quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Três.


"Ruas de cidade / como eu gosto dela
sem sol nem céu alto / cinzento anilado
sobre os monumentos / gatos à janela
os vasos regados / roupa pendurada
fumo de tabaco / nas cervejarias
num odor de tintas / os engraxadores
o desvão de escadas / das retrosarias
sobem a notários / e mercadorias
o estuque solto / com um calendário
os postigos abrem / ao incendiário
abrigo do Tejo / chuva de janeiro
que faz fugir gente / sob guarda-chuvas
gabardinas vãs / tu numas escadas
as calças de ganga / húmidas, sadias
parecia que tinhas / um boné de vidro
onde se perdiam / reverberações;
ou eram apenas / essas ilusões
em que Deus acolhe / as recordações.
A chuva que bate / numa clarabóia
o vento que corre / nas paredes velhas
as fasquias podres / algeiroses rotos
caleiras tapadas / fúnebres valetas
fundos sem vazão / tudo nos convida
à separação."



Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz Com Um Toldo Vermelho, ed. Presnça, 1990.

Dois.

"Juntamos toros e gravetos
para a lareira. Na mata
flutua o crepúsculo.
Marcos de luz a findar.

Vagas de zimbro, escórias,
o arpão do esquecimento.
A súbita melancolia da casa.

As janelas abrem para o rio
e a barra e a ilha com névoa.
Podias ser tu de céu a céu.

A inquieta certeza da poesia
não admite questões. Descobre-se
ao virar da vinha, quando chegamos
ao tanque e não há ninguém."



Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz Com Um Toldo Vermelho, ed Presença, 1990.

Um.

"Levantar-se, ir à cozinha buscar pão. Início de um enredo onde juntam outra voz à sua despedida. Chuva nos pitosporos, nas gazânias, nos cardos. Nas vidraças fechadas pelo temporal.

Cinzento ultramarino do crepúsculo. Chegar do supermercado com um saco branco. Retirar as cebolas, o leite, os cereais. Pegar na faca, descascar uma pera, sorrir. Em breve ouvir a campainha e a tua voz, primeiro pelo intercomunicador.

As camisolas acrílicas das pessoas de domingo. Os seus grossos gritos sobre coisas banais. Como chamam cães, se transformam em detritos. A caminhada bruta dos sapatos, os gestos pesados. Escrever sobre o esterco das repressões.

Das aves que nas estacas dos arbustos recolhem a humidade da manhã uma sobe ao peitoril. Gris e esverdeada uma canção junto dos vidros. No calor do quarto a aparente liberdade do canto, essa ave: decrever como regressa ao manto rasteiro dos zimbros e depois alcança o mistério dos canaviais, perdida na indefinição da luz.

A sombra da janela na parede. O sol de outono a descer no mar. O arbuto, o funcho, a murta. Uma discreta música por onde se pressente a quimera da vida. Adormecer.

Contar acerca do aiôco: sem concha, mas semelhante às lapas; do tamanho das uvas tintas; escondido no vazio dos cachos; ao apertá-lo ser ferido por uma picada mortal."



Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz Com UmToldo Vermelho, ed Presença, 1990.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Ás de Copas.

A Maria Amélia era professora, licenciada em Filosofia. Dezasseis anos a sentir-se inútil, um estorvo, algo desnecessário na vida que acontecia cá fora. Todos lhe diziam que não. Todos lhe mentiam. E, depois, sentia-se a envelhecer. Se a sua área fosse não filosofia mas sim, sei lá, limpezas. Ninguém esquece como se limpa, é esfregar e pronto, esfrega-se e vê-se, literalmente vê-se se ficou limpo ou não. Mas ela ontem já não se lembrava daquele filósofo daquele século, e no outro dia...
Pode ou não ter sido a tentativa de cortar os vasos cervicais que lhe provocaram o internamento por trombose cerebral. Os exames, como muita da filosofia, ficaram a meio diagnosticar. Veio parar à minha consulta. A Maria Amélia deu-me o prazer de frequentar a minha consulta durante três anos. Ironizava com o atraso das consultas, com o seu excesso de peso, com os seus infortúnios no ginásio. Perguntava-me se ia ter Alzheimer e eu perguntava-me como a mais inteligente das minhas doentes podia sofrer desse - e com esse - medo. Um dia veio com uma máscara equimótica fantástica, a cara parecia ter sofrido uma sessão de tortura, tinha caído. Rimo-nos imenso com isso. Ela parecia bem, parecia. É a frase fodida do costume. Há aproximadamente um ano apareceu-me diferente. A sentir-se inútil, um estorvo, um empecilho para a vida de todos que a rodeavam. Senti-me incluído nestes que ela tanto atrapalhava. Fiquei tonto, agoniado. Liguei a máquina de brincar, ela não prometeu voltar. Ela não prometeu voltar. Um mês depois iludiu a vigilância da família - dedicada. Pegou no carro, foi até à praia de Leça, deixou-o correctamente estacionado mas sem o fechar. E entrou pelo mar dentro.

domingo, 27 de setembro de 2015

Ás de Ouros.

Tive o prazer de trabalhar vários anos com a sra. enfermeira Antónia, no piso 8. De vez em quando ela dizia-me que me ia pedir para ver um amigo com muita gordura no sangue mas com alguns "problemas" e, portanto, estava internado no Conde Ferreira, nunca percebi se era dela amigo pura e simplesmente apenas porque ela também trabalhava no Conde e muitos dos doentes mais frequentes lá da casa eram para ela... amigos. 
Um dia conjugaram-se as constelações e, numa tarde de permanência pude observá-lo. Os valores analíticos eram estratosféricos, lá fiz a minha prescrição, lá dei os meus conselhos, lá espalhei a minha simpatia. O senhor tinha sido representante da Mercedes em Angola, ainda tinha todos os contactos, pediu-me o meu, queira vender-me dois Mercedes pelo preço de um, aliás pelo preço de meio Mercedes, e lá voltava à conversa sobre Angola, A enfermeira Antónia sorria, todos sorriamos, havia a circunstância de as análises estarem mal, de eu não precisar de nenhum Mercedes, de todos nós sabermos onde isto ia parar.
Não o voltei a ver, internado que estava no dia que tínhamos combinado, a enfermeira Antónia mostrava-me umas análises de vez em quando, baixava a voz para contar os desastres, as vendas loucas, os desgostos familiares, a eterna instabilidade. E eu passava uma receita. Nunca mais o vi. 

The Irrational Man - Woody Allen.






Woody Allen faz filmes como quem... faz anos. Faz portanto... um filme por ano. 

The Irrational Man é o filme de 2015. Woody Allen volta aos USA mas não a NY, sim a uma das instituições americanas, um campus universitário, onde Joachin Phoenix é um professor de filosofia - Abe Lucas - em crise existencial e Emma Stone uma aluna especial  - Jill Pollard - que vai ter um caso com ele.
Woody Allen é um génio. Por anos que viva continuarei a disfrutar da sombra de alguns dos seus filmes. "Matchpoint" foi a última obra de génio, mas depois houve algumas coisas mais a aproveitar. "The Irrational Man" cansou-me.
O filme tem uma voz off que não se cala - ora Jill, ora Abe a darem as suas explicações - porque isto foi assim, porque procederam assado. Não se calam. Abe é mais um Joachin Phoenix em destruição mas que antes fez voluntariado em dez sítios, arriscou a vida em quinze, etc. até à náusea. Um amigo morreu numa mina... onde? no Iraque, claro. Portanto, nada interessa, nada conta, ergo não há erecções há mais de um ano. Que chatice! Do pouco que podemos ver das suas aulas elas são um aborrecimento completo, e o seu verbo não é assim tão bom. Há, claro, também a professora dorme-com-todos, de seu nome Rita, que quer que ele a leve para Espanha -  e ouve-se uma guitarra andaluza. 
Há um turning point onde - não vou abrir mão e não vou contar - Abe decide tomar uma decisão. Essa decisão devolve-lhe toda a força - e o vigor, o vigor - perdida, um sentido para a vida, etc. O idílio com Jill parece ganhar foros não de Salvaterra mas de perfeição. A decisão tomada é desconhecida de todos mas a esperta da Jill descobre-a e discorda mesmo, discorda! - e quebra-se a corrente. Nem ele acaba por viajar com Rita para Espanha nem ficamos a saber porque raios o complacente namorado da Jill a volta a aceitar ao fim de tanto folguedo.

