terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Outros Oito Poetas


Depois do sobressalto que os autores anteriores trouxeram, com os nomes que se seguem fazemos a ponte para os remexidos anos sessenta que hão de chegar. Ainda há surrealistas, por exemplo. Nos anos cinquenta a ditadura salazarista pesou mais porque durava, não ia embora. Por isso houve emigrações e silêncios. Por vir a Guerra Colonial que acabaria, com o  Tempo, por matar o regime. E já estão quarenta poemas - e poetas!



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FERNANDA BOTELHO (1926-2007)

Fundadora da revista Távola Redonda, apresentou-se ao mundo poetisa mas depois enveredou pela prosa onde se tornou muito mais conhecida. A curta obra poética terá representado uma rotura com a poesia feminina do tempo, disseram. Aparte o elogio dúbio há nesta poesia realmente às vezes uma ironia seca...


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POEMA


Negue-se o mundo a me dizer: sim!
Negue-se o ar da serra aos meus pulmões!
Fechem-se as janelas porque vim
interromper os solheiros e os pregões!
Neguem-me o passaporte
pra o estrangeiro!
Encontre-se sem norte
e sem dinheiro
(e desprevenidamente des-emotiva!)
frente às rodas paralelas
duma qualquer locomotiva,
ou entre elas,
ou melhor: debaixo delas!
— Por tudo encolherei os ombros
que, em suma, dizem crentes e descrentes
a vida é feita de rombos e de tombos,
doença, hostilidade e guinchos de serpentes.

Mas tu — (Homem! Garra!
Sucesso! ou Vento! ou Amarra!
Vício alegre! ou Labirinto!
Bebedeira de absinto
Filhos!
E Deus neles!)
— não me negues o tom simples
e às vezes reles
da tua voz pura-impura
com que segues
a minha vil e vã desenvoltura.



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FERNANDO LEMOS (1926-)

Começou nos surrealistas e desenvolveu a sua arte na pintura, na fotografia e na poesia. Notabilizou-se nas três. Em 1953 partiu para o Brasil porque em Portugal havia uma ditadura e não mais voltou. Encontrou uma ditatura no Brasil em 1964 mas o vírus brasileiro já estava entranhado e a nacionalidade concedida. Mais conhecido lá do que cá, a sua colectânea de poesia editada pela ICNM chamava-se "Cá & Lá".


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AS NOVAS LEIS.


Atrás de qualquer porta
está sempre o mar alto que me espreita
Ou então a capa em que o vento abate
a dúvida ou a suspeita

Linhas rectas seguem cidades
quebrando fazendo nós
quando um homem lança mão num estrado
de abelhas completamente sós

Criaram-se novas leis
novos modelos de calçado
Fotografias com cores
décors do patriarcado

Mas as facas de cortar fruta
que correm a praia de extremo a extremo
dançam em pontas sobre o pequeno
E as mães que já não sabem
fazer as suas contas
deitam-se ao mar pelo que vêem
e julgam-no sereno

Saem dos astros pés das ondas mãos
a taparem os rostos os medos
As fardas que andam nuas
sobram armas lugares amenos

O mundo não previa tanto
e esgotou-se a lotação
Vão pelos canos correndo pardais cegos
como convém à perseguição

Criaram-se novas leis
há pânico pelas nossas varandas
nascem entretanto árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda são de pedra
apesar da nova lei que os não respeita
Embora a máquina de fazer peças para novas peças
seja o mar alto que atrás da porta me espreita.




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PEDRO OOM (1926-1974)

Morreu no dia a seguir ao 25 de Abril o autor do Manifesto do Abjeccionismo, texto "que se perdeu". Tinha ido ao Aeroporto da Portela esperar o Cunhal e o Zé Mário Branco e ali caiu para o lado. Parou de escrever aos 36 anos, convertido ao funcionalismo público no INE e ao xadrez. Querem poeta mais surrealista do que este?


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MÃOTÓTEM


   Existe, lá, entre as sombras e o declinar dos vazios um homem deitado. Este alonga-se pelas estradas macias e a sua sombra persegue-o no seu repouso pela eternidade.
   Outrora, quando os caminhos eram possuídos de lama, o sangue que jorrava das crateras que contorcem os céus tinha o sabor mais puro que um seio de mãe pode ter.
   Assim, deitado, ele ergueu-se levemente apoiando-se no cotovelo direito e pôs-se a espreitar a eternidade. Esta era feita de si mesma sem direito algum a qualquer recompensa.
   Falou em surdina, quase com medo de acordar as trevas que sugam no povoado:

   «Aqui estou, semiconsciente, como morto que de repente acorda e que sente a sua insensibilidade projectar-se monótona no dia a dia infindável.
   Aqui estou, semimorto, como uma vela automática que se apaga na escuridão e se acende quando a luz do sol rompe ruidosa. Meu lamento não é raiva nem certeza. Espreitei na fechadura dos horizontes e o que eu julgava ser vácuo e raiva emplumada mostrou-se-me coalhado de cogumelos e de lagartas. Notei, em seguida, um perfume esquisito, cheiro forte de coxas queimadas que eu soube depois ser o excremento do sexo dos Deuses».

   A estrada interminável persegue-o. Um automóvel move-se interrompendo-lhe a locomovidade dos pensamentos.

   «Agora compreendo porque o vazio é uma ideia compacta e esta, inversamente, um conjunto de Deuses. Expulsei-os! Meu lamento não é raiva nem certeza. Sou eu, expulso dos meus pensamentos.»

   Ergueu-se. Levantou e sacudiu as espáduas. Era mais alto que os montes.
   Adiantou-se.
   A sua sombra infindável persegue-o nos horizontes.

