sábado, 28 de fevereiro de 2015

Zero.

Ontem conheci um nervoso diferente. Já nem me lembro do que lanchei. Saí e entrei do computador, da televisão, de um livro. Tomei um duche. Subi para a elíptica onde queimei exactamente trinta e seis quilocalorias. Era preciso jantar, mas não havia estabilidade hemodinâmica para a sua confecção. Abri uma lata e despedi-me de umas sardinhas em azeite, indubitavelmente portuguesas.  Calcei-me. Fui outra vez à casa de banho.  Pensei pela enésima vez: odeio esta barba. Lavei os dentes. Peguei no carro e dirigi-me para baixa. Onde estacionar? Uma volta, duas, três. Pronto, porque não dar lucro à famosa invenção portuguesa que deu novas inércias ao mundo, a via verde? Saí para a rua mas sem um saia-casaco escuro, como cantava o Rui Veloso. Havia um frio moderado. Nunca houve um cachecol na minha vida, porquê? Teria de voltar a uma casa de banho? Tomei um descafeinado e a coisa estabilizou. Entrei, saí e voltei a entrar no destino, um antigo colégio. A meio caminho tive a surpresa de uma menina ter crescido. Comecei a utilizar a máquina das palavras para acalmar. Subimos final e definitivamente até ao antigo Colégio Almeida Garrett, as nove e meia da noite aproximavam-se. Entrámos. Obrigaram a sentar-me na primeira fila. Apagaram-se as luzes.

Omloop Het Volk Nieeuwsblad.

A época de ciclismo começa quando? A Tour Down Under, no fim de Janeiro, não é mais do que um amuse-bouche, com a força do verão australiano a permitir corridas em Janeiro e o facto da forte presença australiana no pelotão internacional. Do outro lado dos oceanos há uma prova argentina, San Luis, com as mesmas funções.
Em Fevereiro começam as provas por etapas onde as figuras começam a aparecer – e foi assim a semana passada. Houve a sequência do Golfo, as provas que o dinheiro produz – Dubai, Qatar e Oman. Esta última a única com alguma rugosidade no terreno. E, no sul, Andalucia e a Volta ao Algarve. Este ano Andalucia ganhou no casting e teve direito a dois duelos Contador-Froome, muito,  muito interessantes.
Mas, mas, mas… o ciclismo de estrada é história e a história ensina que a época começa a sério na Bélgica e na prova que se corre hoje, a Omloop Het Volk Nieeuwsblad, a primeira das clássicas. Há frio sempre, chuva frequentemente, até neve, às vezes. Há sempre os “muros”, colinas inclinadas e duras que definem as clássicas belgas, e o piso empedrado, o temível pavée.
Um ano de ciclismo não tem só uma história, tem várias a acontecer durante o ano. A história Contador-Froome já começou há 15 dias. A história “o que vão fazer os nossos” também já começou – Costa 11o em Oman, Machado 3o no Algarve. A história da vingança da equipa Sky  do mau ano –que teve em 2014 já começou – domínio completo na Andalucia e no Algarve.


A aventura de Bradley Wiggins nas Clássicas, por ex., começa hoje. Há outras histórias a acontecer, também.
Streaming... now.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A mercearia do Arnaldo.

No largo dos Campos ficava a mercearia Flor dos Campos. Durante anos fui lá fazer compras com o meu Pai todos os sábados. Até aposto que a minha Mãe nunca lá entrou.
O dono chamava-se Serafim e era um homem grande. Mas o empregado que fazia a mercearia mexer chamava-se Arnaldo. E, ao sábado, aquela mercearia era um mundo. Que mexia.
Entrávamos, o meu Pai cumprimentava-os. E começávamos. A maior parte das coisas estava para cá do balcão e à disposição do cliente. Assim sendo, o meu pai, sem qualquer lista, começava a deambular sem pressa por entre as prateleiras e pelos caixotes abertos e ia escolhendo os itens a comprar. Estes eram pousados num determinado sítio do balcão onde se ia construindo um monte. Nas voltas pela mercearia num determinado momento o meu Pai dizia: 'Ó Arnaldo, queria bacalhau!'. E o Arnaldo ao fim de algum tempo perguntava de que qualidade ou quanto ou para quê (no sentido de se para cozer ou para outro prato) e cortava o bacalhau sob o olhar vigilante do meu Pai. No fim o meu Pai dizia 'Ó Serafim, queria pagar!' e ao fim de algum tempo a conta lá era feita, com uma Bic em papel daquele grosso que também servia, por ex. para embrulhar coisas. Juntava-se ao monte das compras doís ou três itens que estavam 'para lá' do balcão, fiambre, por ex., que era cortado no momento. A conta era verificada, lembro-me, com uma prova dos nove feita ali ao lado. Os sacos eram de plástico e azuis ou cinzentos. O meu Pai despedia-se com duas palavras e um aceno. Cá fora um Opel Kadett verde claro acomodava as compras. Isto foi o meu sábado de manhã durante anos.
 