A moral e a culpa e a eterna dança entre o certo e o errado e onde definimos a linha nunca abandonam a filmografia de Woody Allen. Há também o jogo do acaso. As vozes em off e os diálogos, sempre um pouco "subidos" na temática  - não sei se para gozar com o que será o chit-chat habitual num campus americano - nunca páram de falar de Kant, Kerkegaard, e outros filósofos com ou sem "K". Rita, a figura mais credível de todo este filme não deixa de soltar algures que Abe "sabe falar bem mas às vezes o conteúdo é talvez um pouco vulgar e genérico" - uma deixa que quase parece uma crítica ao filme dentro do próprio filme. 
Nada há de perfeito nem no crime que acontece nem no filme. A figura de Abe não sobe à altura da sua monstruosidade como o filme não assume a espessura de alguns raciocínios que são ditos, parece, só para que conste e para encher ou pour épater l'americain.
Woody Allen parece gostar de criar figuras masculinas abjectas, como em "Matchpoint". Aqui conseguiu criar outra. Mas entre as mulheres que estão do outro lado, confesso, Jill aborreceu-me bastante enquanto Rita mereceu o meu voto de confiança. Mesmo que ela, chegada a Espanha, fosse obviamente ter uma desilusão...

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Ás de Espadas.

O Zé era de Oliveira do Bairro, filho de militar. Alto, sério, com uma barba cerrada, feita. As palavras eram poucas. Eram os anos oitenta, o curso de Medicina era então mais do que hoje a vinda de muita gente da província para a grande cidade, então ainda não tão grande, mas desproporcionadamente grande para as terrinhas de origem. Lembro-me de uma noite estar no início da 31 de Janeiro a ver a montra de uma discoteca que entretanto já fechou. O Zé aproximou-se e cumprimentou-me: "Olá. Apercebi-me de que eras tu". "Porque tu quando estás parado apoias-te sempre sobre a perna direita". Falei-lhe do Zé Bastos - que ia para a rádio - foi, ainda lá está, falámos do Rui Veloso, como não falar do Rui Veloso naquele tempo, concordámos em como dentro de uns anos seria como o Sérgio Godinho, um compositor de canções com um repertório reconhecido. Acertámos.
Tempos depois partilhámos um comboio e falámos... de raparigas. O Zé confidenciou-me o quanto lhe era difícil entendê-las. O Zé sem saber estava a falar com o rapaz mais inexperiente em raparigas à face da terra. Se fosse hoje, mais de trinta anos passados, dir-lhe-ia que sim, que aí está o Adamastor e a aventura, Cila e Caríbdis, e que, mesmo hoje, e porém e portanto. Ou que as raparigas não é entendê-las, é outra coisa, outro verbo, talvez o verbo primeiro e intraduzível...
 
O Zé começou com dificuldades no 5º ano. Evitava espaços circunscritos, não ía às aulas. Achava que o vigiavam, que o perseguiam. Graças aos colegas de turma terminou o curso. Era inteligente - são sempre, estudou os exames, fez as cadeiras. Foi iniciar as suas práticas para uma cidade do interior, era muito dedicado aos doentes que via - ao detalhe - na Urgência. Pedia-lhes o contacto, a morada, ia depois vê-los a casa, para estranheza dos próprios.
Um belo dia foi para uma fonte no centro daquela cidade do interior e despiu-se enquanto discursava.
 
Vi-o no meu hospital anos depois, possivelmente a tirocinar numa qualquer especialidade. A cara era a do costume mais a medicação que por ali devia circular. Talvez não me tenha reconhecido. Não lhe dirigi a palavra.

Registo de consulta de Oftalmologia.

"90 anos
 GHT fo.li.no. / perdas de fix.
 od = 0.8 a 0.9 ? cc +0.75x-1.50x110º
 oe = 0.5 ? cc +1.50x-2.00x90º + 3.00 esf
 pa = 14 / 14 mmHg
 fo idem
 ...!"


Nota: feito por um Oftalmologista de quem sou amigo e que considero um óptimo profissional - mesmo!

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Dimíter Ánguelov

Dimíter Ánguelov nasceu na Bulgária e vive em Portugal desde 1981. Publicou vários livros de contos e de aforismos, em português.
Um dos livros chama-se "Nihil Obstat" e foi editado pela e étcétera - o teclado do meu velho computador recusa-se a fazer o óbvio símbolo - em 1995. Uma homenagem aqui também ao recentemente falecido Vitor Silva Tavares.

Aqui vão alguns aforismos:


"Abraçámo-nos e sentimos que éramos feitos de pura distância.

#

O homem suporta tudo menos a igualdade.

#

A exaltação da imaginação deve-se muitas vezes ao pequeno espaço que ocupa.

#

O que nos assusta na serpente é o serpentear, e na cobra, o nome.

#

Mesmo para se sentir perdido é preciso ter algumas coordenadas.

#

Cada descoberta nos indica um novo caminho sem nos dizer para onde ele vai.

#

Os grandes mentirosos nunca usam grandes mentiras.

#

O papagaio deixa a impressão que sabe porque não hesita.

#

Prometeu não foi condenado por ter roubado o fogo mas por tê-lo divulgado.

#

Nas grandes epidemias morrem mais flores que pessoas.

#

A felicidade é aquele momento em que não sentimos necessidade de nada."

Desperta.


"Já não vejo o som mas só a lama
E acelero.

Quero atravessar este país depressa
Antes da morte.

Já não oiço a luz mas só o sono
E travo

Contigo, com os teus freios cansados
E as tuas jantes tortas.

Sigo esta pista de silêncio
E arrabalde de velhos.

Arrastamos connosco a história cega
E acrobata deste tempo.

Chamo a isto uma gincana
Nas traseiras da Europa

Já não viajamos, vamos em ponto morto
E a meta é ali

Desperta."







Armando Silva Carvalho, in O Amante Japonês, 2008.

domingo, 20 de setembro de 2015

Aí vêm uma eleições.


Agora que no outro extremo do problema, a Grécia mantém o governo que tinha, a saber: o único governo de - putativamente, já disse  o quanto gosto desta palavra? - extrema-esquerda da Europa, nós por cá estamos em campanha para as nossas eleições!

E que vamos eleger, que vamos? Deputados... E quantos, quantos? Duzentos e trinta... E quantos vai ter a coligação do governo? De noventa a cento e cinco, give or take... E o PS? De noventa a cento e cinco, give or take... Depois haverá vinte e cinco a trinta e cinco deputados distribuidos por PCP-PEV  e BE, e, possivelmente, um deputadito para o Livre e outro para o Marinho Pinto.
Portanto, que governo vamos ter? Um minoritário, que será de quem chegar primeiro, PAF - um acrónimo que, infelizmente, como sabemos, é toda uma doença - ou PS. É impossível o PS assumir qualquer acordo de incidência parlamentar com o PCP ou o BE. A distância é demasiada. Se acontecer, será uma surpresa do tamanho do universo. E é impossível hoje por hoje em Portugal acontecer um governo à alemã PS-PSD-CDS, a única maioria parlamentar estatisticamente possível, um governo que seria a coisa política mais interessante a acontecer neste país desde os anos oitenta. Porque, afinal, esta coisa de que "eu sou de esquerda e eles de direita", chegando à hora da verdade, no "arco da governabilidade e numa Europa pos-moderna, não devia contar, certo? Na Alemanha não contou... Nota: assumo que, ganhando o PS, a PAF não se desfaça para haver o "jogo" de uma coligação PS-PSD ou PS-CDS... - de Passos Coelho não espero este comportamento, de Paulo Portas espero, tudo!

Por isso vou votar LIVRE,  e apesar de não simpatizar por aí além com o Rui Tavares, o qual não vou ajudar a eleger visto votar no Porto: neste distrito é impossível eles atingirem 2,4%, o valor que concede o primeiro deputado. Mas nunca se sabe... não é, Ricardo Sá Fernandes? O importante é saber que o LIVRE nunca servirá para viabilizar coisa nenhuma - não vai ter deputados que cheguem.

