terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Suddenly This Winter.

Tenho uma memória de caca. Tantas coisas que eu devia lembrar e não lembro. Lembre-me quem lembra, por favor!
 
Um filme há que irei rever, haja tempo. Chama-se "Suddenly Last Summer". Foi realizado por Mankiewicz e tem um casting luxuoso. Liz Taylor, Montgomery Clift, Katherine Hepburn... O filme é a preto-e-branco e de 1959, baseando-se numa peça de Tennessee Williams. Lembro-me de várias cenas do filme, da cara aterrorizada da Elizabeth Taylor, da loucura que se adivinhava já em Monty Clift, que desaguaria na sua morte poucos anos depois. Uma cena lembro também, e assumo mas não juro que a este filme pertença. Há um personagem secundário que é um poeta, cego. E que desde sempre está a compor um e o mesmo poema. Lentamente - e de cor - vai compondo a trama, as palavras, o jogo destas. Um poema que se adivinha jubiloso, o que surpreende saindo de um homem que não vê, já não me lembro se é suposto que alguma vez tenha visto. É este poeta, sentado ou amparado sempre por alguém, uma face velha, clara, radiosa, sempre a olhar para cima - para um céu que só ele vê? - que, para o fim do filme e quando este mais sombrio se apresta a ficar, subitamente declara: "Acabei!" e declama o seu poema inteiro, longo, belo, redondo, o poema de uma vida, um só, para quê mais. Isto eu vi e lembro vivamente. Se acerto no filme de origem não sei. Mas algures foi filmada assim uma cena, e a sua lição foi por mim aprendida.
 
Tudo isto a propósito de muitas coisas, ou só da mais importante de todas. Mas também tudo isto a propósito de uma rapariga da minha idade a quem o amado marido morreu recentemente, exactamente um ano depois de casarem. Um ano, repito. Obviamente foram-lhe ditas muitas coisas infelizes, buscando o consolo dela e o nosso. O que eu arrisquei dizer foi "Olha, tenho a certeza que esse ano foi mesmo muito bom!". Que estúpido! Que anormal! Embora eu, conhecendo-a há uns bons anos, e tendo olhado para ele duas ou três atentas vezes, acredite que, efectivamente, o ano, esse que não podia terminar pior, terá sido excepcional. Como se de um só poema se tratasse e que levasse um ano a ler, um só.
 
É, a vida não é poesia, mas precisa de conter pelo menos um poema, pelo menos um. 

domingo, 29 de janeiro de 2017

A ausência de uma ponte.

escrevi sobre esta história dos amantes. A ponte dos amantes em Paris na realidade não existe. Chama-se "Le Pont des Arts" e não sei muito bem quando começou a sofrer uma transposição de nomenclatura. Ou terá havido um filme... Depois começou aquela mania das chaves ou cadeados e a ponte quase veio abaixo. Eu compreendo, eu compreendo. Nada como por o cadeado cá fora para tentar que também aconteça lá dentro! Nisto dos cadeados quantos falsos positivos... A língua inglesa, na sua simplicidade, resolve a questão pela raiz: "love", "lovers". Mas acrescenta a mais assassina das frases: "I love you but I'm not in love with you!". Portanto, "to love" será diferente de "to be in love". No primeiro és, no segundo estás. "In love" sugere uma imersão, uma totalidade. Ninguém (ninguém?) está "in love" para sempre, mas os ingleses assumem que a paixão não é mais do que amor inc., derivados, um pico de forma mas que pede uma carreira. A frase acima tem por trás a sugestão de que não estou apaixonado - será que amo? Os ingleses, esses simplistas... Voltemos aos franceses. "Les amoureux" vs "les amants". Vi há pouco tempo em DVD o  filme que revelou a Binoche, "Rendez-Vous", de Téchiné, aqui em casa com a minha filha. Não sei se envelheceu bem, o filme. Mas os franceses sempre foram - sempre serão? - muito... físicos nestas temáticas. Tempos antes tinha visto "Elle", de Verhoeven, um filme semi-francês de 2016. Comparando os dois - separados por trinta anos - foi assim que evoluiu o amor em França, o sexo? Pobres... mas adivinhava-se.