Na rua Manuel Arala abriu o supermercado Novo Horizonte, o primeiro em Ovar. O meu Pai, pragmático, passou a fazer uma parte das compras num lado e outra parte no outro. O Serafim adoeceu, acho. Restava o Arnaldo. No Novo Horizonte o meu Pai também conhecia o gerente e o sub-gerente, trocando com eles alguma que outra palavra. Ovar era e é uma terra pequena. Mas não era a mesma coisa.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Nada.

Hoje ouvi na Euronews a resposta à pergunta: "Quanto é que cada contribuinte europeu já gastou com a crise da dívida grega?".

A resposta correcta é: NADA!

Os governos europeus têm financiado o governo grego com dívida que contraem no mercado financeiro normal, a juros mais baixos do que os juros que os gregos pagam. 

Ou seja: os governos europeus LUCRAM com a crise da dívida grega.

Uma cerimónia.

Há noites onde na minha casa acontece uma cerimónia do chá. Que passo a explicar. 

Lavados os dentes em sincício e cuspida toda a maldade, disfarçada por uma espuma branca, para que a noite seja em paz dirijo-me para a cozinha onde escolho um copo alto. Encho-o com quatro dedos de água e aqueço-o sessenta segundos em micro-ondas na potência máxima, ou seja, novecentos watts. A água sai quase a ferver. Procedo à imersão nessa água de um saco com folhas esmagadas de tília. Digo tília e, portanto, não se trata verdadeiramente de chá mas de uma infusão. Vamos esquecer  o detalhe, que “cerimónia da infusão” não bate igual. O copo alto a fazer a infusão encerro-o com outro copo preenchido por três dedos de água, sendo que o encaixe permite aumentar a rapidez da infusão e manter o calor. O tempo de espera que agora se adivinha como obrigatório serve para a colocação de um banco, o acertar de um despertador, o discutir a hora de reinício da vida cá dentro, da vida lá fora, bem como o seu financiamento. A infusão já está feita e acolhe com agrado uma colher de chá de mel que se dissolve com afinco. Os dois copos são transportados para a mesa de cabeceira. O quarto já deve neste momento estar com iluminação focal que permita dirigir a atenção de olhos diligentes mas cansados e presbíopes para um livro do qual se vão ler algumas passagens. Negoceia-se o fim da leitura, bem como o descansar do livro. Bebe-se, agora sim, a infusão, e no fim a água que antes a cobria. Apaga-se a luz. Pratica-se uma mnemónica que afugenta e alimenta. Promete-se sonhar com anjos, aproveitando que não existem. 

A cerimónia que descrevi serve para bem terminar um dia. Tomara que nunca acabasse.

Dêdêtê

Para os neófitos e neófitas, este blogue durou oito anos. Existiu entre doenças. Morreu de morte natural.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

La Caixa vai comprar BPI.

Tivémos maus banqueiros (Salgado), temos bons bancários (Ullrich). Pena serem apátridas (Horta Osório tb.). O BPI vai ser vendido ao La Caixa, aparentemente. Que pretende comprar o NovoBanco. Tudo aponta. Numa fusão que pretende optimizar activos (entrega-se desempregar gente). O maior banco em Portugal pode deixar de ser português. E siga a rusga. Estragamos o que criamos (Salgado), obedecemos com brilhantismo (Ullrich). Foda-se prá raça!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Há neve no Montemuro - 2.

Saí de Cinfães um pouco descrente. A temperatura que o meu carro acusava era a mesma desde Valongo e não prenunciava neve no Montemuro. Uma hora levava já de caminho, era tarde para desistir e a estrada estreita para inversões de marcha.
Finalmente abandonei a companhia forte do rio Douro e comecei a subir paralelo a um vale encaixado dum pequeno afluente do grande rio chamado Bestança. Rede Natura 2000, ah pois é! A tarde já descia e os tons amarelos marcavam o outro lado do vale, onde a espaços aldeias inclinadas dominavam campos e socalcos. Aqui e ali um verde autóctone. Muito ao fundo um rio. Pedra e pedra




e pedra. Eu subia, parava, fotografava e subia. Finalmente  o Portugal de que eu gosto mais, este. A montanha humana onde Portugal nasceu. E o termómetro começou a descer. Curvas e curvas, o dourado do outro lado, deste lado o começo da sombra da noite, no nosso inverno tão precoce.

