segunda-feira, 30 de maio de 2022

As Duas Ucrânias e as Eleições desde a Revolução de Maidan até hoje.

Dando seguimento ao texto anterior, na sequência da Revolução de Maidan, a Crimeia e as partes mais populosas das províncias de Donetsk e Luhansk não voltaram a participar nas eleições ucranianas.

Yulia foi libertada da prisão. Podia-se pensar que, na eleições presidenciais que se seguiram à Revolução de Maidan, ela que era vista no Ocidente como a resistência da Ucrânia às maldades russófilas de Yanukovich iria ganhar. Não foi assim. Uma figura de segunda linha da política ucraniana que já tinha sido ministro duas vezes e que cavalgou esta revolução um pouco na esteira de Yuschenko, um milionário fabricante de chocolates mas não só, Petro Poroshenko.


Poroshenko ganhou por maioria absoluta. A sua votação era menor no leste mas as diferenças estavam a esfumar-se, embora as zonas "mais a leste" não tivessem votado, menos ainda a Crimeia. Importante para a vitória fora o aparecimento de um novo actor na política ucraniana, o ex-boxeur Vitali Klitschko, que fundara um partido com uma plataforma (mais outra) asnti-corrupção. Klitschko desistiu a favor de Poroshenko e em contrapartida concorreu para Presidente da Câmara de Kiev, e ganhou. O Partido das Regiões, de Yanukovich, que fugira para a Rússia, teve um candidato oficial, que só teve 3% dos votos.  Várias figuras do partido também concorreram individualmente, Era o fim do partido, grande parte do seu eleitorado "do outro lado da linha de batalha".
Em eleições parlamentares que aconteceram no fim de 2014, o cansaço da figura de Tymoshenko voltou a ser evidente. As eleições foram repartidas, com dois vencedores, o "Bloco Poroshenko" e a Frente Popular, uma dissidência do partido de Tymoshenko dirigida por um ex-PM, tiveram ambos entre 20 a 25% dos votos, e coligaram-se para governar. O partido de Tymoshenko teve 6% dos votos.  Um "Bloco de Oposição" recebeu 9% dos votos no leste, o que restava da russofilia.


Poroshenko foi um presidente com altos e baixos. Defendeu a língua ucraniana, a igreja nacional ortodoxa ucraniana, a descomunização de monumentos e nomes de ruas, mas não conseguiu resolver a guerra do Donbas. Aproximou-se da União Europeia e propôs um referendo sobre a adesão à NATO, não a considerando porém uma prioridade. A luta contra os oligarcas e a corrupção teve altos e baixos, com as "partes baixas" a acontecerem mais para o final do mandato. A intriga governativa foi acontecendo. O povo ucraniano chegou à conclusão de que era mais do mesmo.
E esta sensação preparou o caminho para as Presidenciais de 2019. 
No canal televisivo mais visto na Ucrânia, o 1+1, desde há anos um actor chamado Volodymyr Zelensky, encarnava um anónimo professor de história que, após uma sua inspirada aula ter "viralizado"na internet, acaba por ser eleito... Presidente da Ucrânia! A popularidade desta série era enorme. Tão enorme que o salto da tela da televisão para a realidade foi antecipado e em 2018 a produtora registou o nome da série, "Servidor do Povo", como nome para um... partido político.
Volodymyr Zelensky anunciou a sua candidatura no canal 1+1 a 31/12/2018, pouco antes da mensagem de Ano Novo do Presidente Poroshenko. A sua campanha foi online e nada tradicional. Defendeu o óbvio: o fim da guerra, o fim da corrupção, melhor qualidade de vida. Quem não?
Na segunda volta Zelenksy ganhou as eleições a Petro Poroshenko com mais de 70% dos votos. Zelensky vendeu-se muito eficazmente aos ucranianos. No "seu canal de origem", durante a campanha eleitoral, por ex., aparecia a comentar uma série documental sobre... Ronald Reagan, o outro Presidente-actor.


O mapa acima mostra o mapa das eleições na primeira volta. A maré verde é a votação em Zelensky e nota-se que abrange toda a Ucrânia Central e do Sul. O roxo é Poroshenko, vencedor em parte importante da Ucrânia Ocidental, mas onde perdeu em quase toda a linha na segunda volta. O azul escuro mostra as linhas de resistência da eterna candidata Yulia Tymoshenko, o azul claro corresponde à votação em Yuriy Boyko, o candidato do que restava do Partido das Regiões, pro-russo, que só ganhou praticamente em Luhansk e no Donetsk, não em Odessa, nem em Dnipro, nem em Kherson. A dicotomia Este-Oeste ucraniana fora tomada de assalto por Zelensky. Na segunda volta ele ganhou em todas as províncias excepto em Lviv.

O novo Presidente antecipou Eleições Parlamentares. E aqui também o recém-constituido Partido dos Servidores do Povo conseguiu uma inédita maioria absoluta no Parlamento Ucraniano. Mais de 70% dos deputados eleitos eram deputados pela primeira vez. Acontecera um terramoto.



O mapa acima mostra os resultados nos círculos eleitorais de deputado único - o sistema eleitoral ucraniano tem um sistema eleitoral misto com uma lista nacional mais estes círculos uninominais. O Partido dos Servidores do Povo, como se pode ver, tomou conta da Ucrânia. Com 43% dos votos ganhou 254 dos 450 lugares em disputa. Os dois partidos sucessores do Partido das Regiões pro-russo conseguiram 43+6 deputados, Yulia Tymoshenko ficou com 26, Poroshenko 25, o Partido Holos ("Voz") do físico teórico e cantor rock Vyatoslav Vakarchuk, 20. 

Zelenksy empossou depois destas eleições o primeiro governo monocolor da curta história da democracia ucraniana.