Volto atrás e ao medo que o Portugalzinho tem da palavra "amantes", o plural, e do desprezo que tem pelo singular "amante". Esta última palavra cobre apenas aquela particular situação da qual nunca queremos falar, não vá acontecer-nos a nós embora não connosco... O plural também atrapalha, e por isso por cá "tem-se" mas não "somos". A relação é utilitária e não de iguais. Se aceitássemos a igualdade talvez fôssemos obrigados a colocar a hipótese dos amantes terem, quiçá,  a razão do seu lado. Posto isto, à minha doente devo a única vez que ouvi o uso do plural em terras pátrias e a transcrição de um diálogo por cá impossível ou quase: "não te preocupes comigo, amor, isto passa" "não, preocupo-me contigo porque SOMOS amantes!" (e isto disse ele). Quem mais? Perguntam-me, terá realmente acontecido este diálogo? Eu respondo que sim e que não tenho dúvidas: eu conheço bem esta minha doente, incluindo várias RMN e TC cerebrais... 😀

Só para terminar lembro que nestes tempos incertos em que fica bem dizer que "sex is overrated", que o sexo é sobrevalorizado, eu respondo que sim, concordo, é, mas não o amor que se pode fazer com ele.

sábado, 28 de janeiro de 2017

A lista A.

A propósito de uma conversa que eu tive recentemente, a minha cabeça voltou a divagar sobre esta coisa da arte e da bondade, do saber saber e do saber ser, o que mais contará. 

Há uns anos assisti a uma conversa com o António Lobo Antunes, palestra que depois incluia uma sessão de autógrafos, e ao assistir à conversa percebi ser o Lobo Antunes boa gente. Aconteceu em Faro.  Um chato, sim, mas boa gente. Disse mais do que meia dúzia de coisas acertadas - e hoje quem, hoje quem? - e, para além do mais, disse-o com uma elegância antiga de quem já não tem nada a perder a não ser o medo da morte. Posto isto, não passei a ler mais Lobo Antunes do que antes. 

O Saramago devia ser um tipo convencido e antipático. O Sena impossível de aturar. O Manel António Pina - diz-me quem o conheceu - era uma doçura. Isso infelizmente não fez dele um poeta mais importante do que Ezra Pound, que era racista e fascista e algumas outras coisas menos boas.

Portanto, vou aqui mencionar a minha lista de poetas, digo, pessoas boas, que conheci, algumas conheço ainda. De homens falo: o Sr. Augusto, o Armando Urger, o Sr. Amílcar, O Sr. Albino, o Sr. Abílio. Aprendi a ser homem/Homem, deixo ao facultativo a possibilidade da maiúscula já que já entenderam de que falo, aprendi a ser Homem (escolho) por puro auto-didactismo. As lições do meu Pai foram importantes mas tardias e discretas. Os senhores de que falo, que todos meus doentes foram, muito me ensinaram, cada um a seu tempo e no seu capítulo. Ainda ontem falávamos sobre o que aprendi com o Amílcar.

Vendo bem, peso por peso, qualquer um deles enfiava o Lobo Antunes num bolso. Gente começada pela letra A, aqui agradeço, aqui agradeço. Muito importante é a poesia mas mais importante ainda dar sentido e prumo a uma vida fria.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O meu quarteirão (24+1).

Uma volta no meu quarteirão não tem melhor sítio para começar do que junto da Paroquial da Boavista, o mais bonito edifício que por aqui há. Uma frase bailava nos meus ouvidos. Rodei sobre mim mesmo e depois segui para leste. E depois para norte. Direita, esquerda. Fui a uma farmácia recuperar dinheiro de uma venda suspensa, medicação broncodilatadora para Ovar. Marcha atrás e em frente, descida suave, desvio para a esquerda um pouco, uma rotunda onde todos estacionam e ninguém o devia fazer. Mais passeio mais. Uma rampa por onde subo pela beira externa, fazendo equilíbrio. A porta, a chave, subir. Redonda frase, para anos.

Conheço bem a zona onde moro. Se quisesse podia descrever detalhadamente todos os edifícios por onde passei, onde escolhi atravessar ou, em alternativa, seguir pelo passeio para depois cruzar. Outras dias houve em que saí e pelas ruas do quarteirão fora fui olhando para as gentes e para as coisas. Quando não sabemos o que fazer mais procuramos sinais, gestos, acidentes de terreno que nos indiquem como subir e por onde. Hoje não. Apenas andei. Ia eu e umas palavras. Palavras não, mais, assim como quando dizemos dedos mas realidade pensamos na mão.

