segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Mais uns quantos a perfazer... 90!

E aqui estamos nas margens dos setenta ou na transição para os oitenta. Ocultos ou desocultos, estes poetas são ilhas. Agora é que de uma vez por todas não há correres paralelos. Estejamos atentos. Mais dez.



JOSÉ AMARO DIONÍSIO (1947- )

É ou foi repórter e a referência iterada que aparece na internet a ter sido "sucessivamente expulso dos media onde foi passando" será apenas uma boutade que resulta da preguiça do copy and paste. Publica aqui e ali, pequenos textos, apontamentos, coisas. Notas sobre um real destruído que alguém devia fotografar. E ele assim o faz, com filtros.


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sequência 18


Porque foi na manhã dessa viagem que encontrei Muriel, a camponesa de Suzet. As maçãs vermelhas do rosto mas sobretudo a harmonia do que diz. Por exemplo: se quiseres descer em Toulouse ficas em minha casa. E de como crescem os animais ou se fabrica o pão.
- Tudo começa a ser fácil quando compreendes que acabarás por ficar só - murmura. - E compreendes isso mais dia menos dia.



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RUI NUNES (1947- )

Aparte uma edição de autor começou a publicar nos anos setenta e a sua obra, extensa, reparte-se entre a poesia e a prosa, um pouco mais esta, com reconhecimento crescente. Viverá entre Portugal e a Áustria, o que tem lógica, dado que a dor, o desamparo e a morte são temas seus recorrentes e o país do "Sul Germânico" já morreu há muito, esqueceram-se é de o avisar. Terá ou não deixado de escrever, porque invisual ou quase, ou seja, de vez em quando recomeça, com a ajuda de quem lhe leia o que escreve.


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vésperas portuguesas


o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante

no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências



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JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948- )

Outro madeirense. Escritor que apareceu em 76 mas que foi ganhando corpo e projecção apenas a pouco e pouco. Escreve comprido, ele há poemas que são livros. Tem tendência para o excesso e o emocionalismo. Nos tempos que correm isso é benvindo, não tenhamos dúvidas!


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(...)


Oh, prodígio dos prodígios, o leão, o tigre, os rapazes.
E eles voavam, os irmãos do sul,
esses anjos perdidos na tenda das assombrações.
Ao fundo era a morte. E pela morte tu crescias.

Cala um quadro assim,
o rumor dos dedos, dos seus prateados anéis, de alguns
pincéis.
Um sarcofago os há-de conter, um adeus santificado sobre
 o talento dos aflitos, dos malditos.

Sim, os amigos partem, elegem os covis, e o lobo espreita
com o metal das suas garras.
Desapaixonados lugares para onde eles partem, os amigos,
e devagar se apagam,
frente aos ecrãs.

Ausente, gerando a ausência.

E os filhos, esfinges de sombra na sombra dos
recifes?
Leve lhes seja a terra, as terras.

Ilumina-os com a tua luz púrpura, essa lâmpada,
essa roseira derramada, oculta.

Derrama-te, coração maior do sacrifício.
Coração profundo.

Centro do mundo.
Princípio e fim.



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AL BERTO (1948-1997)

Saiu recentemente um filme sobre os primeiros tempos de Al Berto em Sines. Tempos selvagens, tempos "solares". Antes tinha sido a Bélgica (deve ser dos melhores lugares para uma pessoa exilar-se). Depois veio o "Lunário", isto é, Lisboa. Conheço quem me tenha dito "Vi o Al Berto escrever este poema!" A viagem terminou com um linfoma aos 49 anos. A Al Berto devo a palavra "Salsugem" e o livro "Três Cartas da Memória das Índias". Antes os livros do Al Berto eram brancos e editados pela Contexto. Depois veio a fotografia do Nozolino e "O Medo". O poema abaixo foi escrito para o João Maria?


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CARTA DA FLOR DO SOL


3


(a meu amigo)


Há ainda outra árvore de natureza mui singular, chamada irudemaus, que em sua língua significa flor do sol, porque as suas flores não abrem nem aparecem nunca senão ao nascer do sol, e caem quando ele se pões; o que é o contrário da árvore triste. É a mais excelente flor, lança melhor cheiro que todas as outras; e da qual fazem ordinariamente uso o rei e as rainhas.