Até 24 de Fevereiro de 2022 como estava a correr a presidência Zelensky? Não muito bem. No fim de 2021 a sua taxa de aprovação era inferior a 30%, embora ainda fosse o político ucraniano mais  popular. Só que agora era apenas o menos impopular...
A promessa de "acabar com a guerra no Donbas" tinha-se tornado impossível de cumprir. Os acordos de Minsk na realidade tinham duas versões inconciliáveis, a versão ucraniana e a versão russa do texto escrito. A Zelensky não conseguiu dar a volta a isto.
A luta anti-corrupção começou com o levantamento incondicional de qualquer imunidade dos deputados ucranianos. No entanto o "pardo" Ministro do Interior de Poroshenko, Arsen Avakov, manteve-se no cargo até 2021. E também em 2021 o escândalo dos Pandora Papers revelou ter Zelensky e entourage interesses em várias companhias offshore, algo que foi explicado acontecer "como a qualquer homem de negócios ucraniano". Então e a diferença? Em 2020 foram levantados vários processos criminais contra Petro Poroshenko e alguns aliados seus que, no Ocidente Europeu, foram considerados ter motivação política. Poroshenko optou por sair do país durante uns tempos e só voltou no início de 2022, mantendo-se sob a mira da justiça.
A democracia com Zelensky ganhou contornos de "democracia directa", com plataformas de diálogo directo online entre o povo e o governo. O parlamento, dominado por um só partido, perdeu importância. Zelensky zangou-se com o seu número dois no Partido, que era o porta-voz do parlamento, e demitiu-o. Zelensky também foi demitindo ministros e primeiro-ministros conforme as coisas corriam bem ou menos bem. A governação em grande parte emanava dum grupo de conselheiros muito próximo de Zelensky.Desde 2020 Zelenmsky envolveu-se numa guerra aberta com o Tribunal Cosntitucional, constituido maioritariamente por juízes do tempo de Yanukovich, sem chegar a nenhuma vitória relevante. Finalmente Zelensky viu-se envolvido numa embrulhada com Donald Trump quando este o chantageou para investigar os negócios ucranianos de Hunter Biden, o filho de Joe Biden. Foi este o tema da tentativa de impeachment a Donald Trump. Zelensky era retratado como um "ingénuo". A gestão da crise Covid correu mal e foi vivida em guerra permanente entre o governo central e os poderes locais. Os poderes locais estavam bem legitimados por eleições acontecidas em 2020 onde o partido de Zelensky não conseguiu ganhar nenhuma das 4 maiores cidades.  
Zelensky era só mais um numa série de Presidentes Ucranianos a falharem no seu compromisso com o seu Povo? As forças de bloqueio pareciam ser conseguir ultrapassar a inexperiência e inconstância do Presidente.

Em 24 de Fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia. E quando ofereceram a Zelensky a evacuação ele respondeu "EU NÃO PRECISO DE UMA BOLEIA, PRECISO É DE ARMAS!". 







sábado, 21 de maio de 2022

As duas Ucrânias existem mesmo? Os resultados das Eleições Ucranianas a partir da Revolução Laranja até à Revolução de Maidan.

Quando a revolução Laranja aconteceu, em 2004, a Ucrânia pertencia à Comunidade de Estados Independentes, criada após a dissolução da União Soviética, embora nunca tivesse ratificado o seu Tratado constituinte. Por outro lado fornecera o terceiro maior contingente de forças a invadir o Iraque em 2003, lá se mantendo (saíram em 2008). Putin condenou a repetição da segunda-volta das eleições presidenciais e considerou tudo uma interferência clara do Ocidente. A Revolução Laranja era uma revolução "importada", ainda mais tendo em consideração que a Ucrânia... não produzia laranjas! Como podia um fruto estrangeiro ser um símbolo de uma revolução nacional?

Sendo a sua grande aliada na Revolução Laranja, Viktor Yuschenko nomeou Yulia Tymoshenko Primeira- Ministra. Em Junho de 2005 a revista Forbes considerava Yulia Tymoshenko a terceira mulher mais poderosa do mundo. Três meses depois era despedida do cargo. Porquê? Rapidamente os aliados viraram rivais. Viktor Yuschenko, eleito dentro de uma lógica anti-corrupção, começou a conviver com facilidade e "harmonia" com a oligarquia. E isto complicou a vida a Tymoshenko, a quem as calúnias de fraude fiscal e enriquecimento ilícito também aconteciam com uma calculada periodicidade. A sua tentativa de atacar os privilégios de uma empresa pertencente ao genro de Leonid Kuchma foi a gota que levou ao despedimento. Yushenko, o homem que em 2004 em plena campanha eleitoral tinha sofrido uma terrível tentativa de envenenamento com dioxina que lhe desfigurou a cara, o bancário das contas certas de dez anos antes. era agora um amigo de oligarcas. 

As Eleições Parlamentares de 2006 fizeram a radiografia da situação política ucraniana. Por alteração da Lei Eleitoral só partidos com mais de 3% dos votos iriam ter assento parlamentar. Sobraram cinco.

O candidato derrotado em 2004, o homem contra quem a Revolução Laranja tinha sido feito, Viktor Yanukovich, recebera 1/3 dos votos com o seu Partido das Regiões. O Bloco Tymoshenko ficou em 2º lugar com 22% dos votos e o Bloco Nossa Ucrânia de Yuschenko ficou apenas em 3º lugar com 14%. Restos do antigamente, os Socialistas de Morosz e os Comunistas de Symonenko receberam 5 e 4%. Como se pode ver no mapa abaixo, Yanukovich fazia o pleno a leste, Tymoshenko ganhava na Ucrânia central, Yuschenko resistia parcialmente a oeste, apesar de todas as notícias negativas sobre a sua incapacidade enquanto Presidente em fazer frente à oligarquia. 