E pronto, foi assim esta minha volta ao quarteirão, que é, para os entendidos da matemática, duas dúzias de alguma coisa e ainda mais... uma! 

Caminhei como que em branco mas não: uma frase (palavras amigas organizadas em grupo e por mim a fazerem força) seguia a meu lado.

domingo, 22 de janeiro de 2017

A graça da Senhora da Graça.

O que une, o que separa? Para lá do Tâmega fica Mondim de Basto. Em antigos tempos os romeiros seguiam pelo rio a partir de Amarante para depois subirem à Senhora da Graça. Aqui o rio separa distritos mas não as gentes. As terras de Basto são um conjunto em si, a Senhora da Graça mostrando a leste a parede que o Alvão forma para separar estas terras de Trás-Os-Montes. Quer a devoção quer o nome do monte (monte Farinha) têm origem lendária, ou seja, são filhos do engano. Se forem ao site da confraria a lenda mete mouros e farinha de milho, duas coisas que não coincidiram nestas terras, o milho importado das Américas só depois das Descobertas, já aí os mouros por aqui bem mortos e enterrados. Centeio seria então... A Senhora da Graça é portanto um balcão avançado que se destaca para ocidente da cadeia de montanhas que na direcção norte-sul defende o nosso interior dos ventos oceânicos. Roça os mil metros. Subir uma destas rampas deve fazer-se com uma garrafa de águas ao lado. Quando começa a subir a sério a garrafinha começa a fazer uns barulhitos, aflita... 

Serve esta Senhora como todas as outras Senhoras da Graça como figura de intercessão. Engraçado o nosso povo, medidor atento dos mereceres de todo e cada um. Não se impede porém de, às vezes, ou anualmente com se fosse uma subscrição, pedir à Senhora uma graça, uma excepção, um favor, uma intermediação para um qualquer problema, sofrimento, nuvem negra que impede que se veja o apesar de tudo sol que todos os dias nasce. A Senhora irá então interferir e virar para nós a sorte dos dados, os que todos os dias caem e decidem. O tema da Graça foi discutido sem fim nos tempos da Reforma. Os nossos romeiros não têm tempo para bizantinices. Arrancam de noite e ao fim de dezenas de quilómetros e muita subida - vidé a Volta a Portugal - pedem à Senhora, comem, celebram e vão-se embora desafogados.












Para oeste montanhas algo mais baixas separam as terras de Basto do resto do Minho. Para norte vê-se o Barroso. Almocei no restaurante que fica logo abaixo do santuário - este uma espécie de gruta em pedra mas feita-para-fora - e comi umas fêbras acompanhadas com batatas fritas feitas na hora, como a minha mãe fazia - e ainda faria se eu lhas pedisse. A descida, depois, como a subida, foi feita com cuidado, zonas do asfalto completamente cobertas de geada eram mais do que muitas. 

Na volta desviei-me e passei pelo Arco de Baúlhe e pelo Restaurante Caneiro. Não era aqui que paravam as antigas carreiras para Chaves? 

A norte do Norte.

Não entendo as indecisões sobre férias. Quando não se sabe, há sempre a Galiza! E quem conhece a Galiza em Portugal? Quase ninguém.

Bom, não é minha função facilitar-vos a vida, pelo que vou só apôr aqui umas fotografias da fronteira marítima - portanto cantábrica - da Galiza com as Astúrias, Ribadeo, onde, embora fronteira, o galego que se ouve é bem genuíno, e de uma praia bem perto, conhecida como a Praia das Catedrais, pelas formações rochosas que alberga, e que tem o aliciante adicional de só poder ser visitada em maré baixa! O acesso hoje faz-se por auto-estrada que passa literalmente por cima de Ribadeo em direcção a Oviedo. A Galiza aqui tem uma parede montanhosa que depois desce em direcção ao mar e se suspende numa plataforma de uns cinco km de largo em plano até chegar ao mar, toda em verde. As praias são todas pequenas e bonitas. O turismo no verão é  muito e desorganizado. Parece quase um Portugal antigo.