Nunca se sabe.. pode o António Costa ainda acabar Ministro da Administração Interna do Pedro Passos Coelho, ou vice-versa... tínhamos a diversão garantida, era uma espécie de Jesus no Sporting, não se podia pedir melhor!

Bom, portanto, tudo como dantes QG em Abrantes, conquanto nenhuma das bestas tenha a maioria absoluta. Um governo minoritário não mexe grande merda. Passos Coelho diz que foi ele a dar a volta. Não, foi Portugal. E assim vai continuar a ser. É possível que depois das eleições as agências de rating voltem a castigar Portugal com um "downgrade" de "lixo" a "lixo menos", mas o que eu quero mesmo é que as agências de rating se fodam! 

Acham o meu voto inútil? Naaa, não é na PAF nem é no PS. Só por aqui já é de uma utilidade extrema!

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A locomotiva.

A última consulta de hoje foi com um simpático e diabético sexagenário de Ermesinde. Informou-me que a Metformina lhe provoca diarreia. Aquela que eu lhe prescrevi em Maio. Não lhe pedi análises: seriam não de controlo mas de descontrolo da situação.
Este homem trabalhou como controlador de tráfego ferroviário. Perguntou-me: "Pelo tempo que me fez esperar eu pensei que tinha ficado retido na 2ª circular!" "Porquê?, perguntei. "É que ouvi dizer que aconteceu lá um desastre com uma locomotiva..."

Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes


 
"A vida nem sempre é fácil, meus amigos! Em Julho de 2006, ocorre uma pequena calamidade. A rodagem do filme, prevista para o mês seguinte, é adiada para data incerta. Falta dinheiro à produção para um argumento exigente, a ser rodado no interior de Portugal durante as festas de Agosto, e opções de casting ao realizador.
Rapidamente recuperado do choque, este decide partir para o terreno com uma câmara de 16 mm e uma equipa composta por cinco elementos – pequena mas brava! – e filmar tudo aquilo que lhe parecesse digno de registo, comprometendo-se a reformular a ficção em conformidade. Esta história e as que se lhe seguiram poderão encontrá-las no filme; embora, por amor à verdade, se deva reconhecer que as aparências iludem e que certos realizadores têm uma propensão genética para a mistificação.
Documentário? Ficção? A meio deste filme vemos uma ponte: a ponte romana de Coja sobre o rio Alva, da qual se atira Paulo “Moleiro”. Sem querer parecer Confúcio, diria que de qualquer uma das margens que esta ponte une se avista perfeitamente a outra. E que o rio é sempre o mesmo."
 
Este texto aparece no site da produtora.
O filme, que viu a luz em 2008, começa então em fogo lento, como se lhe faltasse dinheiro e actores. Pelos vistos faltaram. Fez-se no interior do concelho de Arganil. E com as gentes de lá. O truque do filme dentro do filme é velho. Nós compramos e as gentes de Arganil também.
No mesmo site aparece a sinopse:
 
"No coração de Portugal, serrano, o mês de Agosto multiplica os populares e as actividades. Regressam à terra, lançam foguetes, controlam fogos, cantam karaoke, atiram-se da ponte, caçam javalis, bebem cerveja, fazem filhos. Se o realizador e a equipa do filme tivessem ido directamente ao assunto, resistindo aos bailaricos, reduzir-se-ia a sinopse: «Aquele Querido Mês de Agosto acompanha as relações sentimentais entre pai, filha e o primo desta, músicos numa banda de baile». Amor e música, portanto."
 
Um pouco de exagero num detalhe: o fazer filhos não é aqui o principal. E agora falo eu avisando: talvez estrague alguma surpresa para quem ainda não viu.
Em tempos que já lá vão, os lençóis da noite de núpcias eram expostos na manhã seguinte no estendal exterior da casa.
Este filme trata de um amor de verão entre a vocalista adolescente de um grupo de baile e o seu primo emigrante que vem de férias. A mãe da miúda fugiu com outro homem há muitos anos. O grupo de baile é o pai dela, o marido abandonado, portanto, e um outro tipo. O pai do primo é o irmão da que fugiu, que tanto se parece com a filha. Entre os bocados de filme a fazer-se, de documentário kitsch e de videoclip de Arganil, o drama acontece. Pai e filha são muito próximos, demasiado talvez, e a aldeia não parece entender, o que entendemos numa desgarrada. Este filme está muito bem feito. Marante e o Grupo Diapasão fornecem a banda sonora perfeita. Aqui Sofia Coppola teria utilizado os Jesus and Mary Chain e mal.
É um amor de verão, já disse. Os amores de verão acabam com a estação. Aqui não há comboios mas há a rua à frente de casa onde os emigrantes chegam mas depois vão-se embora.
 
E no fim, pergunto, ela ficará a chorar ou a rir?
 
Meus caros amigos, só vendo...

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A fungadela.

Lentamente o antibiótico - ou o tempo - vai fazendo o seu efeito e já respiro melhor. E fungo. E fungo e fungo e fungo. O verbo fungar, onomatopaico, tem curiosas declinações. Já agora que derivo, a palavra declinação também não deixa de ter as suas rimas... Mas voltando ao frio herbívoro que dá pelo nome de vaca, do verbo "fungar" nasce a palavra "fungadela". Aberta a palavra, a funga dela coloca-nos questões. E quais são? É ela que mais funga? Não, é ele. Ele não está para se assoar, sabe que os lenços de tecido são uma colecção de ranhocas  que é melhor nem pensar e portanto não, e pensa também lá no íntimo que os lencinhos de papel do continente são uma larilice. Então funga. Ela sim que se assoa. Metodicamente, Em as narinas ultrapassem os 3cc de mucosidade. Assoa-se, verifica a cor, dobra, pondera se ainda serve ou é necessário um novo. "Fungadela" é um sexismo mais, outro a juntar a tantos. "Fungadele" teria muita mais lógica. 

A Força da Gravidade.

A Força da Gravidade.





A tua gravidade:

o justo peso de que dispões

para rir.





Luiza Neto Jorge, in Poesia.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

"My name is William Blake, do you know my poetry?"

The story of Nobody, Dead Man, Jim Jarmusch.


Dead Man - Nobody's Story from kenneth thomas on Vimeo.

Uptown.

Conduzir um carro serve para várias coisas. Uma delas é ouvir a música alto, mesmo alto. Como neste fim-de-semana, fechado fim-de-semana. Até que liguei o som e saiu-me este Prince.


Ficou o fim-de-semana resolvido!

Armstrong e os anos negros do ciclismo - e dos ciclistas.



Vi no cinema vai para dois anos um famoso documentário sobre Lance Armstrong. Talvez o documentário esteja mais perto da realidade do que o filme "The Program" que agora estreia, embora realizado pelo meu amigo Stephen Frears. 
Quem tem alguma memória velocipédica sabe que no ciclismo, desporto horrível de esforço e sacrifício, sempre houve doping. Até ao princípio dos anos noventa aquele que havia - anfetaminas e corticóides - não decidia vitórias, apenas ajudava a recuperar, e esticava o esforço e permitia sobreviver às dezenas de critériuns de fim-de-semana onde se ganhava o dinheiro. Ninguém acha que Coppi, Anquetil ou Merckx venceram porque se dopavam. Mas dopavam-se. É Greg LeMond, o outro americano a vencer o Tour, que diz que no início dos anos noventa subitamente o pelotão começou a andar depressa, mais depressa, e mais depressa. O pelotão... todo! E ele abandonou. Outros grandes corredores desse tempo, o francês Charly Mottet, o  americano Andrew Hampsten contam hoje que se aperceberam que sem tomar o novo cocktail nunca ganhariam por ex. um Tour, e decidiram de moto próprio apenas ganhar coisas mais pequenas, ou abandonar. Em 1991 foi a primeira vitória no Tour de Miguel Indurain. Indurain dominou o desporto por cinco anos. Percebido desde jovem como um ciclista muito bom, amadureceu... tarde. Nunca teve um teste de doping positivo. Mas a verdade é que naquele tempo não se testava o que interessava, a EPO. E os seus grandes adversários no pelotão, Tony Rominger ou Piotr Ugrumov, eram conhecidos utilizadores de EPO - o nickname de Rominger era EPO-Tony, Ugrumov correu na Gewiss-Ballan, a primeira equipa de ciclismo a ter - que se saiba - um programa organizado de doping. A Gewiss-Ballan em 1994 venceu a clássica belga Fleche Wallone atacando com três homens... imparavelmente e tomando o pódium de assalto. A partir daqui, se as outras equipas não tinham passaram a querer ter doping organizado. As equipas passaram a ser tão boas quanto a sua equipa médica. A famosa frase "não se consegue transformar um burro num cavalo de corrida" estava agora obsoleta. Voltemos a Indurain. Um rapaz simpático e acanhado de Navarra, um herói nacional espanhol, não há um elemento do pelotão profissional que alguma vez se tenha queixado do seu comportamento. Era um "patrão" discreto. Hoje os estudiosos do ciclismo colocam as suas performances no Tour ao nível do ciclismo "mutante". Não preciso explicar o que isto quer dizer. 