Perante estes resultados e com a memória das Revolução Laranja ainda recente, foi dado como adquirido que Yulia Tymoshenko iria ser Primeira- Ministra. Ao fim de alguns conturbados meses de negociação tal não aconteceu. O homem que tinha perdido a Revolução Laranja, Yanukovich, ia ser o novo Primeiro-Ministro com os votos do seu partido, dos Comunistas, dos Socialistas e de 30 deputados "fugitivos" do partido de Yushenko. Este aceitou a solução mas obrigou todos os partidos a assinar uma negociada "Declaração de Unidade Nacional" cujas palavras eram inócuas, quem assinava não. A Unidade Nacional era reafirmada, a defesa regional da língua russa aceite, a questão da adesão à NATO era mencionada e aparecia por escrito que seria submetida a referendo. Tymoshenko não assinou esta declaração. 
Yuschenko no entanto nunca deixou Yanukovich governar em paz e em 2007 conseguiu que se procedesse a novas Eleições Parlamentares antecipadas, depois de uma prolongada crise institucional. O Partido das Regiões entretanto tinha encetado relações próximas com Putin e o seu partido Rússia Unida. Mas nestA crise Yanukovich nunca solicitou ajuda ou pediu qualquer intervenção de Putin, pedindo antes intermediação de outros países europeus.

  

O resultados foram similares a 2006 mas com o partido de Yulia Tymoshenko afirmando-se mais como a alternativa ao Partido das Regiões. De referir que as províncias onde Tymoshenko tinha menos de 10% eram... Luhansk, Donetsk, a Crimeia e a cidade de Sevastopol. 
Desta vez foi concedido a Yulia Tymoshenko a possibilidade de formar governo e resistiu à pressão do Presidente Yushenko para fazer uma espécide governo de "unidade nacional".
O segundo governo Tymoshenko teve uma vida muito difícil pois conviveu com uma dura oposição no parlamento por parte de Yanukovich mas também do Presidente Yuschenko, o grande rival cujo partido tinha perdido protagonismo. O governo aliás teve que sobreviver à crise financeira de 2007-2008 e a uma crise de compra de gás à Rússia onde Yuschenko interferiu malevolamente e que aconteceu em 2009.

No início de 2010 aconteceram Eleições Presidenciais. Yanukovich voltou a apresentar-se como candidato e a sua campanha foi financiada por Akhmetov (o homem mais rico da Ucrânia e dono do Shaktar Donetsk) e concebida por Paul Manafort, anos depois um dos estrategas de Trump. A sua figura foi polida e posta a brilhar: origens humildes, uma subida a pulso, etc., etc. Yulia Tymoshenko era a grande adversária. O Presidente cessante não conseguiu evitar candidatar-se e sofreu uma derrota humilhante, recebendo apenas 5% dos votos. Na segunda volta Yanukovich ganhou, por uma pequena margem a Yulia  Tymoshenko. Esta contestou os resultados, para nada. Verdade seja dita que as sondagens já apontavam para a vitória de Yanukovich, o homem que tinha sido derrotado pela Revolução Laranja.


No mapa acima a polarização ucraniana está be,m à vista. A província de Donetsk era a mais populosa do país, e por isso acabou por decidir a eleição. De notar porém que a diferença entre os dois candidatos foi escassa. Se Yulia  Tymoshenko tivesse tido um voto esmagador na Transcarpátia, aquela tira horizontal mais a oeste e que era um reduto de Yushenko, ela talvez tivesse ganho. Mas Yushenko não recomendou o voto em ninguém para a segunda volta, dizendo que o país ia ter de escolher entre "o mau e o péssimo". Dnipro, Odessa, Kharkiv, votaram por Yanukovich. A Revolução Laranja, mlorta em 2006, estava agora enterrada e profundamente. Yanukovich era Presidente.
Ainda no ano de 2010 era assinado o contrato prolongamento do porto de Sevastopol à Frota Russa do Mar Negro até 2042, tendo como contrapartida gás natural mais barato. E Yanukovich excluiu dos seus planos uma adesão da Ucrânia à NATO.

Tymoshenko não saiu só do governo. No final de 2011 acabou presa após vários processos com várias acusações sobre utilização incorrecta de fundos, corrupção, etc. Vários ministros seus já tinham sido acusados antes. Só seria libertada depois da Revolução de Maidan.
Os anos da Presidência Yanukovich serviram para consolidar o peso dos seus próximos na oligarquia ucraniana. O grupo de poderosos à volta de Yanukovich era conhecido como "A Família" e o centro do grupo era o filho de Yanukovich, Oleksandr. O primeiro governo por ele empossado tinha 29 ministros, o segundo maior governo então da Europa. Deles oito eram vice-primeiros-ministros, oito eram da província de Donetsk e, pela primeira vez na curta história dos governos ucranianos, eram todos homens.
Houve eleições parlamentares em Outubro de 2012. 



O Partido das Regiões de Yanukovich ganhou, com 30% dos votos, o Partido Mãe-Pátria de Tymoshenko ficou em 2ª com 25% dos votos. Um redesenhar da lei eleitoral virou um bocado o tabuleiro a favor do Partido das Regiões. Com 14% dos votos apareceu como novidade o partido do boxeur reformado Vitali Klitschko, os Comunistas tiveram 13% e um partido de extrema-direita, Svoboda, 10%. O partido de Klitschko, com a sua linha anti-corrupção, foi o primeiro partido ucraniano cujos votos eram menos polarizados por regiões. O Svoboda, pelo contrário, quase só tinha votos na Galícia, o extremo-oeste do país. Yanukovich contnuou a governar com o apoio dos comunistas. Estes queriam uma maior ligação à Rússia e à Bielorrúsia. Yanukovich estava de acordo. Quando Yanukovich fez marcha-atrás num acordo comercial com a União Europeia, aconteceu a Revolução de Maidan.