Viagem de Francisco Pyrard de Laval: TRADUÇÃO E DESCRIÇÃO DOS ANIMAIS, ÁRVORES E FRUTOS DAS ÍNDIAS ORIENTAIS


vou partir
como se fosses tu que me abandonasses

o último sonho que tive era estranho
via o fundo límpido de uma rua estreita
que desembocava num largo iluminado
havia leões empalhados nos passeios em areia solta
já não me lembro bem
parece que uma mulher avançava com um envelope na mão
estendia-mo e gritava
mas eu não conseguia perceber
insultava-me muito provavelmente
tinha a cara escondida por um pano branco bordado
apenas via a sua enorme boca abrir-se
e furiosamente engolir a púrpura do ar
que envolvia as cabeças reclinadas dos leões
ouvia o buzinar nervoso dos carros
exactamente como se ouvem agora
mas não conseguia vê-los
depois
um rapaz apareceu a uma esquina e reconhecia-te
uma voz gravada na memória acompanhava-nos
quando nos dirigimos um para o outro
em câmara lenta
ouvíamo-la sussurrar: procuro-te
no interior das penumbras no esquecido sal
das casas abandonadas à beira-mar
procuro-te no perfume excessivo do mel
armazenado pelas abelhas no entardecer das pálpebras
vem
mergulha as mãos nos troncos das árvores
suspende a noite da longa viagem
estás a naufragar
o espelho quebrou-se e tu já não reconheces as paisagens
o corpo estilhaçou-se

tua presença só é visível nas fotografias dos barcos
as quilhas são a tua memória longínqua das Índias
vai
com os pássaros de bicos exuberantes e sonha
e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca
onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas
a cidade espera-te com o cais de madeira
junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios
agarra-os dentro de ti
até que da terra lodosa brotem especiarias
porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade
só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade
inundando um breve instante a noite de nossos desastres
só longe daqui
terás a consciência da quotidiana morte de Deus

repentinamente a voz cessou de se ouvir
eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais
depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas
pelas amarras húmidas dos lençóis rotos
barcos
velas sem sol papel pintado deslocando-se das paredes
silêncio espesso sarro da noite
uma viatura boceja no asfalto
o corpo treme cintila
resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches
buenas noches mi amor
lençóis floridos ranho cabeças de cafres
pingue-pingue de torneira avariada esferas de flipper
noches buenas noches
barcos despedaçados bolor da memória
da memória da memória da memória

tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou
a mulher ria
eu corria para ti sem conseguir alcançar-te
sentei-me na cama
veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos
resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta

lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostado ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia a mão nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulavas para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados

escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio de vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite de teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te porque parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr pela rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer
como quando me tocaste a testa e eu não pude reconhecer-te
apesar de tudo senti a mão sabia que era a tua mão
mas não podia reconhecer-te
sim
correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses
mesmo que nem me olhasses
mesmo que dissesses coisas que me
mesmo que
e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me

correr a cidade com o corpo sedento
noite esgravatando a pele
bebendo nas veias as poucas forças que me restam
uma lâmina pelos sonâmbulos asfaltos
onde morrem ambíguos nomes de corpos sem sexo
o veneno agindo dos pés à cabeça
as mãos encharcadas de chuva tacteando um sexo qualquer
o sangue a chuva a memória desses dias tão difíceis
a noite a lambuzar com violência os rostos magoados
visões de sonhos ainda não sonhados
dilaceradas imagens de bocas coroadas por flores de aço afiado
ouço outra vez uma voz e agora não estou a sonhar
mas a escrever-te
e ouço-a em mim como se estivesse gravada
e a fita do gravador gasta pelo uso: a tua vida
será feita de embarcações e de solidão
beberás a secura dos cabos distantes
conhecerás ilhas de saliva profunda
olhar-te-ás nas fotografias
que as unhas aceradas do tempo arranharam
e para lá dessas imagens envelhecidas tudo sangra e dói
a tua infância a tua adolescência e o medo
de não conseguires sobreviver ao estrume deste país