Em 1996 acabou a era Indurain. Os anos entre "patrões", neste caso entre Indurain e Armstrong, são habitualmente aqueles que fornecem corridas de ciclismo mais incertas e animadas. Estes foram os anos de Pantani, de Bjarne Riis e de Jan Ullrich. Não preciso de fazer a história do doping destes ciclistas. Bjarne Riis foi efectivamente um "burro" que se transformou em cavalo de corrida - era conhecido no pelotão pelo "Sr. 60%", pois esse era o seu hemtócrito habitual. A sua vitória no Tour é a mais vergonhosa da história da corrida. Pantani foi Pantani. Morreu por OD de cocaína e é ainda hoje um herói nacional na Itália. Independentemente das suas qualidades, que eram óbvias, não terá vencido uma prova sem EPO. Ullrich ia ser o "senhor que se segue", o novo patrão, talvez, mas eis que chega Armstrong.

E agora chegamos ao prato principal: o ano de 1998. No Tour ganha Pantani, depois de também ganhar o Giro. Ninguém voltaria a fazer esta dobradinha. Contador já tentou duas vezes e não conseguiu. No ano anterior ganhara Ullrich e o segundo fora um francês, Richard Virenque, um trepador que, curiosamente se transformara num todo-terreno. Corria na equipa Festina, uma marca de relógios francesa. Em 1998 o soigneur da equipa foi preso na fronteria franco-belga com um carro da equipa cheio de... tudo. Toda a equipa foi expulsa, Virenque saiu da corrida em lágrimas, negando tudo para dois anos admitir o óbvio, que se dopava. Após a devida suspensão voltou a correr mas nunca mais para pódium. Pantani será um herói nacional mas Virenque, não estando ao mesmo nível, é hoje por hoje comentador para a têvê e faz um anúncio televisivo muito curioso para a... Festina. Some guys never learn.

E chega o ano de 1999. Vamos fazer um pouco a história de Lance Armstrong. Nascido em 1971, virou profissional aos 21 anos e foi Campeão do Mundo surpresa em 93. Continuou a ganhar algumas provas de um dia, etapas, etc. Era um ciclista forte, rápido, um puncheur. O seu perfil estava decidido. E dopava-se como toda a gente, é sabido. Em 1996 sofre o diagnóstico de tumor do testículo metastizado ao abandonar o Tour com febre. Em 1998 volta ao activo, a doença debelada. E vem como era expectável que um bom ciclista - que Armstrong era - viesse após uma luta contra o cancro: mais leve. Quem conhece o ciclismo sabe o quão importante é isto do peso. Armstrong foi 4o na Vuelta de 1998 e venceu o seu 1o Tour em 1999. O resto é história. Armstrong teve a melhor equipa de doping da história do ciclismo a apoiá-lo, isso é inegável: Michele Ferrari era o nome do médico. 



Há quem diga que se não tivesse sido Armstrong o Ullrich teria ganho tudo, etc. Isso não é verdade. Ullrich dopava-se igual, só que pior. Era pregiçoso, chegava pesado ao Tour, "não fazia os trabalhos de casa". Por isso Armstrong foi tão popular durante tanto tempo. O seu trabalho e dedicação ao ciclismo, digo, ao objectivo de ganhar o Tour e ser o "patrão", era óbvio e meticuloso. E, depois, a sua dedicação às actividade anti-cancro eram o perfect coverup. Que era um "patrão" frio e que não perdoava viemos depois a saber. A partir de um determinado momento a glória e o pódium torna-se um vício e queremos sempre mais. E a mentira vira apenas uma realidade alternativa.

O doping no ciclismo não começou com Armstrong nem terminou em Armstrong. Na verdade todos os resultados do ciclismo entre os anos de 1991 e 2008 - o ano de introdução do passaporte biológico - devem ser considerados com um grão de sal ou, talvez, com uns quilos de sal. Hoje o ciclismo é mais justo, é mais limpo. Haverá doping mas o passaporte biológico não permitirá as diferenças que já houve entre os corredores limpos e os corrredores trapaceiros.

Duvido que nos anos mais próximos se faça um filme sobre Pantani, ou Ullrich ou Virenque. Pantani é intocável. Morrer no caso dele foi a opção lógica. Nibali recebeu em 2014 da mãe de Pantani uma das camisolas amarelas do filho como amuleto para o Tour e Nibali cumpriu, ganhou - assumimos que sem doping. Como agradecimento a camisola amarela que Nibali ganhou nesse mesmo ano está hoje em dia em exposição no Museo Pantani.

Gustave Flaubert dixit.

'Precisamente na altura em que deixou de haver deuses, e antes da vinda de Jesus Cristo, existiu um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou só.'

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Grace Kelly and Cary Grant em To Catch a Thief de A Hitchcock.




Cary Grant: "You know as well as I do that this necklace is an imitation!"

Grace Kelly: "But I'm not..."

A chuva puxa para estas coisas.

Nestes tempos incertos é interessante estudar um pouco o mapa político da União Europeia para reflectir que União Europeia é esta que temos.

Podemos dividir a EU em 5 sub-blocos: Norte/países nórdicos, Leste/os países que saíram do antigo Bloco de Leste, Centro/o “core” europeu franco-alemão, mais o Benelux e a Áustria, o Sul/Espanha, Portugal, Itália, Grécia, Malta e Chipre e as… “Ilhas”/UK e Irlanda.

Primeiro vejamos que, de 28 governos, 16 são de centro-direita, 11 de centro-esquerda e 1, o grego, de extrema-esquerda. Não existe nenhuma diferença nestas tendências entre os diversos sub-blocos acima. 

Espreitando então os 11 países do Leste, 5 têm governos de centro-esquerda, a saber, Lituânia, Rep. Checa, Eslováquia, Roménia e Croácia. No entanto os partidos de esquerda dos países de leste são um pouco diferentes dos países do resto da Europa. Nascidos do nada após a queda do Muro de Berlim e não pertencendo a nenhuma velha tradição socialista ou social-democrata, têm os nomes do costume mas são economicamente tão ou mais liberais do que os seus colegas de direita dos mesmos países, e não descuram alguma temática nacionalista quando é necessário. Os países do Leste viram a sua chegada à EU como o fim de uma corrida de obstáculos iniciada em 1945 e qualquer competição estranha é apenas isso – competição. Nos países de Leste, portanto, com o mapa político tão deslocado para o centro e a direita, a extrema-direita tem hoje muito pouca representação, com a excepção da Hungria.
A Hungria de Viktor Orban é um caso único e levanta questões morais e éticas – políticas, portanto -  importantes à EU. O partido de extrema-direita Jobbik tem 21% dos votos e o partido populista de direita de Orban 44% - eleições de 2014. A Hungria é um pequeno país que vive hoje em dia envolto em sonhos populistas de uma “Grande Hungria” herdeira do antigo Império Austro-Húngaro, etc. Isto aconteceu também porque o governo socialista que governou até 2010 foi dos governos mais corruptos e cínicos das últimas décadas da EU, sendo conhecida a famosa conversa gravada onde o então PM socialista confessava “ter mentido aos eleitores e isso ter sido útil e um sucesso”. Em 2010 a Hungria, a Hungria que já não era a de 1956, era um país à deriva, hoje não. O readquirir por um país de um rumo não obriga a que este seja o correcto. Antes a Hungria estava do lado de lá do muro. Hoje está do lado de cá e está a explicita a existência desse muro construindo-o. Considerará – por motivos políticos, éticos, morais – a EU alguma vez expulsar a Hungria?

