulher ria
eu corria para ti sem conseguir alcançar-te
sentei-me na cama
veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos
resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta

lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostado ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia a mão nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulavas para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados

escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio de vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite de teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te porque parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr pela rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer
como quando me tocaste a testa e eu não pude reconhecer-te
apesar de tudo senti a mão sabia que era a tua mão
mas não podia reconhecer-te
sim
correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses
mesmo que nem me olhasses
mesmo que dissesses coisas que me
mesmo que
e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me

correr a cidade com o corpo sedento
noite esgravatando a pele
bebendo nas veias as poucas forças que me restam
uma lâmina pelos sonâmbulos asfaltos
onde morrem ambíguos nomes de corpos sem sexo
o veneno agindo dos pés à cabeça
as mãos encharcadas de chuva tacteando um sexo qualquer
o sangue a chuva a memória desses dias tão difíceis
a noite a lambuzar com violência os rostos magoados
visões de sonhos ainda não sonhados
dilaceradas imagens de bocas coroadas por flores de aço afiado
ouço outra vez uma voz e agora não estou a sonhar
mas a escrever-te
e ouço-a em mim como se estivesse gravada
e a fita do gravador gasta pelo uso: a tua vida
será feita de embarcações e de solidão
beberás a secura dos cabos distantes
conhecerás ilhas de saliva profunda
olhar-te-ás nas fotografias
que as unhas aceradas do tempo arranharam
e para lá dessas imagens envelhecidas tudo sangra e dói
a tua infância a tua adolescência e o medo
de não conseguires sobreviver ao estrume deste país

avançarás pelo mar dentro
ferido por outros naufrágios imperceptíveis
descansarás
nas areias aveludadas da foz dalgum rio sagrado
e quando o mar se retirar
o sol a lua virão tatuar sobre o ombro
a silhueta viva dum bicho estelar
e a memória
essa parte calcinada da vida começará a doer e a latejar

navegarás pela cidade que adere aos dedos
como sarna mais antiga navegarás
com o escorbuto no coração transportarás o silêncio
e a escrita na fragilidade dos pulsos acorda
onde cintila a faca acorda
acorda o mar
está próximo o mar acorda
o mar acorda o mar acorda o mar
o mar

na gaveta onde o bolor cobriu a roupa guardo as fotografias
reparo como amareleceram suavemente os rostos
as mãos que seguram ramos de flores os cabelos os olhos
exala-se deles uma leve doçura cor de sépia
foram perdendo a definição esfumaram-se os contornos
numa das fotografias tens vestida a camisa de riscas azuis
noutras sorris olhas-me nos olhos
mas aquele sorriso não é o que ainda ontem te vi esboçar
o sorriso que tens na fotografia morreu
e no entanto está ali e fico perturbado quando o vejo
eu sei que nada está vivo na fotografia ou se repetirá
aqueles sorrisos aqueles instantes para sempre perdidos
a camisa às riscas votada à degradação lenta do papel
acabei por destruir as fotografias queimei-as
para que ninguém possa supor através delas
histórias a nosso respeito
e também para que minha mulher as não encontre

a única coisa que levo comigo é a cápsula de laranjada
atada a um cordão em couro deste-ma tu um domingo
quando ainda passávamos perto do rio
íamos ver o sol morrer nas águas
caminhávamos sem destino pela cidade
o crepúsculo atingia-nos com misteriosos desejos
seria inútil falar das razões da minha viagem
no fundo nada a justifica
embora a minha vida ultimamente seja um barco sem rumo
de vaga em vaga de ressaca em ressaca
fui arrastando o meu próprio naufrágio
mas ser-me-ia difícil falar-te destas catástrofes
prefiro calar-me para sempre ou enlouquecer
ou avivar a memória de certas visões aciduladas
enquanto te escrevo esta última carta
é também a última vez que penso em ti
sempre habitei este país de água por engano
estas planícies asfaltadas pelo tédio estes prédios de urina
estas paredes vomitadas
onde as diáfanas aves da solidão embatem e definham
deixam cair dos bicos fios de sangue e de cuspo que te evocam
vou migrando de corpo para corpo
sem nunca conseguir definir o voo complexo do meu
escrevo-te ainda lúcido
no entanto ignoro se chegarei vivo ao fim da noite
quem poderá afirmar que daqui a instantes
não atravessarei os espelhos impossíveis da noite?
ferindo o corpo rasgando borboletas de luz
no écran da cidade amanhecendo em mim
esqueço como me chamo
e tenho a certeza de que nunca mais nos veremos
mesmo no caso de eu permanecer aqui
neste país de água por engano
descobri que a morte calça o mesmo número de sapatos que eu