Com a Revoluçãoc de Maidan a Rússia invadiu a Crimeia e parte importante do Donbas, incluindo as capitais das duas províncias, Donetsk e Luhansk. Estes territórios nunca mais participaram em nenhuma eleição ucraniana.







 

terça-feira, 17 de maio de 2022

As duas Ucrânias existem mesmo? Os Resultados das Eleições Ucranianas desde 1991 (o Ano da Independência) até à Revolução Laranja.

Comecemos não em 1991 mas um ano antes. As primeiras eleições parlamentares razoavelmente (ou pelo menos um pouco) livres que aconteceram na Ucrânia foram em 1990, e o Partido Comunista teve 75% dos votos e três quartos dos parlamentares do ainda chamado Soviete Supremo. Este parlamento pouco durou e serviu sobretudo para fazer o referendo à independência da Ucrânia em 1991 para legitimar a declaração de independência do país. No final de 1991 o Partido Comunista Soviético Ucraniano foi ilegalizado por um parlamento onde 3/4 dos deputados tinham sido eleitos como "soviéticos" e "comunistas". Os mesmos deputados reorganizaram-se em diversos partidos com nomes mais ou menos de esquerda, na realidade criando blocos parlamentares de interesses, com eventuais pendores regionalistas.

No mapa de 1990 notamos então que o "Bloco Democrático", uma coligação de gentes da oposição quer antiga quer recente, e que teve 20% dos votos, conseguem ganhar em alguns distritos do ocidente, com especial incidência na província de Lviv, a capital desta Ucrânia Ocidental, cidade que que só fôra russa/soviética menos de um século ou seja, a partir do final da 1ª Grande Guerra.



Nas eleições presidenciais de 1991 ganhou um ex-comunista que se apresentou como independente e que já tinha sido o Presidente do Parlamento/Soviete Supremo de 1990, Leonid Kravchuk, com mais de 60% dos votos. O seu maior adversário foi Viacheslav Chornovil, um oposicionista de antes de 1990, várias vezes preso e representando o Movimento do Povo da Ucrânia, herdeiro do Bloco Democrático. Chornovil teve 23% e ganhou em três províncias do oeste, a saber: Lviv, Ternopil e Ivano-Frankivsk, numa distribuição que repete a do mapa acima.



O terceiro candidato, Levko Lukianenko, era outro herói da oposição anti-comunista e obteve 4,5%, dividindo o voto não "ex-comunista". Lukianenko foi muito depois declarado Herói da Ucrânia ao mesmo tempo que os seus escritos xenófobos e anti-semitas assustaram muita gente. Chornovil morreu em 1999 num acidente de carro ainda por resolver quando se preparava para nova candidatura presidencial. 

Leonid Kravchuk foi Presidente 3 anos, até 1994. Negociou a entrega das forças nucleares estacionadas na Ucrânia à Rússia, recebendo em troca uma garantia de integridade territorial que no entanto foi quebrada pela Rússia 20 anos depois. Tentou ainda resolver os diferendos sobre a Crimeia e  a Frota do Mar Negro. Era um homem nascido em 1934 na Província de Rivne, no Noroeste, então ainda sob domínio polaco. A economia ucraniana porém começou a sofrer o impacto das privatizações, da corrupção rampante e das oligarquias nascentes, pelo que em 1994 foi derrotado por um seu ex-primeiro ministro Leonid Kuchma. Retrospectivamente, tendo falecido a 10 de Maio do presente ano, é considerado um patriota e bem lembrado pelo seu trabalho na Presidência, talvez pelo contraste com o que se seguiu.
Em 1994 em Março aconteceram novas eleições parlamentares, as primeiras após a independência. Das dezenas de partidos que se apresentaram só cinco tiveram mais de 2% dos votos, e só um deles mais de 10%, um Partido Comunista Ucraniano refundado. Mais de metade dos deputados foram eleitos em listas independentes. Depois das eleições o parlamento organizou-se em blocos mais ou menos de "esquerda", "centro" e "direita", com alguma fluidez de migração entre blocos.
No mapa destas eleições a cinzento estão os eleitos independentes e a vermelho os "neo-comunistas", eleitos sobretudo  a leste.


Em 1994 em Junho aconteceram eleições presidenciais que tinham sido previamente negociadas entre Kravchuk e o seu ex-primeiro ministro Leonid Kuchma, um independente alinhado às forças ex-comunistas e que dominava o parlamento. Kravchuk teve o apoio dos seus ex-oponentes, nomeadamente Chornovil e, portanto, teve mais votos a ocidente, mas perdeu. Kuchma ganhou com os votos do leste e do sul da Ucrânia, como se nota neste mapa: 


O extremar das posições era agora notório: em Lviv Kuchma teve pouco mais de 5% dos votos, em Luhansk teve 88%.

Mas quem era Leonid Kuchma? Quatro anos mais novo do que Kravchuk, foi também criado no PCUS. Nascido em Chernihiv, fez-se engenheiro em Dnipropretovsk, a cidade ucraniana que tinha produzido os Sputniks e os mísseis balísticos.  Foi presidente 11 anos e nos seus mandatos as privatizações progrediram, a corrupção também, e foi sabiamente alternando em aproximações quer ao Ocidente quer à Rússia, esta parte para contentar os seus eleitores a leste e apaziguar Putin, no poder desde 1999. Em 1997 cedeu o uso por aluguer de Sevastopol para a Frota Russa do Mar Negro, obtendo assim gás natural barato.  Kuchma repetiu o que Kravchuk já tinha abordado, o interesse (talvez apenas dito para ser ouvido por ouvidos ocidentais) em aderir à NATO. Portanto esta questão da Ucrânia querer aderir à NATO tem quase trinta anos... E a Ucrânia mandou tropas para o Iraque em 2003!
Leonard Kuchma sobreviveu a duas eleições parlamentares e foi reeleito em 1999. Pode dizer-se que para o bem e para o mal Kuchma marcou a Ucrânia. O grosso da oligarquia foi "inventada" por ele. Em 11 anos nomeou sete primeiro-ministros, sempre após negociações com as várias facções parlamentares e os variados grupos de interesses. O terceiro, de seu nome Pavlo Lazarenko, fugiu para os Estados Unidos em 1999 onde acabou preso por fraude e branqueamento de capitais. Durante o seu ano de governo terá roubado 200 milhões de euros ao estado ucraniano. 
As eleições parlamentares de 1998 não foram consideradas 100% justas e imparciais pela OSCE. 