Os cinco países da EU com mais votos na extrema-direita são portanto, a Áustria, a Dinamarca, a 
Hungria, a Finlândia, e a Letónia.

A Letónia é “apenas” uma questão de retórica anti-Rússia. Da Hungria já falei. Vamos aos países nórdicos – e esclarecendo que na Suécia também a extrema-direita também tem subido as intenções de voto. Os tempos de Olof Palme já passaram a muito. Os países nórdicos mostram como resulta a equação de a maioria da população ter muito e não estar afinal disposta a partilhar, bem como a descrença progressiva numa politica de refugiados/migrantes permissiva que durou anos e anos. Para dar um exemplo, a Finlândia tinha um partido chamado dos “Verdadeiros Finlandeses” – que até já participou em governos. Agora mudou o nome para “Partido dos Finlandeses”. A Finlândia terá o sistema de ensino mais desenvolvido do mundo mas tem 21% da população a votar num partido que se chama… “Partido dos Finlandeses!”.

A Áustria é um caso especial. A extrema-direita aqui também já participou em governos, nos tempos do já falecido Joerg Haider. A Áustria é um país engraçado, uma espécie de Algarve da Alemanha mas independente! A Áustria é também uma espécie de “Alemanha sem culpa” – Hitler era austríaco mas ninguém se preocupa com isso – e, portanto, é apenas um país riquinho que quer fechar as suas portas e mais nada. A Áustria – o outro braço do Império Austro-Húngaro, lembro, é um caso de psicanálise. E Freud era um judeu Austríaco.
No resto do Centro temos na Alemanha Merkel de pedra e cal e na França, Hollande, uma triste figura. A Bélgica enquanto país não existe, e a Holanda já esqueceu a história de Anne Frank.

Agora vamos às... "Ilhas". A Irlanda sempre teve governos de direita moderados – e nacionalistas porque herdeiros de toda uma tradição da guerra de libertação do Eire – e assim continua. O Reino Unido tem 13% da população a votar no UKIP xenófobo e Cameron a surfar a onda de um referendo para ficar ou sair da EU, a acontecer para o ano que vem.I rest my case.

E o Sul? Ah, o  Sul. Somos nós. A Península Ibérica está governada pela direita, e ambos os países têm eleições este ano, com resultados incertos. A Espanha está entretida entretanto com os nacionalismos do costume, o que pode ainda mais baralhar as contas. A Itália tem um governo de centro-esquerda que ganhou eleições a Berlusconi – preciso de explicar quem é? – em 2013 por 0,3%. Tem uma percentagem importante da população do norte a votar na extrema-direita e é, portanto, um cata-vento eleitoral. Já o referi, Itálias, há umas quantas.


Fica a Grécia. Mas da Grécia já falei eu que chegue. E as eleições vão ser as primeiras de todas a acontecer. Certo, certo, é que a chegada dos refugiados não vai parar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Bora lá caminhar!

DIzem que é preciso caminhar. Então bora lá caminhar! Morador na zona do Bessa, resolvi fazer um circuito próximo para nordeste. Ou seja: Francos, Prelada e Ramalde. Tudo isto uma inovação: de Ramalde só uso o Continente BomDia, e vou lá de carro.

O percurso, embora a subir, o que parece fazer bem, até à estação de metro de Francos foi anónimo. Atravessada a linha, do outro lado estão as casas fabris que agora são o ex-libris de Francos. Passei por elas até chegar à Direita de Francos. Na esquina uma casa abandonada - percebia-se bem - é centro de tráfico e consumo. Depois esquerda Central de Francos, direita Travessa da Prelada até ver o torreão da Casa da Prelada. Esta pertence à Misericórdia do Porto e estará aberta para visitas. No meu horário já não estava, O traço será de Nasoni. Tem "às costas" uma intervenção arquitectónica que... só vendo. A Quinta foi dividida pela VCI - estender-se- ia até à Circunvalação ou quase. A entrada senhorial tem uma espécie de largo debruado a paredes de pedra - séc. XVIII como o edifício - mas onde o entorno século XXI não... encaixou.
De imediatamente antes parte para norte a Avenida Cidade de Xangai - onde muita gente pelos vistos aproveita para correr, etc. Ela cruza a VCI e termina na Circunvvalação. A minha curiosidade sobre  o porquê desta toponímia no Porto foi esclarecida - são cidades geminadas. Googlei "oporto avenue", "oporto street" em Shanghai, mas nada. Enfim... Ao passar sobre a VCI  apercebemo-nos da extensão - que terá sido - da Quinta da Prelada. À direita vi uma torre sineira e fui descobrir a Paroquial da Senhora do Porto. Alguém lá casou... Mais bonita a porta altaneira da casa em frente, datada de 1914.
Voltando atrás falhei a Viela dos Abraços de Ramalde  - como foi possível? - e fui ter à Cooperativa da Prelada. No meio há uma zona verde interessante que atravessei até chegar a Maria Lamas e seguir para poente paralelo à VCI e meter pela Central de Francos para voltar a atravessar por cima a mesma. Direita pela Rua Airosa, paralela ao metro pela Particular de Francos até chegar à tal casa onde alegremente ou não o consumo e o tráfico continuavam. Atravessei a linha, Direita de Francos outra vez e finalmente a Mega-Rotunda de Francos. Esta estava completa e inapelavelmente entupida de carros. Na rotunda e nas ruas até ao Estádio do Bessa uma dezena e meia de polícias assistiam impávidos e serenos ao trânsito congelado. Umas camisolas axadrezadas explicaram-me: havia jogo. Não fui assistir, preferi voltar para casa.





A dor que não é minha.

Nisto das arrumações encontra-se cada coisa...

Encontrei uma brochura celebrando os 50 anos do serviço de Psiquiatria do meu  Hospital. Nela o meu nome aparece lá num cantinho. E só isso, que mais não era preciso, eu agradeço.
O corpo da brochura contém a transcrição de conferências que então aconteceram. Uma houve a que eu não assisti apenas por manifesta falta de tempo. Chamou-se "Saúde Mental e Poesia" e foi do Pedro Mexia. Pelos visto a gravação falhou e, como solução, aparece um texto dum livro do mesmo que, em parte, terá sido citado na dita conferência. O texto é muito bom. Eis o link. O texto chama-se "A dor que não é tua" e aparece no fim do pdf. De tão bom que é até perdoo que o prefácio do livro em questão tivesse sido escrito pelo chato do Rui Ramos.

O Alerta Laranja.

Talvez mentes menos atentas não tenham reparado que, desde que as sondagens começaram a dar a vitória - putativamente- à coligação PSD/CDS, a oposição começou a utilizar meios mais heterodoxos para tentar reverter a tendência dos votantes. 
Primeiro foi a libertação de José Sócrates, que desencadeou uma onda de simpatia - todos nós podiamos ser ele, não esquecer, eu já dormi numa residencial perto do Condomínio Heron Castilho só para ver como era a vizinhança - onda de simpatia essa que está difícil de conter, havendo lista de espera para jantar em casa da ex-mulher do dito - com ele, não com ela, a Fava... 
Depois foram as fotografias da Joana Amaral Dias semi-nua, coisa de muito cuidado, pois quantos de nós não pensámos: é melhor fazer constar que votamos PS ou eles ainda se põem a despir a Ana Gomes, por puro desespero! 
Agora, finalmente, chegou esta coisa muito subliminar do "Alerta Laranja" nos distritos do Porto, Braga e Viana do Castelo, Ora estes distritos elegem 64 deputados, ora nem mais, olaré! E os distritos do Porto e de Braga são dos que mais têm flutuado no voto PS, que ora ganha ora não, vidé este site para as europeias, por ex. Conclui-se por conseguinte que a oposição também tem capacidade não só de controlar o Instituto Português do Mar e da Atmosfera mas, inclusivé, controlar os próprios elementos!

e a resposta de Clarissa.