A sequência de fotografias está boa de ver. Ficar em Ribadeo é no Hostal Linares - é central, simples e barato, pelo que me disseram.
















segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Peace and Love.

Nunca gostei muito do Joe Cocker. Começou com a banda sonora do Oficial e Cavalheiro e com aquele aspecto que ele tinha de estar tão estragado que não durava mais seis meses e, no entanto, só quinou aos 70 em 2014, 22 anos depois. 

Hoje vou tratar porém da maior destruição de uma canção de sempre: a versão que Joe Cocker fez em Woodstock de "With A Little Help From My Friends", originalmente gravada pelos Beatles.

Aqui vai a versão deles:




A canção é um programa simples, pragmático e que resulta para tudo: What would you think if I sang out of tune / Would you stand up and walk out on me? / Lend me your ears and I'll sing you a song / And I'll try not to sing out of key / Oh I get by with a little help from my friends / Mm I get high with a little help from my friends / Mm gonna try with a little help from my friends // What do I do when my love is away? / (Does it worry you to be alone?) / How do I feel by the end of the day? / (Are you sad because you're on your own?) / No I get by with a little help from my friends / Mm I get high with a little help from my friends / Mm gonna try with a little help from my friends // (Do you need anybody?) / I need somebody to love / (Could it be anybody?) / I want somebody to love // (Would you believe in a love at first sight?) / Yes I'm certain that it happens all the time / (What do you see when you turn out the light?) / I can't tell you, but I know it's mine / Oh I get by with a little help from my friends / Mm I get high with a little help from my friends / Oh I'm gonna try with a little help from my friends

(etc)

Ringo Starr (voz, nariz, humor, todo ele) é o vendedor perfeito da mensagem, mais sabermos que a canção foi um gesto de amizade de Paul e John para Ringo. Há algo mais simples e verdadeiro? Para Joe Cocker não e vai de subir ao palco e sofrer e sofrer, enfim, uma parvoíce. Bem sei que tinha ao seu lado a guitarra do Jimmy Page...



Why suffer, mother fucker?

domingo, 15 de janeiro de 2017

Three Lovers.



Em 2008 James Gray realizou um filme que contribuiu um bom bocado para a construção e elevação do mito Joaquin Phoenix, o irmão "cheio" de River Phoenix.
"Two Lovers"/"Duplo Amor" é sobre um estranho rapaz ex-suicida, que sobrevive à sua recuperação, aquela cápsula de atenção que rodeia os que tentaram e falharam o suicídio - os que têm família para tal. E, como na canção do Marco Paulo, acontecem duas raparigas na sua vida. Uma é morena e é tal qual a família quer, uma morena kosher de boa extração. Esta actriz, Vinessa Shaw, é muito interessante, mas do outro lado está Gwyneth Paltrow, que, infelizmente para nós, é muito mais mulher, perdida, perdida, perdida. E cada bom homem (!) ao menos uma vez na vida pensou, pensa, pensará em salvar uma coisa oh tão parecida com esta Gwyneth Paltrow, encravada no papel de amante de um figurão major league. Eu troquei os versos porque é esta a ordem certa nesta história.
Joaquin Phoenix é Leonard Kraditor. A história baseia-se num conto de Dostoyevsky. Portanto mete culpa, castigo, bem, mal, etc. Deus me livre de o ir ler, já basta o filme: Gwyneth Paltrow perde-se de uma vez por todas e Leonard decide que merece um plano B e fica com a judia, num momento de supremo egoísmo masculino. Phoenix, Joaquin, retrata aqui bem alguém que na realidade é fraco das ideias. O retrato que posteriormente desenhará para Woody Allen em The Irrational Man é um desastre. O filme está bem feito, bem filmado, bem dito. Leonard é um escroque. Acordem, meus! Não há planos! Com ou sem letras, não há!

Agora, boom! James Gray tinha um plano secreto que depois foi filmado mas os produtores cortaram-lhe as pernas. No seu plano secreto Leonard Kraditor recebia um surpreendente sms aí pelas onze da noite de...

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Dos enterros e dos discursos.

Estive a ver um pouco do elogio fúnebre lido por Isabel Soares no enterro do pai. Um texto bonito, sentido, óbvio porque nascido numa filha que, pelo pouco que sei, foi companhia dedicada e perene dele. A expressão "elogio fúnebre" é funesta. Porque determina o tardio que são as palavras ditas e, também, o unilateral das mesmas. Por outro lado fugimos dos elogios em vida por parecerem uma antecipação daqueles.
 