avançarás pelo mar dentro
ferido por outros naufrágios imperceptíveis
descansarás
nas areias aveludadas da foz dalgum rio sagrado
e quando o mar se retirar
o sol a lua virão tatuar sobre o ombro
a silhueta viva dum bicho estelar
e a memória
essa parte calcinada da vida começará a doer e a latejar

navegarás pela cidade que adere aos dedos
como sarna mais antiga navegarás
com o escorbuto no coração transportarás o silêncio
e a escrita na fragilidade dos pulsos acorda
onde cintila a faca acorda
acorda o mar
está próximo o mar acorda
o mar acorda o mar acorda o mar
o mar

na gaveta onde o bolor cobriu a roupa guardo as fotografias
reparo como amareleceram suavemente os rostos
as mãos que seguram ramos de flores os cabelos os olhos
exala-se deles uma leve doçura cor de sépia
foram perdendo a definição esfumaram-se os contornos
numa das fotografias tens vestida a camisa de riscas azuis
noutras sorris olhas-me nos olhos
mas aquele sorriso não é o que ainda ontem te vi esboçar
o sorriso que tens na fotografia morreu
e no entanto está ali e fico perturbado quando o vejo
eu sei que nada está vivo na fotografia ou se repetirá
aqueles sorrisos aqueles instantes para sempre perdidos
a camisa às riscas votada à degradação lenta do papel
acabei por destruir as fotografias queimei-as
para que ninguém possa supor através delas
histórias a nosso respeito
e também para que minha mulher as não encontre

a única coisa que levo comigo é a cápsula de laranjada
atada a um cordão em couro deste-ma tu um domingo
quando ainda passávamos perto do rio
íamos ver o sol morrer nas águas
caminhávamos sem destino pela cidade
o crepúsculo atingia-nos com misteriosos desejos
seria inútil falar das razões da minha viagem
no fundo nada a justifica
embora a minha vida ultimamente seja um barco sem rumo
de vaga em vaga de ressaca em ressaca
fui arrastando o meu próprio naufrágio
mas ser-me-ia difícil falar-te destas catástrofes
prefiro calar-me para sempre ou enlouquecer
ou avivar a memória de certas visões aciduladas
enquanto te escrevo esta última carta
é também a última vez que penso em ti
sempre habitei este país de água por engano
estas planícies asfaltadas pelo tédio estes prédios de urina
estas paredes vomitadas
onde as diáfanas aves da solidão embatem e definham
deixam cair dos bicos fios de sangue e de cuspo que te evocam
vou migrando de corpo para corpo
sem nunca conseguir definir o voo complexo do meu
escrevo-te ainda lúcido
no entanto ignoro se chegarei vivo ao fim da noite
quem poderá afirmar que daqui a instantes
não atravessarei os espelhos impossíveis da noite?
ferindo o corpo rasgando borboletas de luz
no écran da cidade amanhecendo em mim
esqueço como me chamo
e tenho a certeza de que nunca mais nos veremos
mesmo no caso de eu permanecer aqui
neste país de água por engano
descobri que a morte calça o mesmo número de sapatos que eu

sabes
por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mão da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo
ah meu amigo
estou definitivamente só
estou preparado para o grande isolamento da noite
para o eterno anonimato da morte
mas perdi o medo
a loucura assola-me
preparo a última viagem às Índias imaginadas
disseram-me que só ali se pode descansar da vida
e da morte
perscruto a razão profunda desta viagem
ou talvez seja já a torna-viagem o que vislumbro
e não valha a pena partir porque já estou de volta
sem o saber
hesito em deixar-te escrito mais do que um simples adeus
de qualquer maneira por muito longe que me encontre
se pousares a tua mão sobre a minha testa senti-lo-ei
esse gesto aliviar-me-á de todas as dores
a manhã aproxima-se cortante
ouço barcos largarem do cais
preparo a lâmina
estendo velas em agonia uma lâmina de vidro
para fender as águas imperturbáveis do dia sem bússola
destruo cartas papéis manuscritos outros sinais
destruo imagens que me chamam e me querem reter aqui
releio estas poucas palavras para ti: child of the moon
debaixo das cerejeiras uma serpente antiga adormeceu
em tuas mãos de pétalas lunares
movem-se astros em cima da alba da pele
olharemos os insectos perfurarem a treva da noite
e tecerem claridades
mas já não tínhamos mais noite a desvendar
lembro-me
a cidade está cada vez mais rente à nossa separação
caminhamos em direcções opostas
ou melhor
eu caminho enquanto tu não existes
a noite aproxima-se com seus territórios de sombra e fábula
areias penumbras oscilantes apagando resíduos de corpos
teu corpo minúsculo arrefece dentro de mim
quando as feras despertam nos olhos abandono-me
à lama colorida dos terrenos vagos
dói-me a voz ao chegar aos lábios
os dedos penetram o metal cintilam
conchas abertas ao sonho
onde terei abandonado a nossa paixão?

