sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

E com uns quantos poetas já passei dos cem! Cento e quatro, sejamos precisos!

Entramos nos autores nascidos nos anos 50. A entronização destes nomes está aqui ou ali por acontecer, por isso posso ser completamente discricionário. Por outro lado a má-língua poética diz "os setenta foram piores que os sessenta e os oitenta piores que os setenta", portanto, é aproveitar. Paradoxalmente os nomes abundam, a grelha do tempo em parte ainda por acontecer. E já passámos os cem!



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EMANUEL JORGE BOTELHO (1950- )

Açoriano oriental (da Ponta Delgada), diz que não há uma literatura açoriana nem gosta de falar nem escrever sobre o mar. A "Sião" descreveu-o como "escravo de uma profissão". Ele, entrevistado, disse que gostou muito de ser professor até que a doença - costuma ser o coração - o reformou. Vive ancorado portanto na sua terra natal, sem mais.


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DIAGNÓSTICO DO SÍTIO
POR QUEM ESTÁ NO LUGAR


dêem-me um muito longe que não arda.
mascar vidro não é profissão, dizem-me, 
nem deixa que o amor da morte me leve
para perto da lisura do vinho.

embora não me vou,
e se for irei ficando,
sem oiro no rosto
nem coice que  me peça cicatriz.
fico.
ato o amanhã no dedo de pescar
e saco-lhe a guelra quando picar
o calendário. 

não tenho tempo.
eles não sabem onde estou
e só por isso não me mato. 
quero deixar um açoite armadilhado,
antes que a data prima
a leveza do gatilho. 

fico. 
fico com um pão a morrer no bolso
e os lábios secos de nomes
para dar a cada dia. 

que horas são, meu amor?
a que horas chega a hora certa?



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ROSA ALICE BRANCO (1950- )

Nasceu em Aveiro e dá aulas em Matosinhos. De alguma forma rodeia-me. Acho o seu site virtual soletrarodia.com demasiado opulento, com aquela fotografia onde aparece ela apoida nuns livros onde o primeiro é um "Portugueses Célebres" virado ao contrário... A sua poesia, porém, é muito boa, e parece ter muita saída lá fora. A cólera (real?) faz-lhe bem.


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ANIMAIS DA TERRA


O caracol avança tenazmente
para que o tempo erga o seu império com o visco
que alastra pelo solo. E se nasce uma árvore,
é pela resina que a morte se infiltra
na candura dos animais, na sua sombra.
Eles ignoram que as antenas do caracol
prevêem cada naufrágio antes do nevoeiro
sobrevoar as ilhas e morrem com os olhos,
o corpo ainda a contorcer-se nos ramos.
Os animais vêem para dentro.
Vivem até ao último coágulo e depois a seiva
da árvore esbanja-se sob o manto da terra
a animar as partículas ínfimas em que se tornaram.
As almas descem. É por isso que o mundo não acaba.



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FERNANDO GUERREIRO (1950- )

A cara simpática que aparece no citador.pt promete outra pessoa. Investigador e académico, mereceu poema na Antologia "Século de Ouro", com um gordo ensaio anexo onde é definito como "poeta, ensaísta, professor, editor, comunista". Prefiro o poema abaixo. Estuda também cinema o que é bom.

 
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RETÓRICA DA PAISAGEM


O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos 
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo? 
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem 
de cestos em que se recolham - dilatados, quase 
a cair das árvores - os frutos. E contudo, continuamos 
a confundir os caminhos do poema com os do mundo 
quando eles, na natureza, apenas nos apontam 
a incerteza do destino. As palavras repetem-se - 
frutos atirados sobre a mesa - e a morte, 
para quem não acredita no poder de transfiguração 
das metáforas, esgota da vida todo o sentido. 
Diz-se: os ramos não crescem no quadro, 
os pássaros deixam de assolar a paisagem - 
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela 
pejada dos restos em que se perdeu pelo 
horizonte. Mas todo o conhecimento 
acaba no ponto em que o voo se 
confunde com a linha acidentada da planície. 



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LUÍS FILIPE CASTRO MENDES (1950- )

É o actual Ministro da Cultura. A sua poesia vive nas formas mais tradicionais. E, ás vezes, sobrevive a isso da melhor forma.

 
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POEMA


para a Graça


 
A falta de ti.
O coração procura o mais fundo da terra.
O mar e a infância tecem
uma aliança acerada contra
a vida. A vida imediata.

Só o teu riso dura. Mostrei-te o mar.
Mostrei-to antes e depois de morreres. 