A vermelho estão os comunistas a verde-azulado o bloco oposicionista do Movimento do Povo, que continuavam com uma boa votação a oeste. De qualquer forma, o parlamento continuava muito fragmentado o que permitia a Kuchma ir negociando os sucessivos governos. Os partidos estavam quase completamente tomados pelos oligarcas. 
Nas Eleições Presidenciais de 1999 Kuchma teve como opositor o dirigente do Partido Comunista Petro Symonenko, um candidato fácil de derrotar, talvez escolhido a dedo, dado o seu programa ser apenas comunismo "clássico" e não agradar a quase ninguém. Apesar da OSCE ter considerado estas eleições irregulares, Kuchma terá possivelmente conseguido mesmo boas votações a oeste, como reacção a Symonenko.


O seu maior opositor, Chornovil, morrera num misterioso acidente de carro meses antes. 
No fim de 1999 Kuchma surpreende ao nomear Viktor Yuschenko, o banqueiro que tinha resolvido a hiper-inflação e sobrevivido ao default russo enquanto Presidente do Banco Central da Ucrânia. A sua Vice-Primeira Ministra e Ministra para a Energia era Yulia Tymoshenko, uma empresária criada em Dnipro que tinha começado a sua actividade profissional a alugar cassettes-video e agora trabalhava na área da energia. O governo de Yuschenko teve bons resultados económicos, Yulia Tymoshenko afrontou a oligarquia da energia. Como resposta prenderam-lhe o marido, acusaram-na de corrupção e Yuschenko acabou por aceitar a sua demissão. Yuschenko saiu também em 2001, em minoria. Entretanto em 2000 fora asssassinado o jornalista independente Georgiy Gongadze. Progressivamente foram aparecendo provas do envolvimento de Kuchma nesta morte. Nas ruas havia manifestações cujo lema era "Ucrânia Sem Kuchma".
Mantendo o seu ziguezague político Kuchma nomeia Viktor Yanukovych em 2002 para Primeiro Ministro. Yanukovych era um homem nado e criado em Donetsk e ligado à "mafia de Donetsk". Yuschenko e Yulia Tymoschenko encetaram um movimento progressivamente mais agressivo de oposição a Kuchma. Kuchma evitou ser implicado oficialmente na morte de Gongadze quando aceitou sair graciosamente de cena em 2004-5. Ficou com ordenado vitalício de presidente, segurança, casa, etc., etc. Munido desta imunidade, participou como mediador do governo ucraniano nas negociações de Misnk para tentar resolver a crise do Donbas.

Kuchma ia deixar a Ucrânia com tropas no Iraque e ligações económicas estreitas com a Rússia. Como Primeiro-Ministro um homem de Donetsk, Yanukovych. Entretanto tinham acontecido eleições parlamentares no início de 2002. Por esta ordem os votos foram distribuidos por Yuschenko (Bloco Nossa Ucrânia, incluindo os restos da velha oposição),  os comunistas de Symonenko, os pro-russos de "Ucrânia Unida", o Bloco Tymoschenko, os Socialistas de Oleksandr Morosz e os "Sociais Democratas" pro-russos de Medvedchuck. A eleição em duas voltas permitiu que os blocos pro-russos tivessem uma representação "desproporcionada" no Parlamento. Continuou a haver algumas queixas sobre a seriedade nestas eleições, embora menos do que em 1998 ou 1999.  Após a eleição muitos deputados migraram entre partidos/blocos, como "sempre".
Em 2004 as Eleições Presidenciais foram então entre Yuschenko e Yanukovich. Yuschenko ganhou a primeira-volta à justa e quando os resultados da segunda-volta deram fraudulentamente a vitória a Yanukovych, a Revolução Laranja aconteceu. Ouve uma repetição da segunda-volta e Yuschenko ganhou. Como apoiantes-chave Yuschenko tinha Yulia Tymoshenko e Oleksandr Morosz. Até o comunista Symonenko se opunha a Yanukovich. E no entanto este ainda conseguia mais de 40% dos votos?
Eis o mapa da segunda segunda-volta das Presidenciais de 2004: 

 



Notemos que Yanukovich aparentemente ganhou mesmo assim em Kharkiv, Dnipro, Odessa... Mariupol. 







quinta-feira, 12 de maio de 2022

O Donbas.



O Donbas é uma invenção recente. Até ao final do séc. XVIII as terras do Donbas eram a parte leste dos territórios disputados durante séculos entre os Otomonos, os Russos e os Polacos e onde, temporariamente, algum auto-governo por Cossacos criou o primeiro ensaio de uma "nação ucraniana"-Mas isto será para outro texto. 

O Donbas foi uma invenção ao mesmo tempo russa e ocidental. Grosso modo hoje corresponde às privincias de Luhansk e Donetsk, as mais a leste da Ucrânia. "Don" é de Donets, o rio que domina esta zona e é afluente do Don, "Bas" de "basin", estando aqui a referir-se à enorme riqueza em carvão do subsolo destas províncias. Em 1795 um industrial inglês a trabalhar para a Imperatriz Catarina inaugurou uma fundição junto a uma vila de cossacos que acabou por ser Luhansk. Mais importante foi a criação por John Hughes de uma fundição, várias minas de carvão e uma pequena cidade junto a uma pequena vila já existente e que depois veio a ser Donetsk. O ferro que era fundido vinha de Kryvyi Rih, na Ucrânioa Central.