"O amor também destruia. Tudo quanto era belo, tudo quanto era verdade, ía-se. Por exemplo Peter Walsh. Era um homem, encantador, inteligente, com ideias acerca de tudo. Se alguém quisesse saber alguma coisa a respeito de Pope, por exemplo, ou de Addison, ou simplesmente dizer disparates, falar de pessoas, saber como são as coisas, não havia melhor do que Peter. Fora Peter quem a ajudara. Peter que lhe emprestara livros. Mas vejam-se as mulheres que ele tinha amado: vulgares, triviais, comuns. Imagine-se Peter apaixonado: viera visitá-la passados todos estes anos, e de que falara? De si próprio. Horrível paixão!, pensou ela. Paixão degradante!, pensou, lembrando-se de Kilman e da sua Elisabeth a caminho dos Armazéns do Exército e da Marinha.


O Big Ben bateu a meia-hora.
Que extraordinário era, que estranho, sim, comovente, ver a velhota - eram vizinhos havia tantos anos - sair da janela, como se estivesse ligada àquele som, àquela corda. Gigantesco como era, tinha qualquer coisa a ver com ela. Para baixo, cada vez mais para baixo, no meio das coisas vulgares, o sino retinia, tornando o momento solene. Ela era forçada por aquele som, imaginava Clarissa, a retirar-se, a ir-se embora, mas para onde? Clarissa tentou segui-la com a vista quando ela voltou as costas e desapareceu, e viu ainda a sua touca branca a mexer no fundo do quarto. Para quê dogmas e orações e capas de borracha?, quando pensou Clarissa, ali está o milagre, ali está o mistério; aquela velha, queria ela dizer, que podia ver a ir da cómoda para o toucador. Ainda conseguia vê-la. E o mistério supremo que Miss Kilman dizia ter resolvido, ou que Peter diria ter resolvido, mas Clarissa não acreditava que nenhum dos dois tivesse sequer tentado resolver, era simplesmente este: ali estava um quarto; ali outro. A religião explica isto, ou o amor?"

domingo, 13 de setembro de 2015

extracto - à sorte, quase - de Mrs Dalloway, de Virginia Wolf.


"Era uma confissão terrível - pôs outra vez o chapéu na cabeça -, mas agora, com cinquenta e três anos, já quase não precisamos dos outros. A própria vida, cada momento, cada gota, aqui, neste instante, agora, ao sol, em Regent's Park, era o suficiente. Era até de mais. A vida inteira era demasiado curta para conseguirmos tirar dela, agora que conquistámos esse poder, todo o seu sabor; para lhe extrair cada onça de prazer; cada faceta de sentido, que são ambos muito menos pessoais. Era impossível que ele alguma vez tornasse a sofrer como Clarissa o tinha feito sofrer. Durante horas seguidas - graças a Deus que podemos dizer estas coisas sem que ninguém nos ouça! -, durante horas e dias nunca pensou em Daisy.


Podia então estar apaixonado por ela, lembrando-se do desgosto, da tortura, da extraordinária paixão daquele tempo? De qualquer maneira era muito diferente - muito mais agradável - porque, para falar verdade, era ela quem estava apaixonada por ele. E talvez fosse essa a razão por que, quando o navio largou, ele sentiu um extraordinário alívio, desejando apenas ficar sózinho; e ficou aborrecido por deparar com todas as pequenas atenções dela - charutos, bloco-notas, uma manta de viagem - no camarote. Se toda a gente fosse honesta diria a mesma coisa; ninguém precisa dos outros passados os cinquenta anos; ninguém está para continuar a dizer às mulheres que elas são bonitas. Era isto que a maior parte dos homens de cinquenta anos diria, pensou Peter Walsh, se fossem sinceros.
Mas então aquele súbito assalto de emoções - a crise de lágrimas daquela manhã, que significava tudo aquilo? Que poderia ter pensado Clarissa a seu respeito? Provavelmente que seria um parvo, e não seria a primeira vez. Era o ciúme que estava no fundo de tudo aquilo - o ciúme, que sobrevive a todas as paixões da humanidade, pensou Peter Walsh, brandindo o canivete. Tinha encontrado o Major Orde, dizia Daisy na sua última carta; fazia-o de propósito, ele bem sabia; dizia para lhe fazer ciúmes; via-a a franzir a testa enquanto escrevia, procurando o que poderia escrever para o ferir; eembora não lhe fizesse diferença, ficava furioso. Todo o aparato da viagem a Inglaterra para consultar advogados, não era para casar com ela, mas para a impedir de casar com outro. Foi o que o torturou, o que o venceu, quando viu Clarissa tão calma, tão fria, tão preocupada com o vestido ou lá que era; pensando em tudo o que lhe teria evitado, naquilo a que ela o reduzira - um velho burro a choramingar e a fungar. Mas as mulheres, continuou a pensar fechando o canivete, não sabem o que é a paixão. Não sabem o que isso significa para os homens. Clarissa era fria como gelo. Tinha-se sentado ao pé dele no sofá, deixara-o pegar-lhe na mão, dar-lhe um beijo na cara...
Era ali que devia atravessar."

Fujo do Zambujo e também já não ouço o Araújo.

Quando aconteceu o debate Passos - Costa estava na Feira do Livro. Não sei se por acaso soava Zeca Afonso ao vivo. A Cata, pouco habituada, comentou a interpretação do Zeca, aquele som de voz especial vindo de Coimbra para acordar todo um país. Defeito meu, pois ponho em casa mais o Zé Mário...
A Feira do Livro estava um pouco viúva de gente, que assistia em casa ao famoso debate. Eu não, eu sabia quem ia perder: nós. E, no entanto, ouvir a mesma canção de combate há cinquenta anos... enfim. Fiquei a pensar. Parafraseando, "pensar sempre também cansa".

Ontem havia D'bandada, com Miguel Araújo nos Aliados. Talvez pela rima dos nomes associo os nomes de Miguel Araújo e de António Zambujo como os grandes anestésicos destes tempos. E talvez esteja em mim o defeito, nem eles me adormecem nem já o Zeca me acorda para a luta.

Miguel Araújo tem uma dívida pop importante mas, claro, é hoje uma espécie de Rui Veloso baladeiro que espreita os aviões e fala dos maridos das outras, etc. Tem jeitinho, concedo. Ouve-se bem. Em dois anos vai desaparecer.
António Zambujo tem a barba que eu gostaria de ter. Saiu do fado para o mundo das "músicas do mundo" - e não é toda a música do mundo? - com uma voz - espectacular, sim, mas que é Fausto melhorado, nem mais. Na prática transformou-se numa espécie de Tony de Matos mas do lado certo da barreira. Transformou o "pica" numa figura romântica para cantarmos em coro. Fez uma tournée com a Ana Moura. Mas onde Zambujo é pele suave e músculo em doece repouso Ana Moura é corda tensa. 
E agora, Zambujo, para onde irás?

Por isso eu continuo a gostar dos Deolinda.

sábado, 12 de setembro de 2015

Que se foda a discussão do Acordo Ortográfico!

"As parêdes quando desabavam sobre o chão atapetavam o quarto de quadrado azul. Quando desabaam as quatro parêdes e o tecto eu já era o quarto iluminado a quadrado azul e sem chão. Succediam-se juxtapostos hieroglyphos syntheticos de expressão immediata e que apesar de não estarem gravados em nenhuma das faces do quadrado azul reproduziam-se nitidos em golpes de Radium pra dentro do meu cérebro impresso a helzevire. De entre muitas das frases resolvidas archivava-se..."

"Farmácia antigamente escrevia-se com "Ph", e agora?"

O primeiro extracto é parte de um texto de Almada Negreiros, o "K4 - Quadrado Azul", de que a Assírio e Alvim fez uma edição fac-símile.

O segundo texto é uma adivinha que, sabemos, não pode ter mais do que cem anos de inventada, porque até 1911, farmácia escrevia-se efectivamente... com "ph"! Almada Negreiros seguia a escrita anterior, renegando o Acordo Ortográfico de 1911, instituido pela República como verdadeira simplificação da escrita para combater o analfabetismo. Por isso "K4 - Quadrado Azul" é de 1917 mas está escrito como acima.

Da Wikipedia retiro - com a devida ressalva - um escrito de Teixeira de Pascoaes: 

"Na palavra lagryma(...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com ilatino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal."

Lembro-me de ter feito uma apresentação sobre a Escala da Dor da OMS - já no século passado... - e, sem pensar, usei durante todos os diapositivos a grafia antiga "dôr", talvez decorrente de leituras em livros da biblioteca dos meus pais. Fui cortesmente corrigido em público e ao vivo. "Dor" parece-me - sempre me pareceu... - pouca palavra!