 
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HELGA MOREIRA (1950- )


Tenho a sorte de possuir o livro seu que é mais citado: "Tumulto" de 2003, na & etc. No ano anterior tinha publicado na Quasi, o que me atrapalha. Atrapalha-me mais ainda que críticas a este livro apareçam na badana de "Tumulto". Que promiscuidade. Poesia óptima.


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Como já disse, toda ouvidos sou.
Embaraçada docemente com a vossa atenção.
Entrem por favor, não façam cerimónia.
Que a dor é recente, eu sei

se transmigra, ou por vezes persiste
fecho janelas, portas e não a qualquer
chamada responderei. 
Mas perplexa ainda sou.

Entrem, meus amigos,
sem cerimónia.
Se fujo é apenas à memória

contriste ou alegre
misto de coisa abstracta
ou conforme



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CARLOS POÇAS FALCÃO (1951- )

Advogado de formação, vimaranense, dá aulas na Francisco de Holanda. A edição da sua obra completa "Arte Nenhuma" deu-lhe maior visibilidade. A poesia mais recente é bem menos efusiva mas igualmente certeira. Dos poetas que começaram a publicar nos oitenta talvez aquele que mais certeiramente ficará?


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Em linguagem clara o abandono é o amor.
Quando a hora chega e o tempo se consuma
as mãos podem estar tranquilas
que o olhar vê tudo bem e o coração desprende

a nuvem exaltada. Disto muitos querem prova.
Estende-lhes a taça para sua provação
pois só quem faz a prova conhece este sabor.

Abelha no açúcar e ave no pomar
som inicial duma canção fraterna
noite que ascende a uma estação mais pura
- ah, como escandaliza aquele que não ama
ver o amor provado do que todo se abandona!



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MANUEL FERNANDO GONÇALVES (1951- )


Bragantino. Que tenha um livro publicado na & etc chamado "Fechamos a Alma, ao Fim da Tarde, com Estrondo e Animação", diz muito. Não acredita muito em si nem em ninguém e na realidade em quase nada. Frequenta as editoras certas e elas fazem bem em deixarem-se frequentar por este homem.


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INSTAMATIC


Achei graça a isto de ir
tomando notas, pelos sítios
ao acaso, e cafés. Não às notas
que essas seriam sempre
marcadas na pele, como tatuagens,
se os filtros, digamos dos olhos, 
deixassem. Não! Acho graça
aos lugares indiscriminados
da cidade por onde se passa levado
pelo dedo arbitrário, pelo destino
tecnocrático de pedir, aqui 
e não em outro terraço, nesta sala
quase ao lado de outro cinema
qualquer, um café cheio, água
fresca, como se pudesse iluminar
o instante para o crime
do olhar. Assim se escrevem
alguns poemas, já que perguntas
e o difícil é manter o foco
ou julgas que a vida
é um romance?



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ISABEL DE SÁ (1951- )

Olha, nasceu em Esmoriz. Também é artista plástica. Poesia de muito precipício e sua vertigem.  A morte, o corpo, a infância, etc. Às vezes conseguindo o equilíbrio adequado. Notoriedade nos anos oitenta que hoje vive um certo refluxo.


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DEIXEI O POEMA


        Deixei o poema na folha dobrada, gastei o tempo a ver o desejo nos teus olhos sabendo que este instante ilude a morte.
        Entre os lábios fendidos a língua acaricia. Soltas um gemido, quero que grites, que o grito acompanhe o tremor do corpo e tome conta do rosto inteiro. Fechas os olhos e a poalha espalha-se até aos ombros. A força das palavras, o poder infernal do amor. Disponho deste corpo que convida à violação.



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JOSÉ CARLOS SOARES (1951- )

Um leceiro discreto. Poesia já sinalizada na "Sião", continua a produzir poemas pequenos, que se localizam "do lado de fora" da vida (assim se chama um dos seus livros), ou não, ou talvez apenas existam a sinalizar como o coração é pequeno mas está.


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Não te aproximes tanto
de uma alma em cinzas. Apenas
arde

ou dá-me
do sol estrelas, escuros
fragmentos da mansidão. So tired

of dying
digo, baixinho, amo-te. Digo-o
pela tua boca.



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R. LINO (1952- )

Nasceu em Évora e a planície, as coisas, os espaços, aparecem muito na sua poesia, noemadamente a dos anos oitenta onde esta poesia (sim, o R. é feminino) ganhou notoriedade. Depois desapareceu da escrita publicada uns vinte anos, voltou. 


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Tenho de construir hoje esta planície.
Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.



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JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA (1952- )

É ou foi cardiologista no Santa Maria. Poesia "inglesa", dizem, ou seja, comedida, de pequenos abalos telúricos no virar da esquina. Sempre acrescenta, frequentes vezes eleva.