um cristal flutua no enxofre de remotas cidades
compridos cabelos de jade espalham-se sobre o rosto
indecifráveis vegetações
o sonho torna-se exótico quando abres os braços
surgem nas pálpebras caudalosos rios
neles pouso a cabeça deixo-a flutuar
uma mulher anda aos ziguezagues pelos corredores da casa
vejo peças de vestuário espalhadas pelo chão
a mulher grita
corre à roda do quarto insulta os electrodomésticos
abre o frigorífico
atira com os legumes congelados ao chão espezinha-os
esborracha-os contra a parede chora
ri pega numa camisa de riscas e rasga-a em mil tiras
recomeça a correr
entra na casa de banho e abre todas as torneiras
abre as janelas e ri
e lambe as vidraças sujas
derrama açúcar dentro do telefone
e por cima das petúnias de plástico fluorescente urina
mas tudo isto se passou há muito tempo noutro lugar
noutro corpo

viro-me para o sul de nossos corpos e descubro uma ilha
percorro demoradas estradas de tabaco e o ouro envelhecido
dos caminhos alquímicos desvendo
os sinuosos mistérios da seda e da pimenta as grandes rotas
do vento bebo o amargor da vida errante
onde uma mulher dorme sossegada sobre a cama desfeita
o telefone toca obsessivamente toca
um corpo translúcido surge do papel em que te escrevo

revela-se-me a água dos gritos repetidos
um foco de luz incide-me sobre a boca fechada
procuro-me na silenciosa cinza de tua memória
pela casa atravessada de ecos de fogos postos respiro
dificilmente ouço zumbidos de flipper
o quarto povoa-se de rostos alados mecânicos olhares
pequenas garras de ar
desfazem-se em finos cordéis de terra
a mulher avança sob o peso da tempestade
aqui esta sempre a chover
o frasco de barbitúricos conta-me o falhado suicídio
a mulher tem o teu rosto ou o meu já não sei
a luz percorre-te o corpo nu
é noite há muito tempo
fixo um ponto invisível da parede estou sentado na cama
escrevo-te
e tenho a certeza de que ninguém será capaz
de roubar a minha morte
porque eu moro neste país líquido por engano
e tenho dificuldade em imaginar o sono fora de meu corpo
se quiseres vem dormir perto de mim vem
sonharemos um país fabuloso junto ao coração das árvores
vem
antes que trema o corpo no frio sem deuses e na loucura

quase amanhece
lá fora as avenidas mantêm-se vazias
subúrbios sonolentos no refrão dum brutal rock'nd roll
vicious you are so vicious
baunilha azul nos lábios orgasmo de baunilha
tarzan de pastelaria um cigarro de chocolate come
chocolates come sentado no cimo do ice cream toute la nuit
fuck fuck
fuck em diferido
os eléctricos já passaram e as mãos já não são as minhas
têm sede
sede de nudez
mas vou partir deixar-te aí
como se fosses tu que me abandonasses
viajar antes da alba partir
para longe deste inúteis dias
eu
pobre de mim
navegador da noite próxima da morte
vou acendendo no sangue os sonhos dum povo que não sonha
eu
arquipélago de cinzas oceano do nada
vou de veias inchadas e penso que talvez não valha a pena
mas vou
preciso encontrar o lugar certo para o nosso amor
queres vir comigo?
já avisto da gávea inquietantes iluminuras de rostos de afogados
mãos antigas como rochedos peixes fantásticos
bocas aflitas e tua boca mordendo
o cordame avariado pelo sal
ah meu amigo
eis o sofrimento de meus lábios gretados pelo sarro oceânico
eis minhas unhas doentes protegendo o sexo aberto
às monções aos ventos adversos às vagas rumorosas

vou abandonar-te no lado claro da noite
onde o tempo é um fio de luz rasgando a espessura do corpo
vou partir
com estas manchas de frutos sorvados no coração
para sempre vagamundo
no corredor de espelhos sem tempo deixo-te o sonho
onde já não arde nenhum rosto nenhum nome
nenhuma voz de silente treva
nenhum paixão

abandono-te para além da linha nítida da manhã
onde dizem que tudo existe se transforma e continua vivo
longe
muito longe desta inocente memória das Índias