Dito isto, até que me proibam irei sempre escrever em pré-1990, porque foi assim que me fiz escrevente. Agora protestar, não me chateiem.

Há coisas TÃO MAIS IMPORTANTES...

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

The Hours.




Já não sei onde ponho as coisas. Acontece-me por fases. 2/3 das minhas coisas são livros. Já não sei onde estão livros. "As Horas" de Michael Cunningham, por ex. E encontrei "Mrs Dalloway" hoje quando o queria ter encontrado ontem.
Vi ontem "As Horas" de Stephen... Daldry. Obrigado Google por me lembrares como se escreve. "Todos gostaram do filme" equivale por aqui a mandar o filme para a prateleira. E se eu, eu, não gosto?
Bom ,o filme conta três dias três - como o livro "Mrs Dalloway" que percorre também um só dia - o primeiro com Nicole Kidman a fazer até ao paroxismo de Virginia Wolf; o segundo com Julianne Moore a ser Laura Brown; o terceiro com Meryl Streep a ser a eterna amiga e ocasional amante do filho de Laura Brown, Richard. A personagem de Meryl Streep chama-se Clarissa Vaughn, como Clarissa Dalloway. Se "todos gostaram" se calhar "todos já viram". Não conto mais.

Há um caminho, há um sentido por onde seguir. O do rio por onde Virginia Wolf entra, pedras nos bolsos, o da cidade de Londres para onde Virginia tenta fugir para se perder no barulho, na confusão, na possível festa dos outros. E é nosso o nosso caminho. Como aquele que Laura Brown descobre numa tarde sózinha num hotel, grávida da irmã de Richard. Como foi o caminho de Clarissa Vaughn, estar sempre com Richard, e este com Clarissa, de alguma forma. Richard vai receber um prémio pela obra de uma vida no dia em questão. Mas o prémio já tinha sido dado. O prémio não vem, é.

De quem eu gosto mais? De Julianne Moore. E de "Mrs Dalloway". Não consigo explicar o quanto gosto do livrode Virginia Woolf. Mas a citação com que fecho é do filme e é de Virginia Woolf/Nicole Kidman.




"To look life in the face. Always to look life in the face and to know it for what it is. At last to know it. To love it for what it is, and then, to put it away. Always the years between us. Always the years. Always the love. Always the hours."

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Estrada.

Não sei o que aconteceu ao Pedro Abrunhosa que inventou um disco em 1994 e depois desapareceu para Marte. 
A canção de que eu mais gosto - há outras - é esta, e o poema é da Regina Guimarães-
A escritora Regina Guimarães estava a semana passada na entrada da consulta, apoiada em duas canadianas e à espera de que a viessem buscar. A cara era a de uma rainha ferida. Nem me atrevi a oferecer os meus préstimos.


"Estou tao longe, estou tao perto, sei que nunca
hei-de chegar
onde vou nao sei ao certo, ja nao posso mais parar."

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Todos somos um pouco esta ou aquela coisa.

Últimamente todos somos um pouco ou até bastante determinada coisa. Somos um pouco depressivos, bastante bipolares, um pouco esquizofrénicos até. É possível que assim seja, aceito. E não apenas tristes, incertos, às vezes perdidos, distraídos, abúlicos ou tímidos. Ou maldosos, malandros. Claro que a apetência para a farmacopeia exerce aqui um papel. Tudo, repito, tudo hoje se pode resolver ou mitigar com um comprimido. No sexo como na vida haverá sempre a pastilha que se segue. Já não há pessoas bem dispostas mas sim hipertímicas. Não há zangas mas distimias. Lembro que o timo é um órgão linfóide localizado um pouco acima do coração e que já pela adolescência está a funcionar pouquinho. Mas nunca chega a parar de vez. Como se representasse um resto da nossa infância, um carvão a queimar e que não se acaba de apagar!

É possível que algumas pessoas com quem eu me tenho encontrado sejam doentes. Nah, eu acho é que são parvos! 

Hoje tudo me sabe a iogurtes.

"O meu silêncio estarrece 
os pássaros. Eles fogem. 
E deve inquietá-los. 
Também a bola de 
futebol, poderosa
arma contra tudo o que 
voa. São as 
casas feitas para 
ser pombais.
A vida humana nelas é 
um prefácio.
Onde vivo há já
um pequeno pombal.

Tão meu, chegar
(quase) no fim 
da festa."


Em Ovar, há muitos anos, fiquei em segundo lugar num concurso de poesia. O concurso já não sei quem o promovia. A entrega dos prémios - para mim uma medalha que ainda por aqui anda - foi na sede da rádio da terra, a Antena Vareira, onde eu fazia de conta que tinha um programa... de rádio. Nele passava os discos da minha namorada. 
A senhora que ganhou pôde ler ao público parte da obra. Era uma poesia expansiva e emocional, comme il faut. Lembro-me que um dos meus poemas a concurso usava a seguinte imagem: "hoje tudo me sabe a iogurtes". E explico: o iogurte é aquela comida que nunca é má, sabe mais ou menos bem, mas nunca será manjar de deuses. É um comer cinzento. Dizer "bora comer iogurtes!" nunca puxará ninguém. 
Acabada a leitura e debruada esta com palmas, uma jurada veio dar-me os parabéns mas sugeriu que eu "deixasse os iogurtes no frigorífico". A vaca!

A verdade é que hoje, hoje mesmo, tudo me sabe a iogurtes.

sábado, 5 de setembro de 2015

"Porque os países muçulmanos ricos não ajudam os seus irmãos?"

A pergunta tem sido partilhada e partilhada. A resposta é simples: quem está fugir está fugir de países onde antes havia alguma tradição secular. Se um grão de bondade se pode dizer da ditadura da família Assad na Síria é que é/era uma ditadura secular: o hijab não era obrigatório, a sharia não era a lei, as mulheres podiam conduzir um carro. Ninguém cortava a mão direita de ninguém. Aliás a ditadura de Saddam Hussein no Iraque também não! Ganhou algumas tonalidades religiosas para não ficar mal perante o Irão. Idem a Tunísia e o Egipto em ditadura, idem a Argélia dos nossos dias. Idem a Jordânia do filho de Hussein. Todas estas ditaduras no mundo árabe nasceram nos anos cinquenta e pertenceram aos não-alinhados, etc. Eram pseudo-esquerdistas, a maioria apoiadas pela URSS, mas eram decididamente seculares.
Neste momento os países mais estáveis do Médio Oriente são fontes perenes do integralismo islâmico: o Irão e a Arábia Saudita.

Que os Sírios queiram vir para a Europa é um elogio. Seremos nós merecedores dele?

Rocha ágil / Completamente negra

TOURO II

"Rocha ágil
Completamente negra

A única praia possível
É uma poça de sangue"

Este poema é de Alberto de Lacerda e pertence a um conjunto de poemas chamado "Tauromagia". A poesia em língua castelhana inspirada pelo festa taurina é incontável. A sublimação da crueldade humana e do seu instinto de morte através de um estranho tipo de arte que para isso criou um esplêndido bicho, cujo único destino é ser morto em arena. Isto teve o seu tempo. Tempo que terá sido também esplêndido, "uma estranha forma de arte". Pede que nos concentremos na arena e não olhemos demasiado para as paixões que correm na assistência. Hemingway et al ajudou muito ao mito. 

Falo do toureio a pé, claro. O toureio a cavalo só é estrela em Portugal e não evita o castigo do animal, antes o aumenta. Refina-o, pois é feito em maior desigualdade e acontece "de cima para baixo". É um ménage a trois com, adivinho, grande sofrimento para o cavalo. Os ferros vão exsanguinando o touro. O toureio a cavalo é uma arte de senhores e de castigo contínuo, um bandarilhar a cavalo. O toureio a pé é a versão popular da festa. Para muitos rapazes do povo a arena de touros é o único salão onde alguma vez poderão dançar. É uma promessa de tango entre um homem e um animal. Mas que termina em morte. Em Portugal não se pica o touro, el tercio de varas. Porém, a sorte das bandarilhas tem na realidade o mesmo objectivo, castigar o touro, sangrá-lo. O toureiro a pé que não mata só castiga o touro uma vez, quando mata ou simula a morte. Mas antes houve uns quantos pares de ferros espetados.