O carvão criou o Donbas. A União Soviética investiu fortemente na região. Os russos foram imigrando e imigrando. O resto é história e está acontecer neste preciso momento.

Onze coisas sobre o Donbas:

A Azovstal é apenas a terceira maior produtora de aço da Ucrânia. Os seus bunkers, com origem na 2ª Grande Guerra e que podem aguentar um ataque nuclear, foram utilizados em 2014 numa tentativa de conquistar a cidade pelos separatistas. Mariupol veio para a rua em 2019 para protestar pela poluição com origem em Azovstal e algumas medidas foram tomadas para diminuir a mesma. 

Donetsk tem este nome apenas há 61 anos. Antes chamava-se Stalino, em honra de... vocês sabem quem.

Na margem direita do Donets nas partes mais elevadas da provínica de Donetsk fica o Mosteiro de Sviatohisrk Lavra, dando o nome ao Parque Natural das Montanhas Sagradas. Reconstruído no séc. XIX sobreviveu aos sovietes e retomou funções eclesiásticas no séc. XXI. Tem servido como refúgio de civis na actual guerra de invasão Russa e por agora só perdeu uns vidros e umas portas pela explosão de um míssil que destriuu uma ponte sobre o Donets. O problema de ter o rio e uma ponte logo ali perto. 

Em 1991 Donetsk e Luhansk votaram maioritariamente pela independência da Ucrânia. Com percentagens de comparência e aprovação superiores às obtidas na Crimeia. Verdade seja dita que então a Rússia estava uma grande confusão.  

Meotyda é um nome antigo para a costa sul do Donbas e o nome dado ao Parque Nacional Natural que fica entre Mariupol e a fronteira com a Rússia. Maeotis era o nome grego para o Mar de Azov. O parque é conhecido sobretudo como uma zona de nidificação de aves. A parte leste estava na posse dos separatistas desde 2014. 

Em 2015 milhão e meio de ucranianos tinham fugido à Guerra do Donbas com destino a outras regiões da Ucrânia. Outro milhão teria saído da Ucrânia, a maior parte para a Rússia, umas dezenas de milhar para a Europa.

O Shaktar Donetsk foi transferido em 2014 para Kiyiv e portanto joga em Kiyiv há 8 anos. O outro clube de Donetsk, o Metallurg, foi extinto em 2015. O Shaktar pertence a Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia, nascido em Donetsk, um muçulmano com ascendência tártara. A tomada da Crimeia e a Guerra do Donbas cortaram a sua riqueza em 2/3. Pertence-lhe a Fundição de Azovstal, ou o que resta dela. Estrategicamente apoia Zelensky e considera Vladimir Putin um criminoso de guerra.

Denis Pushilin é o actual Presidente da República Popular de Donetsk. Em 2013 era o Presidente de um Partido Uxcraniano sediado em Donetsk com a sigla "MMM", que jogava com um conhecido esquema de enriquecimento piramidal de que ele antes tinha sido vendedor. O partido tinha tido 0,08% nas eleições locais. Um ano depois era o porta-voz dos separatistas de Donetsk e hoje é Presidente. Considerado uma marioneta de "forças ocultas" ainda o será, ou não. A sua inscrição em Dezembro  de 2021 no partido Rússia Unidad de Putin foi-lhe entregue em mão por Dmitry Medvedev. Esteve em Mariupol nas comemorações do 9 de Maio e prometeu uma reconstrução da cidade que a direc cionasse "para o turismo".

Em todos os estudos de opinião efectuados peri-2014, a população do Donbas maioritariamente queria permanecer ucraniana.

A população do Donbas é 60% Ucraniana, 35% Russa, grosso modo. Nas cidades os Russos equilibram o mapa e podem até ser mais. 70 a 80% da população fala russo como primeira língua.

O Presidente que antecedeu Pushilin na República Popular de Donetsk, Alexander Zakharchenko, morreu em 2018 num café em Donetsk num atentado à bomba. Foram culpados os ucranianos. Podem ter sido os Russos. Ou outros separatistas. O grau de liberdade no Donbas é zero. Quantas mais Repúblicas Populares há no mundo? Duas. A da China e a da Coreia do Norte. Esta diz ser "Democrática e Popular".

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Algumas coisas sobre a Crimeia.

 


A Crimeia é um losango peninsular pendurado da barriga da Ucrânia. Não é pequena, tem 27000 km2 aprox., embora represente apenas 4% da área da Ucrânia, e se formos comparar com a superfície total da Rússia, nem é bom pensar. A Crimeia representa para a Rússia (e também para a Ucrânia) de alguma forma o "seu" Algarve, geograficamente e historicamente. Conquistada no século XVIII aos Otomanos, deu ao Império Russo o acesso definitivo ao Mar Negro. A metáfora pode seguir, pois muitas cidades da costa da Crimeia foram e são destinos populares de férias, e, por outro lado, a conquista foi feita contra um potentado e uma população que então era predominantemente muçulmana. Dois países mas um só "Algarve". Portanto... 

Vinte coisas sobre a Crimeia:

Um istmo largo de 7 km une a Crimeia a norte ao resto da Ucrânia. Um braço de mar largo de 3 km apenas separa a Crimeia a leste da Rússia ou separava, hoje existe uma enorme ponte a ligar a Crimeia à "Pátria-Mãe" Russa. Este estreito de Kerch é a porta de entrada para o Mar de Azov, um braço do Mar Negro onde, por ex., fica a cidade portuária de Mariupol. Apesar de as leis dos mares obrigarem a uma circulação sem restrições neste estreito, com frequência os barcos russos interceptaram e chegaram mesmo a arrestar barcos ucranianos.