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JOSÉ EMÍLIO-NELSON (1948- )

Que em Espinho,  a mais arrumada das terras tenha nascido tal poeta, dá que pensar! O seu segundo livro saiu em 1980 e chama-se "Pénis, pénis.". I rest my case.


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PEDRAS NOCTURNAS E DIURNAS


Não se pede segredos a uma pedra. Diz-se à criança: - Fica muda, de pedra.
Sempre houve pedras mais pedras que outras que são preciosas, pedras que se tingem das cores que assombram. Pedras que dão sombras para adormecer. Pedras que de noite se escondem no ar, assustam. Pedras que cortam árvores e outras que adormecem a seus pés, lembram rebanhos curvados. Há pedras que estão de cabeça levantada à espera da mão de Deus?
Todas as pedras deambulam. Evadem-se. Os ventos do céu sabem disso. Na montanha a voz das pedras sente-se pesada. (A montanha escoou-se entoando a pedra.)
- Estrondosa, diz-se à criança. Sacodem o silêncio que abriga sementes e as revestia. Belos animais pardos e luzidios com quem falamos. Nocturnos e diurnos, dentro e fora da terra. Pedras nos compêndios escolares e à chuva com fastidiosa passividade. Pedras com cabeça de nuvens. E pedras no bolsito da criança.
Há a pedra sombreada enquanto a Lua parece a pedra do céu. Há a que retém lágrimas demais, se se quiser, orvalho, por ser triste pela manhã. Há pedras alegres que são espelhos as mais das vezes. Abrem-se e a criança entra nas portas encerradas.



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RUI DINIZ (1949- )

Publicou "Ossuário (ou: A vida de James Whistler)" em 77 na & Etc e depois desapareceu. Percebi que vive em Eaton, dizem. Eaton County, Michigan? O livro em questão é considerado uma referência do fim dos nossos anos setenta poéticos. O seu "romanesco" explica-o.


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OS ANOS DE TRANSIÇÃO - UMA CANÇÃO DE EXÍLIO


Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que só se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para  tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera  e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café de Versailles,
tomei um whisky com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.



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JORGE FALLORCA (1949- )

Quando o encontro a primeira palavra aposta é "radialista", e é verdade que o nome lembra-me, acho, a antiga Comercial. Espantei-me por aparecer na Antologia "Sião" mas eu então era muito novo. Hoje sei mais...


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RUA


A minha rua era uma estrada, e nacional.
Delimitada por uma curva e uma ponte, obrigava-nos a olhar à esquerda e à direita, antes de nos lançarmos à conquista daquele espaço inferior a um quilómetro.
Tinha um marco azul e branco, onde se lia que a estrada era a 345, com destino fixo em Nelas, vindo da Mealhada.
Nunca nos ocorreu outro sentido que não este, em flagrante contradição com as regras da leitura.
Outros marcos mais pequenos marcavam-lhe as centenas, com o número bem gravado na superfície branca, ligeiramente biselada para facilitar a leitura dos condutores.
Era a minha rua, aquele pequeno troço da EN 345.
A partir da ponte, ou da curva que a limitava à esquerda da minha abordagem, era o Infinito.
Quando tinha acesso a um mapa, procurava logo a minha rua.
Nem todos se podiam orgulhar de ver a sua rua no mapa, e entretinha-me a imaginar o trânsito e a minha presença no emaranhado da rede viária, como uma impressão digital.
Um dia chegou a minha vez de a percorrer.
Ceder à tentação de me perder no labirinto proposto pelo mapa.
Esgotei-o depressa demais, e dei por mim junto à abstracção defendida com armas das fronteiras.
Contornei-a pelo lado mais humano, que era um caminho anónimo, paralelo à linha-férrea.
E nunca mais parei.
Nem para me voltar para trás, e ver que a minha estrada tinha desaparecido do mapa, e conquistava finalmente a dimensão de uma rua.