Até que comecei a ver ao fundo as eólicas da Gralheira e do Montemuro e algumas zonas mais claras – granito polido, seria?
Uma curva mais e a geada transforma-se em escassa neve que começa a debruar o caminho. A atenção redobrada ao gelo na estrada não impede o êxtase do espectáculo da neve cada vez mais presente. O Montemuro é bastante descampado. Nas Portas do Montemuro, onde os concelhos de Cinfães e Castro Daire – isto é, o Douro e a Beira Alta, se comunicam, a altitude ultrapassa os 1200 metros, ou seja 200 metros mais alto do que o Alto de Espinho na IP-4. Ali está uma estação de serviço da Galp, a mais alta também de Portugal, segundo me disse o senhor que me serviu um café. O carro acusava meio grau negativo. À mão direita um estradão gelado levaria até às eólicas e ao ponto mais alto da serra. Olhando para trás o Douro, ainda e sempre mas, pela distância, feito uma poça de brincar. A primeira vez que fiz as Portas do Montemuro foi a partir de Castro Daire. Assim avancei uns kms  para sul e voltei para trás, para confirmar. Assim o nome da serra ganha significado. À nossa frente um enorme muro de pedra rolada impede a passagem. Cada pedra tem uma mancha branca na capa nascente, escondida do sol. A estrada vira à esquerda para evitar este muro e franquear as portas do dito. Assim eu fiz e, por ser quase noite, voltei pelo caminho mais lógico,
Cinfães, Entre-os-Rios, Rio Mau, Gondomar. Em Rio Mau, terra que me fornece doentes e lampreias, cumprimentei mentalmente a minha amiga São. Eu não gosto de lampreias mas gosto da São e conheço quem goste de lampreias, portanto tudo bem. Em Rio Mau a EN  108 finalmente desce ao lado do rio Douro e este empresta-nos com a sua presença todo o seu poder, mesmo de noite.

Cheguei tarde a casa porque tinha havido um acidente na VCI. Mas não importa: tinha pisado neve!

Há neve no Montemuro.

Ontem não consegui ir do trabalho para casa. Precisava de ver a neve. Decidi pegar no carro ir até às Portas do Montemuro.

Eram três da tarde. Liguei o navegador do Google Maps. Este (ou melhor esta) passou os primeiros quinze minutos desorientada mas depois atinou quando já eu tinha decidido enveredar pela A4. Seguimos até Penafiel e depois foi descer para Termas de S.Vicente e Entre-os-Rios.

A divisão territorial portuguesa está por fazer. Os distritos são uma invenção relativamente recente e sem sentido, e mesmo as províncias “de sempre” são adaptações de noções vagas tradicionais a um mapa desenhado no século XIX. A A4 é a auto-estrada do Vale do Sousa. Mas o que é o Vale do Sousa? 
O Norte e o Centro em Portugal têm uma dicotomia muito marcada Litoral/Interior. Dicotomia económica, social, cultural e, para começar, geográfica. O Vale do Sousa é a região mais atrasada do Litoral Português. Era também, até à poucos anos, a região mais fértil - não no sentido agrícola mas  reprodutivo - da Europa Ocidental, à frente do Vale do Ave. As regiões portuguesas com nomes de rios parasitam rios de valor, marcantes: Minho, Douro e (riba- e além-) Tejo. Alguém alguma vez viu o Sousa? Conhecemos a foz dos cruzeiros no Douro. Encaixado em ladeiras como todos os rios por cá, mal se vê sob as pontes que sucessivamente lhe faltam ao respeito. O Vale do Sousa é geograficamente o corpo central dum terreno rugoso, agreste, acidentado e martirizado por acácias, eucalipto, indústria, pedreiras e gente que se chama Douro Litoral. Será Verde o vinho, mas aqui não está a gentileza do Minho.

Cheguei a Penafiel, terra que fica num alto, como diz o nome, vizualizei o hospital – também lá em cima – onde amigos trabalham e sofrem acrise gripal, e derivei para a estrada que desce pelas Termas de S.Vicente até ao simbólico ponto de Entre-os-Rios. As Termas estão a ser recuperadas. Entre-os-Rios, depois do drama, foi sobrevoada por pontes, viadutos, acessos e rotundas. Os mortos continuaram mortos, e a água dos dois rios, Douro e Tâmega, continua por ali majestosamente a confluir em variável harmonia. Passado o rio há que subir para Cinfães.
São mais de vinte quilómetros até Cinfães. Que ao distrito de Viseu pertence mas da Beira não é. Cruza-se o Paiva e é logo a subir. Nestes vinte e tal km estamos sempre a olhar para o poderoso rio que nos contraria lá em baixo, a fazer o seu percurso em sentido oposto. Este sim é o rio que define, estas terras são o que este rio dá e tira, este rio e os seus tributários. É uma estrada portanto que requer cuidado e não permite grande disfrute do que se quer ver. Progressivamente o desastre urbanístico e ambiental dos concelhos de Valongo, Paredes e Penafiel cede o lugar a uma natureza mais coerente, a socalcos mais vivos, a uma presença humana mais esparsa. O rio está umas centenas de metros abaixo e, em frente, o mosteiro de Alpendurada. Recuperado mas não sei bem para quê. À sua volta não há um verde que perdure, como se a envolvente tivesse sido bombardeada. No monte que sobrejaz uma enorme pedreira dita a sua cicatriz. E continuamos a subir. Com paciência chegamos a Cinfães. Que se desenha à volta da estrada que segue na encosta. Virada para o Douro. E a adivinhar a serra para onde vamos. Pequena vila arranjada pelo (seu) poder autárquico, tem umas que parecem ser estátuas de/à Cutileiro para celebrar  o (seu) Carnaval. As estátuas estão ao correr da rua que assim é a terra. A vista para o rio define Cinfães.

A rapariga brasileira do Google Maps avisa-me de que em trinta minutos chegarei ao destino.