A Crimeia é constituida por uma zona de estepe fértil, produtora de cereais, frutas e vinho, que progride na costa sul para uma cadeia montanhosa que constitui a beira sul da península, com a altitude máxima de 1545m. Esta cadeia montanhosa separa-se a sul do Mar Negro por uma plataforma estreita de pouco kms que na ponta sul se anula. As montanhas apagam-se no extremo sudoeste para dar espaço a Sevastopol.

Nas montanhas da Crimeia estão os restos fortificados de uma seita judaica que teve especial importância na Crimeia:  os Karaítas. A fortaleza de Chufut-Kale foi abandonada no séc XVIII  quando foi permitido aos Karaítas viver onde quisessem na Península. Os dirigentes da seita deram-se a grandes trabalhos para tentar provar aos Czares que não partilhavam a culpa do assassínio de Cristo dos restantes judeus pois na Antiguidade já viveriam na Crimeia, constituindo os herdeiros duma tribu perdida de Israel que teria migrado para Norte (!). Os Czares parece que acreditaram E assim os Karaítas escaparam ao anti-semitismo da Rússia Czarista. O mesmo aconteceu quando da invasão nazi. Os nazis "inventaram" uma origem "goda" para os Karaítas e pouparam-lhes a vida. Os soviéticos não foram tão caridosos mas não houve deportações em massa. A maior parte dos Karaítas no entanto emigraram, quer para Israel quer para os Estados Unidos. Como que acreditando na sua própria mentira durante o séc. XX foi defendida uma origem populacional turca e na União Soviética os ritos perderam muito do seu carácter judaico. Os estudos genéticos apontam-nos como judeus, ponto. Haverá ainda uns 500 karaítas na Crimeia.

Os Nazis resistiram a acreditar na origem não-judaica dos Karaítas e pediram a opinião a vários rabis Judeus. Estes confirmaram essa asserção, a de que os Karaítas não eram Judeus. Salvaram assim, supomos que conscientemente,  milhares de vidas.

A Famosa Conferência de Yalta que aconteceu em 1945 entre Estaline, Churchill e Roosevelt localizou-se na cidade-balneário mais conhecida da Crimeia e do mesmo nome, situada nessa beirinha sul, protegida pela montanha. A Conferência realizou-se mais precisamente no Palácio Livadia, a antiga residência de verão dos Czares Russos. Na votação para as Sete Maravilhas da Ucrânia, em 2007, o Palácio Levadia ficou em... 8º lugar.

Outras cidades-balneário têm nomes com comprovada origem grega, eg Feodosia ou Eupatoria. Eupatoria fica no oeste da península e possui uma lindíssima mesquita obra de Mimar Sinan, o arquitecto da mesquita Suleymaniye de Istambul (séc XVI). Feodosia fica na costa leste e fica à sombra de um castelo construído por Genoveses. Os Genoveses dominaram o comércio do Mar Negro e muita da costa da Crimeia durante os séculos XIII-XV. Em Feodosia houve um enorme mercado de escravos que prosperou sob o domínio do Kanato da Crimeia.. De notar que a etimologia da palavra "escravo" procede da palavra "eslavo", pois milhares de eslavos apanhados nas estepes a norte eram vendidos como escravos para os Reinos do Próximo Oriente.

Mas o sinal mais evidente da antiga presença da Grécia na Crimeia é o conjunto de ruinas da cidade de Chersonesus e o seu entorno rural, constituído como Património da Humanidade em 2013, um ano antes da invasão russa. O conjunto monumental fica muito perto de Sevastopol, a atestar a localização estratégica deste porto. Para além dos restos de edifícios antigos, existem restos das divisões da terra, da sua organização. Chersonesus subsistiu com terra viva até ao séc. XV, e durante muitos séculos o seu entorno era o maior exportador de vinhos do Mar Negro.

A população da Crimeia tem pouco ou nada a ver com a população do Donbas. O grosso da população do Donbas é na mesma ucraniana embora russo-falante. A maioria da população da Crimeia é russa, ponto. Não era assim até o início do século XX mas uma imigração russa sempre favorecida pelo estado e a deportação maciça dos Tártaros da Crimeia (a população nativa original) por Estaline para a Ásia Central virou o tabuleiro étnico. Os ucranianos pelo seu lado nunca foram a maioria étnica. 

Os Tártaros são um povo da família turca que migrou, integrado nas invasões mongóis, para ocidente, tendo a posteriori criado vários estados nas estepes russas, de sorte variável. O estado que durou mais tempo e que foi mais marcante foi o Kanato da Crimeia que, aliado aos Otomanos, sobreviveu até ao final do séc.  XVIII, quando foi conquistado e extinto por Catarina, a Grande. Na pequena cidade de Bagçasaray, no interior da Crimeia, fica o antigo palácio dos Kãs da Crimeia, com sua mesquita, harém, zonas de residência, jardins, cemitério. Os trabalhos de restauro executados pelos russos em 2017 não terão corrido muito bem.

A gastronomia original da Crimeia é a gastronomia Tártara. Sobre itso parecem estar todos de acordo.

A anexação da Crimeia aconteceu entre Fevereiro e Abril de 2014 em resposta à Revolução de Maidan. O Presidente ucraniano em fuga, Vyktor Yanukovych, pediu por escrito a 1 de Março que Vladimir Putin enviasse tropas para repor a legitimidade e a segurança na Ucrânia. Mas as tropas russas já tinham entrado disfarçadamente na Crimeia 2 dias antes e a 2 de Março dominavam a totalidade da península. Tinham antes efectivamente acontecido manifestações pro-russas em Sinferopol, sim, tinham acontecido. Pouco depois fez-se um referendo onde 97% dos votantes optaram pela anexação.  Quem mais protestou contra a invasão russa da Crimeia foi a minoria tártara. Alguns foram expulsos, muitos simplesmente fugiram para o Ocidente, para a Turquia. Os Ucranianos fugiram ou "mudaram de pele": os números após a anexação apontam para menos 35% ucranianos do que antes. 