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        PITÁGORAS não gostava de cavalos. Vá-se lá saber porquê. Talvez algum tivesse tentado mordê-lo, ou acertado um coice, quando ele era criança.
        Os cavalos fazem aqueles esgares, que parece que estão a rir de nós. Mas não estão - nem sequer de Pitágoras, que eles não conhecem. Estão a rir-se uns dos outros.
        Ainda agora, um cavalo dizia para a mulher: "Olha-me ali para aqueles cavalos, a fazer caretas, que parece que estão a rir. Que imbecis! Depois espantam-se que aquele outro - nunca me lembro do nome dele, o grego, arquitecto ou o que era - difamasse os cavalos."
        "E Mafoma amaldicoou o toucinho" - respondeu a mulher.
        O cavalo começou a palitar os dentes e a discussão ficou por ali.



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RUI BAIÃO (1953- )


O que fazer com Rui Baião? O "terceiro elemento" da "Sião", continua a publicar poesia adusta e impermeável. Não toma prisioneiros, não atira para as pernas. O Rui Baião não gosta de nós. 


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Outra maneira de ser: um homem
de facto, às riscas. Um vulto
com sintomas às costas,
no lodo da fala, uma pausa
turva, de homem
conforme o ódio. Moribundo
que escolha, o início a nada,
o cio a perdas e danos,
uma vida negada, repleta
de segundas intenções.



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AMADEU BAPTISTA (1953- )

Poeta convulso nascido no Porto, tem obra muito extensa de que pessoalmente destaco "O Ano da Morte de José Saramago". Nesse livro está uma frase que já usei em diapositivos: "A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder à esperança dos seus habitantes". Publicado em 2010, o momento era o certo. Escreve comprido e nem sempre exacto mas tem exaltações e indignações muito dignas de serem lidas. Foi comentada a fase em que, desempregado, ganhava prémios literários em série. Compararam-no por isso ao José Jorge Letria. Meu Deus...


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2008


(para o Baptista Bastos)


Sou um homem do norte e um homem do norte
continuarei a ser até que a morte me separe.
As minhas circunstâncias são exactamente
as mesmas circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas
a granito, os vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a que possam
subir para começar uma aventura
que não tenha fim. Na minha memória
o que está mais marcadamente aceso
tem a ver com o mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo choques inimagináveis,
com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia permanente por não haver
o que dar de comer a velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir para os braços de alguém
que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,
como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para celebrar.
A vida era dura nesse tempo,
que eu fui vigiando quase por instinto,
fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro, consolidam, sem mais,
o que passaram a saber, porque o sofreram.
A vida era dura nesse tempo, sobretudo
para quem me estava próximo
e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em estoicismo feroz,
capaz, se necessário, de abalar montanhas.
Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,
andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos meus progenitores.
Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum
–  por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo
ou o alento que alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a infância, a minha infância,
me entregou ao duro acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.
E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para me dar,
além da sua eterna progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu encantamento.
Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado, falava-me das flores –  as brancas, as vermelhas –,
falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não, a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi que há,
entre os vários planos em que existimos,
outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho ao desacato
das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva pela vida circundante.
Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba e exaltante,
tanto mais que sempre quis ser poeta,
e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção vier e a deslembrança
tiver que ser a última recompensa.
Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,
a constatar como na alma os passos se abismam
se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi que a enxertia resultava
em algo mais sensível do que alguma vez supus,
sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita e bravia,
se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em multidões inúmeras,
com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,
e das palavras tomei o que podia para encontrar
o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa e obscura,
que sabemos e não sabemos como existe,
mas sentimos na alma e no espírito,
e nos enche o olhar como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não, interessa pouco.
O que escrevo é só um tempo breve,
em que os mortos e os vivos se procuram
para que haja testemunho e não seja longa a espera
do fim que há em tudo. Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça o que é o norte,
e onde fica.



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PAULO DA COSTA DOMINGOS (1953- )

O artesão que é a Frenesi e que é o "irmão do meio" na antologia Sião. Das suas mão não sai livro feio. E edita Fialho de Almeida. Poesia libertária sempre, sendo o privilégio para aquilo que se quer dizer, que habitualmente é contar. Por outra forma já ele ajustou as contas, dando a sua versão numa espécie de autobiografia, "Narrativa". 


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EM VOGA


Um escritor cheio
de ferragem e tatuagem,
como um escravo, besta
de carga. Admira como não
cravaram ainda cravos
na palmilha de seu pé e não
lhe bolearam o casco...

Pedia você para o beijar
e festejar, e eu só dei
com penduricalhos
e a repulsa do papiro
engelhando os tempos
modernos sobre seu
estigmatizado corpo.



############
O

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