sabes
por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mão da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo
ah meu amigo
estou definitivamente só
estou preparado para o grande isolamento da noite
para o eterno anonimato da morte
mas perdi o medo
a loucura assola-me
preparo a última viagem às Índias imaginadas
disseram-me que só ali se pode descansar da vida
e da morte
perscruto a razão profunda desta viagem
ou talvez seja já a torna-viagem o que vislumbro
e não valha a pena partir porque já estou de volta
sem o saber
hesito em deixar-te escrito mais do que um simples adeus
de qualquer maneira por muito longe que me encontre
se pousares a tua mão sobre a minha testa senti-lo-ei
esse gesto aliviar-me-á de todas as dores
a manhã aproxima-se cortante
ouço barcos largarem do cais
preparo a lâmina
estendo velas em agonia uma lâmina de vidro
para fender as águas imperturbáveis do dia sem bússola
destruo cartas papéis manuscritos outros sinais
destruo imagens que me chamam e me querem reter aqui
releio estas poucas palavras para ti: child of the moon
debaixo das cerejeiras uma serpente antiga adormeceu
em tuas mãos de pétalas lunares
movem-se astros em cima da alba da pele
olharemos os insectos perfurarem a treva da noite
e tecerem claridades
mas já não tínhamos mais noite a desvendar
lembro-me
a cidade está cada vez mais rente à nossa separação
caminhamos em direcções opostas
ou melhor
eu caminho enquanto tu não existes
a noite aproxima-se com seus territórios de sombra e fábula
areias penumbras oscilantes apagando resíduos de corpos
teu corpo minúsculo arrefece dentro de mim
quando as feras despertam nos olhos abandono-me
à lama colorida dos terrenos vagos
dói-me a voz ao chegar aos lábios
os dedos penetram o metal cintilam
conchas abertas ao sonho
onde terei abandonado a nossa paixão?

um cristal flutua no enxofre de remotas cidades
compridos cabelos de jade espalham-se sobre o rosto
indecifráveis vegetações
o sonho torna-se exótico quando abres os braços
surgem nas pálpebras caudalosos rios
neles pouso a cabeça deixo-a flutuar
uma mulher anda aos ziguezagues pelos corredores da casa
vejo peças de vestuário espalhadas pelo chão
a mulher grita
corre à roda do quarto insulta os electrodomésticos
abre o frigorífico
atira com os legumes congelados ao chão espezinha-os
esborracha-os contra a parede chora
ri pega numa camisa de riscas e rasga-a em mil tiras
recomeça a correr
entra na casa de banho e abre todas as torneiras
abre as janelas e ri
e lambe as vidraças sujas
derrama açúcar dentro do telefone
e por cima das petúnias de plástico fluorescente urina
mas tudo isto se passou há muito tempo noutro lugar
noutro corpo

viro-me para o sul de nossos corpos e descubro uma ilha
percorro demoradas estradas de tabaco e o ouro envelhecido
dos caminhos alquímicos desvendo
os sinuosos mistérios da seda e da pimenta as grandes rotas
do vento bebo o amargor da vida errante
onde uma mulher dorme sossegada sobre a cama desfeita
o telefone toca obsessivamente toca
um corpo translúcido surge do papel em que te escrevo

revela-se-me a água dos gritos repetidos
um foco de luz incide-me sobre a boca fechada
procuro-me na silenciosa cinza de tua memória
pela casa atravessada de ecos de fogos postos respiro
dificilmente ouço zumbidos de flipper
o quarto povoa-se de rostos alados mecânicos olhares
pequenas garras de ar
desfazem-se em finos cordéis de terra
a mulher avança sob o peso da tempestade
aqui esta sempre a chover
o frasco de barbitúricos conta-me o falhado suicídio
a mulher tem o teu rosto ou o meu já não sei
a luz percorre-te o corpo nu
é noite há muito tempo
fixo um ponto invisível da parede estou sentado na cama
escrevo-te
e tenho a certeza de que ninguém será capaz
de roubar a minha morte
porque eu moro neste país líquido por engano
e tenho dificuldade em imaginar o sono fora de meu corpo
se quiseres vem dormir perto de mim vem
sonharemos um país fabuloso junto ao coração das árvores
vem
antes que trema o corpo no frio sem deuses e na loucura