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NUNO JÚDICE (1949- )

Se bem entendo, este poeta, em tempos mais um ilustre da geração dos setenta, é hoje alvo de ódios vários pelas prebendas recebidas. Enquanto isso, prémios são onze segundo a wikipédia e é Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada. E? Poesia classicizante, lenta, que dizem ir beber aos alemães. Pensada, já o primeiro livro se chamava "A Noção do Poema".


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REQUIEM POR MUITOS MAIOS


Conheci tipos que viveram muito. Estão 
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço. 
de álcool, da obrigação de viver 
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que 
mulheres os lembram com a nostalgia 
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes, 
para o lado, como se eles estivessem à sua 
beira? 

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os 
em noites de bares e insónia até ao fundo 
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos, 
onde só os restos de vinho manchavam 
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas 
vozes se amontoavam como cadeiras num fim 
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura 
das despedidas. 

E ouvi os queixumes dessas a quem 
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos 
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me 
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os 
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes 
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes 
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor, 
nem do destino desses que elas amaram. 

Conheci tipos que viveram muito - os 
que nunca souberam nada da própria vida. 




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HELDER MOURA PEREIRA (1949- )

Este é cá de casa. O mais novo do quarteto do "Cartucho" e o mais (aparentemente) singelo. Poemas seus foram bandeiras minhas, íntimas. E, se a memória não me falha, foi crítico musical no... DN? Publica regular e quase rasteiro e em cada livro há sempre coisa boa. 


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De ti não vejo como virias pôr ordem
em qualquer casa, qualquer coração.
Assim começámos, dizendo coisas
agrestes, leves cedências. Nada exijas.
Lembro-me dessa frase ou agora a tua voz
cheia de filtros a dizer-me não
te comovas. É então assim que acontece,
andamos anos e anos a fazer a crítica
dos dias iguais e depois por uma voz
por um corpo descemos ao amor, às palavras
vulgares: não posso viver sem ti.
De súbito a vontade vale, toca-me apenas.



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EDUARDO PITTA (1949- )


Nascido em Moçambique e de lá saindo em 75, a poesia de Eduardo Pitta talvez perca pela visibilidade do blogue "Da Literatura" que este autor mantém "desde sempre". Homossexual tranquilamente militante (casou mal pôde com o seu companheiro desde 72), editou António Botto. "A seu respeito tem-se falado de visão pulsional e agreste da existência, ritmo acelerado, (...)" etc., etc. Boa poesia, esclareça-se.


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Estradas muito claras, o desenho nítido
e longas o bastante para o tempo
que sobrava.

O incêndio ficava para depois
para mais tarde
nos dias de aborrecer
o tédio.

Entre o desencanto da escola,
a injúria de alguns, a praia de ao pé de casa,
um Rilke adolescente, as primeiras
exigências do corpo e o ritual

do mah jong, fomos cumprindo
o equivocado itinerário
de uma sobressaltada adolescência colonial.





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JAIME ROCHA (1949- )

Homem da Nazaré, o nome acima é um pseudónimo (pensei que já não se usava). Prosa e teatro pertencem ao seu cardápio, o teatro coisa rara neste quintal português. Não deve ser pessoa bem disposta, pelo que escreve. Uma poesia teatral?

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8

É um homem dominado por um cavalo que o empurra
em cima de uma sela de platina e lhe ensina com as
narinas abertas todos os segredos da caça. Qualquer
coisa como um presságio, uma inclinação necessária
para destruir a beleza, partir as árvores até à nudez
exacta. A mulher não morria,levantava-se e fugia,
fugia sempre, mesmo com um cão dourado preso às 
pernas, cravando-lhe os dentes a cada passo. Não se
sabia como o seu corpo se recompunha, nem por que
razão a sua pele estava cada vez mais nua. O guerreiro
voltava ao comando do cavalo, incitava-o, fazia-o
contemplar a água ao fundo para que ele voasse em
direcção a um estreito entre duas colinas. Mas eram 
as feras que venciam o desejo, o cão e o cavalo
ganhavam o homem para um novo assassínio.
Porque também ele não conseguia morrer.



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