Finalmente, a pega de caras é uma forma criativa - e de grande coragem, própria para jovens, como se um teste de virilidade, ou para homens mais velhos que dizem "ainda consigo" - de simular a devolução do touro ao curro e só existe onde não se mata, isto é, cá.
O tema de matar em Portugal apareceu há uns tempitos para puxar público, que tem vindo a diminuir. Se calhar a festa dos touros no seu todo está na hora é de acabar. 
Terei pena pelas pegas de caras, que se tornarão impossíveis ao não estar o touro cansado, sangrado...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A espuma das sextas - 2.

"Esbagoar" quer dizer lacrimejar.

A espuma das Sextas.

A Maria Antónia apareceu-me na consulta em 94, 24 anos recém-feitos. Um pré-operatório - estenose bilateral das artérias renais - ia ser operada. Medi-lhe as tensões, normotensa. Volto a medir, também. Não foi operada. Teve tempo para, sim, em vinte anos desenvolver uma hipertensão pequenina, e começar a tomar pastilha e meia com devoção. Os rins? Recomendam-se. A Maria Antónia trabalhou numa empresa de confecções em S. Torcato 25 anos. As consultas eram em Agosto para não faltar nenhum dia. A empresa fechou - ficou sem receber uns meses, de indemnização nada. Já voltou a trabalhar um ano, ao fim deste rua e mais dois meses para o calo. O marido era canteiro, despediram-no. Anda na construção civil. Uma filha emigrou para França, é encarregada numa lavandaria. Já não volta, o marido é de 2ª geração, moram perto da fronteira com a Suíça o que quer dizer - noutro mundo. O outro filho tem 18 anos, talvez entre na faculdade em Braga à noite, um trabalhito de dia para amenizar. Bolsa talvez não haja porque os pais têm uma casa - como se comêssemos telhas e vestíssemos tijolo, como se terem construído aquela casa nem sei com que sacrifícios fosse o pecado original.
A D. Sílvia mora na Silva Escura e tem 85 anos. Em 2012 perdeu a fala, afasia digo, durante um internamento na Cardiologia por um enfarte agudo do miocárdio. Agora fala bem e claro tudo o que tem para dizer. Queixa-se da Médica de Família que lhe disse que para as mãos "não havia nada a fazer", sendo "mãos de velha". A D. Sílvia não gosta da torteza dos dedos, cada um apontando diferente caminho, sim, as artroses, e quê? Vou auscultá-la e ela diz que se despe "como a brasileira, que se despe em qualquer lado". Auscultação enxuta, fico contente. A D. Sílvia foi a 2ª mãe da Arminda, hipertensa de 57 anos e descontrolo completo, até que enviuvou. Agora está viúva e alegre e as tensões estão controladas. Cozinha para fora e hoje cozinhou para mim, traz-me rissóis para o almoço. Ah, e tem um namorado que não se assusta com o facto da Arminda ter um filho parvo, que portanto sai ao defunto pai.
A Isaura tem 48 anos e uma irmã emigrada na Alemanha. Visitou-a em 97 e teve um contacto fugaz com o SNS alemão por delírio psicótico de prejuízo - alguém a queria envenenar. Já voltou a ter algumas crises similares mas em 2008 a crise revestiu-se de características diferentes: tinha realmente um tumor do estômago com células em anel de sinete. Teve sorte: "Não se observam imagens de permeação linfática. Não se observam sinais de invasão venosa. Não se observam sinais de invasão perineural. Não há representação da neoplasia nas margens cirúrgicas. Os anéis de sutura automática não estão invadidos. Não se identificam implantes peritoneais." E 0 em 25 gânglios invadidos. Não voltou a nenhuma consulta para seguimento. Acha que foi tudo um complot dos cirurgiões. Recusa repetir exames. "Eu era tão bonita, veja a cicatriz que me fizeram!". Nunca permiti que ma mostrasse. Pergunta-me como tenho estado. Desejamo-nos mutuamente um bom fim-de-semana.
O Sr. Pacheco tem 71 anos e foi atirador em Cabinda 2 anos. A cabeça descarrilou na Alemanha uns dez anos depois mas ele jura que foi da guerra. Toma a medicação e anda bem. É brusco, directo, dedicado. Está casado e olha pelos netos. Tem um minimercado. Trouxe-me umas vagens que diz serem australianas e que são compridas e torcidas - "não é preciso tirar nada, é só cortar e cabeça e depois, zuca zuca zuca, aos bocadinhos, uma maravilha!". Ah, e ovos. O meu jantar, hoje. Como não gostar desta gente! Claro que os nomes não são estes nomes...

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O Restaurante Erato em Adrianou, Plaka.

Ao rever o que escrito levo vejo que me enganei na localização dos jantares e esqueci-me daquele que aconteceu - talvez no dia 4 ou 5 - no Restaurante Erato, em plena Adrianou, cá fora, com todo o turismo a passar. Vou saltar o óbvio, porque foi sempre assim e aqui também - comemos bem e não comemos caro. Também teve a graça de estarmos a jantar no meio do movimento, da malta que passava, o mais variopinta possível. O que eu quero contar é que, dentro do restaurante, dois homens tocavam bouzouki e uma mulher cantava. O "Rebetiko", o tipo de música interpretado, terá nascido, pelo que li, no virar do século - do XIX para o XX - e ganhou raízes nas cidades costeiras mais seu submundo, e mais ainda nas cidades costeiras gregas "do outro lado", na Ásia Menor, por ex., Esmirna/Izmir. Com a guerra Greco-Turca e o descalabro de 1923 o Rebetiko viajou todo para este lado do Mar Egeu e, lentamente, ganhou pergaminhos. É a canção da saudade de um tempo em que a Grécia era Maior. Claro que não percebo nada de "Rebetiko". Mas acho não vou esquecer aquela mulher a cantar, no ar os braços, a voz.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Atenas dia 6.

Era o último dia. Era o mais triste dos dias. Saímos já com o calor a envolver-nos e fomos visitar o Estádio Olímpico, recriação do antigamente, que lembrava o reinício dos Jogos Olímpicos em 1896. Não entrámos, pagava-se apenas para ir lá para dentro desidratar, pareceu-me um mau negócio. Passámos depois à porta do Museu da Guerra, nem mais, as Forças Armadas Gregas não estão com meias tintas no nome, é mesmo assim. Não entrámos. Entrámos sim no Museu Bizantino. Os Gregos foram Gregos disfarçados de Bizantinos durante um milénio, desde a queda do Império do Ocidente até à queda de Constantinopla, mais década menos década. A Igreja Ortodoxa/"Bizantina" é, parece-me quase omipresente na vida grega. Tsipras foi o primeiro-ministro a não jurar sobre a Bíblia Ortodoxa a sua tomada de posse. E o Museu Bizantino não defrauda as expectativas, ao explicar o que, na prática é a história do Cristinanismo na Grécia desde os Romanos até à actualidade. É muito interessante, por ex., perceber como o Parténon foi durante algum tempo adaptado a Sé Catedral de Atenas. E como a arte Greco-Romana tardia evoluiu progressivamente para a estética bizantina. E aparecem os ícones, ícones e mais ícones. Pessoalmente preferi alguns frescos lindíssimos. O museu não se esquece também de mencionar El Greco como um... pintor cretense




de ícones! Acontece que tudo isto sofre um corte e uma paralisia evolutiva com o domínio turco. E as últimas salas talvez pedissem mais atenção e disponibilidade mental para não serem penosas. Nada penoso foi o almoço no restaurante do museu, por uma vez um restaurante de museu onde se come bem e não caro.
Voltámos ao hotel por Syntagma - adeus, adeus... - e ao fim da tarde fomos fazer outra despedida voltando a percorrer as ruelas de Anafiotika. Descobrimos ruelas novas, e descobrimos um bom restaurante na base do monte, e dele vía-se meia Atenas - um terço, vá. Foi uma óptima despedida. Deitámo-nos cedo, o taxi saía às sete. O hotel serviu-nos pequeno-almoço bem antes da hora, com um sorriso. E ofereceu-nos os outros prévios, que em princípio seriam cobrados para além do quarto e não foram.
Eu já disse o nome do hotel? Adam's Hotel.
Repito: Adam's Hotel.