quase amanhece
lá fora as avenidas mantêm-se vazias
subúrbios sonolentos no refrão dum brutal rock'nd roll
vicious you are so vicious
baunilha azul nos lábios orgasmo de baunilha
tarzan de pastelaria um cigarro de chocolate come
chocolates come sentado no cimo do ice cream toute la nuit
fuck fuck
fuck em diferido
os eléctricos já passaram e as mãos já não são as minhas
têm sede
sede de nudez
mas vou partir deixar-te aí
como se fosses tu que me abandonasses
viajar antes da alba partir
para longe deste inúteis dias
eu
pobre de mim
navegador da noite próxima da morte
vou acendendo no sangue os sonhos dum povo que não sonha
eu
arquipélago de cinzas oceano do nada
vou de veias inchadas e penso que talvez não valha a pena
mas vou
preciso encontrar o lugar certo para o nosso amor
queres vir comigo?
já avisto da gávea inquietantes iluminuras de rostos de afogados
mãos antigas como rochedos peixes fantásticos
bocas aflitas e tua boca mordendo
o cordame avariado pelo sal
ah meu amigo
eis o sofrimento de meus lábios gretados pelo sarro oceânico
eis minhas unhas doentes protegendo o sexo aberto
às monções aos ventos adversos às vagas rumorosas

vou abandonar-te no lado claro da noite
onde o tempo é um fio de luz rasgando a espessura do corpo
vou partir
com estas manchas de frutos sorvados no coração
para sempre vagamundo
no corredor de espelhos sem tempo deixo-te o sonho
onde já não arde nenhum rosto nenhum nome
nenhuma voz de silente treva
nenhum paixão

abandono-te para além da linha nítida da manhã
onde dizem que tudo existe se transforma e continua vivo
longe
muito longe desta inocente memória das Índias



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JOSÉ EMÍLIO-NELSON (1948- )

Que em Espinho,  a mais arrumada das terras tenha nascido tal poeta, dá que pensar! O seu segundo livro saiu em 1980 e chama-se "Pénis, pénis.". I rest my case.


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PEDRAS NOCTURNAS E DIURNAS


Não se pede segredos a uma pedra. Diz-se à criança: - Fica muda, de pedra.
Sempre houve pedras mais pedras que outras que são preciosas, pedras que se tingem das cores que assombram. Pedras que dão sombras para adormecer. Pedras que de noite se escondem no ar, assustam. Pedras que cortam árvores e outras que adormecem a seus pés, lembram rebanhos curvados. Há pedras que estão de cabeça levantada à espera da mão de Deus?
Todas as pedras deambulam. Evadem-se. Os ventos do céu sabem disso. Na montanha a voz das pedras sente-se pesada. (A montanha escoou-se entoando a pedra.)
- Estrondosa, diz-se à criança. Sacodem o silêncio que abriga sementes e as revestia. Belos animais pardos e luzidios com quem falamos. Nocturnos e diurnos, dentro e fora da terra. Pedras nos compêndios escolares e à chuva com fastidiosa passividade. Pedras com cabeça de nuvens. E pedras no bolsito da criança.
Há a pedra sombreada enquanto a Lua parece a pedra do céu. Há a que retém lágrimas demais, se se quiser, orvalho, por ser triste pela manhã. Há pedras alegres que são espelhos as mais das vezes. Abrem-se e a criança entra nas portas encerradas.



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RUI DINIZ (1949- )

Publicou "Ossuário (ou: A vida de James Whistler)" em 77 na & Etc e depois desapareceu. Percebi que vive em Eaton, dizem. Eaton County, Michigan? O livro em questão é considerado uma referência do fim dos nossos anos setenta poéticos. O seu "romanesco" explica-o.


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OS ANOS DE TRANSIÇÃO - UMA CANÇÃO DE EXÍLIO


Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que só se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para  tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera  e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café de Versailles,
tomei um whisky com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.



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JORGE FALLORCA (1949- )

Quando o encontro a primeira palavra aposta é "radialista", e é verdade que o nome lembra-me, acho, a antiga Comercial. Espantei-me por aparecer na Antologia "Sião" mas eu então era muito novo. Hoje sei mais...


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RUA


A minha rua era uma estrada, e nacional.
Delimitada por uma curva e uma ponte, obrigava-nos a olhar à esquerda e à direita, antes de nos lançarmos à conquista daquele espaço inferior a um quilómetro.
Tinha um marco azul e branco, onde se lia que a estrada era a 345, com destino fixo em Nelas, vindo da Mealhada.
Nunca nos ocorreu outro sentido que não este, em flagrante contradição com as regras da leitura.
Outros marcos mais pequenos marcavam-lhe as centenas, com o número bem gravado na superfície branca, ligeiramente biselada para facilitar a leitura dos condutores.
Era a minha rua, aquele pequeno troço da EN 345.
A partir da ponte, ou da curva que a limitava à esquerda da minha abordagem, era o Infinito.
Quando tinha acesso a um mapa, procurava logo a minha rua.
Nem todos se podiam orgulhar de ver a sua rua no mapa, e entretinha-me a imaginar o trânsito e a minha presença no emaranhado da rede viária, como uma impressão digital.
Um dia chegou a minha vez de a percorrer.
Ceder à tentação de me perder no labirinto proposto pelo mapa.
Esgotei-o depressa demais, e dei por mim junto à abstracção defendida com armas das fronteiras.
Contornei-a pelo lado mais humano, que era um caminho anónimo, paralelo à linha-férrea.
E nunca mais parei.
Nem para me voltar para trás, e ver que a minha estrada tinha desaparecido do mapa, e conquistava finalmente a dimensão de uma rua.