*

   Há qualquer coisa que faz sofrer infinitamente a humanidade. Calcule-se o peso de tal sofrimento medindo-o por quilos, por latas, por transatlânticos, por caçarolas e por sacos de café.
   Há qualquer coisa...
   Na planície aberta a todos os ventos levantou-se uma parede, caiu uma árvore, rompeu-se um dique, construiu-se uma ponte. E, súbito a vastidão rompe num falar brusco, de repelão, sem sustos:

   «Bom dia, Vossa Excelência compreende, por certo, que eu, mísera, nada posso fazer quando o peso da consciência se abate como avalancha sobre a delgada crosta de um verniz de séculos. Vossa Excelência compreende, por certo... ».

   Mas a noite chega e é a mesma de sempre.



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DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996)

Mais um homem da "Távola Redonda", tornou-se conhecido pelos seus programas na televisão, poemas feitos fados por Amália, e a polémica à volta do seu premiado romance "Um Amor Feliz". Socialista encartado como Sophia, foi Secretário de Estado da Cultura. Fumava cachimbo. Seria melhor contista? A sua poesia, que não frequento muito, tem uma temática preferencial que se explicita no título do seu último livro publicado: "Música de Cama". O poema abaixo foi antologiado por Eugénio de Andrade.


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PRESÍDIO


Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!



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ALBERTO DE LACERDA (1928-2007)

Homem que também frequentou a "Távola Redonda", nascido (por acaso?) na lindíssima Ilha de Moçambique, cedo emigrou para Londres e lá começou a publicar e ser conhecido, bastante mais do que em Portugal, tanto que o seu falecimento foi bem mais sentido para lá do Canal. Poesia elegante e leve como poucas, Alberto de Lacerda era um homossexual assumido e um homem cuja vida nunca foi fácil nem economicamente fácil. Mas, porém, era um Iluminado. No UK de poesia portuguesa conhecem Pessoa, Lacerda e pouco mais. Por alguma razão será. Poesia portuguesa, pergunto? Sim! Pretty much so!


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UM DEUS


Prazer. Mais do que isso. A pureza de uma tarde de sol sem humidade nem nuvens.

Deserto. Não propriamente deserto.
Mas o tumulto estático da areia infinita.

Corpo. Não propriamente um corpo.
Um elo. Um anel não fechado.

Um homem.
Não propriamente um homem.

Um deus.
Exactamente um deus.



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ANTÓNIO MARIA LISBOA (1928-1953)

António Maria Lisboa nasceu na dita cidade e nela morreu por tuberculose 25 anos depois. O surrealista que mais o foi, protagonista de uma adolescente busca do diferente e de um outro mundo sempre, foi elogiado postumamente pelo seu amigo Cesariny como o maior poeta surrealista português. Acresce ao mito grande parte dos seus manuscritos terem sido destruídos pela família. Curioso o seu percurso médico ao morrer poucos meses depois de Sebastião da Gama da mesma doença, os dois mostrando que caminhos diferentes percorria a poesia portuguesa naqueles tempos.


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RÊVE OUBLIÉ


Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas 
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim 
nesta minha mania de te dar o que tu gostas 
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti 

Agora na superfície da luz a procurar a sombra 
agora encostado ao vidro a sonhar a terra 
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba 
e depois matar-te e dar-te vida eterna 

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros 
continuar a viver até cristalizar entre neve 
continuar a contar a lenda duma princesa sueca 
e depois fechar a porta para tremermos de medo 

Contar a vida pelos dedos e perdê-los 
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada 
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho 
e depois contar um a um os teus dedos de fada 

Abrir-se a janela para entrarem estrelas 
abrir-se a luz para entrarem olhos 
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala 
e depois ruidosa uma dentadura velha 
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro 

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata. 




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ANA HATHERLY (1929-2015)

A mulher que esteve à frente dos tempos da Poesia Experimental nos anos sessenta portugueses, sobreviveu a essa devastação da palavra e portanto a ela própria. Se os poemas-imagem e todas essas coisas são se calhar não poesia mas (boa) obra plástica, as "Tisanas" que a escritora foi publicando e acrescentando a cada nova edição são o que (bem) ficou. Foi portanto também pintora emérita, cineasta e profunda conhecedora do barroco poético português (a palavra, sempre a palavra).


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172


Sento-me à porta de casa e penso: as máquinas mesmo as máquinas-do-desejo são o que se deixa atravessar pela função. São frias mesmo nas suas explosões mesmo nos seus óleos nos seus combustíveis em chamas. A frieza da máquina é herdada da frieza essencial porque o desejo o que quer é deixar-se atravessar ser canal. É para ser e não mais. Não é?




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FERNANDO ECHEVARRÍA (1929- )

Nascido em Espanha de mãe espanhola (vidé o apelido), exilado em Paris na ditadura, Fernando Echevarría escreve uma poesia de um cristal áspero sem toque que se lhe compare em Portugal. Usa as palavras difíceis para expor as coisas simples e luminosas. Tem uma obra extensíssima felizmente antologiada num livro que se chama... "Antologia", na sua editora de sempre, a Afrontamento. Nunca falou sobre os seus tempos revolucionários na LUAR. O poema abaixo é exemplo perfeito daquilo que eu não consegui explicar.


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A ENXADA (extracto)


1

O movimento vertical que cumpre
amanha o sol. E, com o brilho da água;
lava a sombra da terra, a enxúndia do estrume
e o resplendor da palavra.
Ao meio dia, a sua luz reúne
pino de esforço, relâmpago. Ou estrada
queimando-se no risco que resume
o gesto que desaba.

Mas, sobretudo, é limpa ferramenta.
Lugar por onde o espírito, estremecendo, passa
e brilha com aquela transparência
que sobe do trabalho. E pára na palavra.






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