No referendo para a independência da Ucrânia a população da Crimeia votou maioritariamente a favor da independência. Mas a Crimeia era uma "República Autónoma SS" dentro da RSS da Ucrânia, pelo que esta autonomia criou sempre muita fricção entre a Crimeia e Kiyv. Crimeia desenhou a sua própria Constituição, que a Ucrânia primeiro aceitou e depois recusou. Em 2014 Kiyv tinha limitado bastante a autonomia da Crimeia. E tinha recusado a lei que defendia o uso da língua russa onde ela fosse considerada etnicamente relevante. Na Crimeia quase não se fala ucraniano. A Russia inventou os resultados do referendo. Mas naquele momento talvez a anexação democraticamente tivesse vencido. Hoje em dia a Crimeia tem a autonomia própria de qualquer República Russa: nenhuma. As liberdades civis não existem para as minorias nem para as opiniões divergentes. 

A Crimeia é um destino turístico e tem um site em inglês muito interessante chamado "Visit Crimea". Lá é referido que no 1º semestre de 2019 mais de 2 milhões de turistas tinham entrado na Crimeia, mais de metade através da famosa Ponte da Crimeia. Sendo um site pos-anexação, faz questão de referir que 10% dos visitantes eram ucranianos. No lindíssimo vale de Panagia, no meio das montanhas da Crimeia, fôra inaugurado o Museu Universal das Línguas, onde se podia ouvir reconstituições de como seria ouvir falar Grego Antigo, Maia, Sumério... as línguas, as línguas.

Sevastopol não pertence propriamente à Crimeia. Cidade criada a 1783 para ser a sede da Frota Russa do Mar Negro, é uma cidade com um único projecto na vida que é esse. Por isso é uma "Cidade Federal Russa", um estatuto muito específico só partilhado por Moscovo e São Petersburgo, tal a sua importância. No tempo soviético era uma "cidade-fechada", para lá entrar era preciso uma autorização especial. Sendo a cidade mais populosa da Crimeia, também votou a favor da independência da Ucrânia em 1991 (57% a favor, abstenção de 40%). Em Sevastopol a esmagadora maioria dos habitantes é russa. Com a independência ucraniana o porto passou a ser o pouso de duas Frotas do Mar negro, a Russa e a Ucraniana. Uma convivência muito difícil. Sevastopol (o porto) foi "alugada" pelos russos, tendo como contrapartida eg a promessa do fornecimento de gás natural barato, até 2042. Em 2014 a Frota Ucraniana foi tomada pelos russos, que só devolveram depois parte. E o contrato de aluguer foi esquecido.

A Crimeia foi palco de guerras bem mais sangrentas do que a Anexação de 2014, dada a sua localização estratégica. A Guerra da Crimeia aconteceu entre 1853 e 1856 e começou por ser entre a Rússia e o Império Otomano. O Czar Nicolau I achou que conseguiria tornar todo o Mar Negro um mare nostrum, incluindo o Bósforo. França e o Reino Unido discordaram e apoiaram os Otomanos, avançando para a guerra com armas mais modernas e couraçados que dizimaram as forças russas. Sevastopol foi conquistada após um ano de cerco. Para os russos foi uma enorme humilhação e deu-lhes a medida do seu atraso perante as potências da Europa Ocidental.

A Península de Kersch é a península que a leste "sai" da península da Crimeia e que termina a 3 km do território russo de Krasnodar, quase fechando o Mar de Azov. Dela parte a tal famosa Ponte da Crimeia mandada construir por Putin. Na Península de Kerch estão os restos de várias antigas colónias gregas, a mais conhecida Panticapaion, onde hoje se localiza a cidade de Kerch. O Estreito de Kerch era chamado pelos antigos gregos de Bósforo Cimério, em contraponto ao Bósforo Trácio, onde se situa Istambul. Panticapaion chegou a ser a capital de um reino helenístico que sobreviveu uns séculos, fornecendo cereal ao império romano, por ex. O reino estendia-se pelos dois lados do estreito.

Para o norte de Kerch fica o Lago Syvash, uma longa constelação de lagunas que separam a cara nordeste do losango da Crimeia do Mar de Azov. Lagunas de águas paradas e nada profundas que no verão se transformam parcialmente em lama, sal, água putrefacta.  O Syvash também é conhecido pelo "Mar Podre" e é uma importante zona Ramsar (Convenção Internacional para a proteção das Zonas Húmidas).

A Crimeia foi o último reduto do Exército Branco em 1920. Quando o Exército Vermelho atravessou o Syvash e atacou as forças Brancas pela lateral, o seu destino ficou decidido. As últimas forças da Rússia Branca embarcaram dos portos da Crimeia com destino para Constantinopla, evacuando mais de cem mil militares e civis. Quem ficou para trás não terá sobrevivido aos bolcheviques.

É na Crimeia que todas as histórias começam ou acabam. O Principado de Teodoro-Mangup existiu desde o século XIII até 1475, com uma ligação instável ao Império Bizantino. Localizava-se nas montanhas da Crimeia. Sobreviveu 22 anos à conquista de Constantinopla, sendo portanto o último território "bizantino" a ser subjugado pelos Otomanos. O Principado era também conhecido como "da Gótia", pela aparente existência de um substrato populacional "godo" do qual depois se perdeu o rasto.

Cimérios, Citas, Alanos, Godos, Gregos, Romanos, Hunos, Cumanos, Bizantinos, Mongóis, Tártaros, Russos e Ucranianos. Nazis Alemães. A Crimeia o prémio apetecido. Ainda hoje.