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NUNO JÚDICE (1949- )

Se bem entendo, este poeta, em tempos mais um ilustre da geração dos setenta, é hoje alvo de ódios vários pelas prebendas recebidas. Enquanto isso, prémios são onze segundo a wikipédia e é Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada. E? Poesia classicizante, lenta, que dizem ir beber aos alemães. Pensada, já o primeiro livro se chamava "A Noção do Poema".


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REQUIEM POR MUITOS MAIOS


Conheci tipos que viveram muito. Estão 
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço. 
de álcool, da obrigação de viver 
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que 
mulheres os lembram com a nostalgia 
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes, 
para o lado, como se eles estivessem à sua 
beira? 

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os 
em noites de bares e insónia até ao fundo 
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos, 
onde só os restos de vinho manchavam 
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas 
vozes se amontoavam como cadeiras num fim 
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura 
das despedidas. 

E ouvi os queixumes dessas a quem 
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos 
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me 
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os 
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes 
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes 
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor, 
nem do destino desses que elas amaram. 

Conheci tipos que viveram muito - os 
que nunca souberam nada da própria vida. 




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HELDER MOURA PEREIRA (1949- )

Este é cá de casa. O mais novo do quarteto do "Cartucho" e o mais (aparentemente) singelo. Poemas seus foram bandeiras minhas, íntimas. E, se a memória não me falha, foi crítico musical no... DN? Publica regular e quase rasteiro e em cada livro há sempre coisa boa. 


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De ti não vejo como virias pôr ordem
em qualquer casa, qualquer coração.
Assim começámos, dizendo coisas
agrestes, leves cedências. Nada exijas.
Lembro-me dessa frase ou agora a tua voz
cheia de filtros a dizer-me não
te comovas. É então assim que acontece,
andamos anos e anos a fazer a crítica
dos dias iguais e depois por uma voz
por um corpo descemos ao amor, às palavras
vulgares: não posso viver sem ti.
De súbito a vontade vale, toca-me apenas.



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EDUARDO PITTA (1949- )


Nascido em Moçambique e de lá saindo em 75, a poesia de Eduardo Pitta talvez perca pela visibilidade do blogue "Da Literatura" que este autor mantém "desde sempre". Homossexual tranquilamente militante (casou mal pôde com o seu companheiro desde 72), editou António Botto. "A seu respeito tem-se falado de visão pulsional e agreste da existência, ritmo acelerado, (...)" etc., etc. Boa poesia, esclareça-se.


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Estradas muito claras, o desenho nítido
e longas o bastante para o tempo
que sobrava.

O incêndio ficava para depois
para mais tarde
nos dias de aborrecer
o tédio.

Entre o desencanto da escola,
a injúria de alguns, a praia de ao pé de casa,
um Rilke adolescente, as primeiras
exigências do corpo e o ritual

do mah jong, fomos cumprindo
o equivocado itinerário
de uma sobressaltada adolescência colonial.





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JAIME ROCHA (1949- )

Homem da Nazaré, o nome acima é um pseudónimo (pensei que já não se usava). Prosa e teatro pertencem ao seu cardápio, o teatro coisa rara neste quintal português. Não deve ser pessoa bem disposta, pelo que escreve. Uma poesia teatral?

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É um homem dominado por um cavalo que o empurra
em cima de uma sela de platina e lhe ensina com as
narinas abertas todos os segredos da caça. Qualquer
coisa como um presságio, uma inclinação necessária
para destruir a beleza, partir as árvores até à nudez
exacta. A mulher não morria,levantava-se e fugia,
fugia sempre, mesmo com um cão dourado preso às 
pernas, cravando-lhe os dentes a cada passo. Não se
sabia como o seu corpo se recompunha, nem por que
razão a sua pele estava cada vez mais nua. O guerreiro
voltava ao comando do cavalo, incitava-o, fazia-o
contemplar a água ao fundo para que ele voasse em
direcção a um estreito entre duas colinas. Mas eram 
as feras que venciam o desejo, o cão e o cavalo
ganhavam o homem para um novo assassínio.
Porque também ele não conseguia morrer.



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