Estive muito recentemente no enterro de uma familiar próxima. Não tenho irmãos, tenho primos. Que eu revejo, a maioria, nestas terríveis ocasiões. Culpa minha, não deles, porque refugiei-me saindo de Ovar, terra difícil. Falecera uma tia minha. Não falava com ela vai para anos. Que mereceu o elogio correcto e próprio do pároco da minha terra, por quem tenho grande consideração, amizade até. Um elogio simpático mas neutro, impessoal.
 
Recebi, porque me acrescentei à fila de familiares, de quem efectivamente fazia parte, dezenas de cumprimentos. Dividi as pessoas em mãos quentes e mãos frias. Tentei relacionar esse achado com a idade dos interlocutores, debalde. Fazia frio no exterior, é certo, o que confundia. Alguns faziam um esforço para me reconhecer, sem sucesso. Não me pareço em nada ao rapaz que era há trinta e cinco anos, em Ovar. A sua presença era, porém, em nada relacionada comigo mas sim com quem morrera e connosco enquanto família conhecida na terra. "É a vida!", ouvi repetidas vezes. Não concordo. Foi sim a morte. Pena tive não haver para a minha tia palavras diferentes e únicas como vi hoje à tarde acontecerem nos Jerónimos. Assume-se que "não faz parte". Como não? O enterro anterior em que estive foi de outro tio meu, este de sangue, e foi subvertido por um texto que a minha prima Teresa decidiu ler. Digo subvertido porque quase pareceu uma coisa fora do normal, uma heresia, acontecer a leitura. Nos filmes americanos é sempre assim, alguém sobe ao púlpito e diz umas coisas ora sentidas, ora pausadas, ora ambas as coisas. Uma últimas palavras que não o são mas sim as primeiras do processo que se chama "não esquecer". Porque é isso que acontece sempre, alguém morre e o melhor elogio que se pode fazer é saber que alguém não vai esquecer essa pessoa. E só assim a morte é vencida. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O Américo.

O Américo tem 48 anos. Tem a cara acastanhada pelo sol, e parece assustado. Protesta pelo tempo que esperou. Chamei-o cinco minutos antes da hora marcada. Terá tido, terá tido - uma ressonância magnética semeou algumas dúvidas... - um acidente vascular cerebral no ano que passou. Do qual recuperou na totalidade. Fumador inveterado e alcoólico a tempo inteiro, as suas artes eram as das obras. Acabaram as obras mas não o tabaco e a bebida, para esquecer o desemprego, o tempo que morre sem parar. Deixou por completo de beber no dia que entrou no hospital e assim continuou depois. Alguém com pena dele - assistente social? médico de família? - declarou-o oficialmente "incapaz", ele conta. Como resultado, diz ele também, não cobra subsídio de desemprego nem rendimento de inserção. Pensarão que vive no interior perdido, pensarão mal. Reside num bairro social em Ermesinde, sózinho. Sai de casa e entra em casa de noite. O que o Américo me conta, confesso, pode não ser inteiramente verdade, porque há muitas coisas que o Américo não entende, não sabe, não apreende bem, porque o Américo não sabe ler. Quando era pequeno nem terminou a segunda classe, lá perto de casa havia um negociante com muitos cavalos, o Américo só queria estar com os cavalos, enfim, os cavalos são bem mais interessantes do que as letras, os números... Chegou a estar emigrado na Bélgica, despediram-no, e enganaram-no  aproveitando-se de não saber ler, a carta de despedimento a dizer que foi ele que se despediu. No bairro o serviço social tem-no em lista de espera para umas aulas, mas não há gente que chegue, efectivamente como o Americo haverá poucos. 
E é por estas e por outras que ele não para de fumar, mal entrei na consulta, tinha vindo cá fora resolver uma situação extra-numerária,  vi-lhe o maço de Camel A vida está dura, rouba as matas, os eucaliptais para vender lenha, faz uns biscates na lavoura, umas podas, toma conta dumas ovelhas que a irmã tem... em Alfena, levanta-se enervado às quatro da manhã para lhes ir arranjar pasto. Negociei com ele a medicação, aspirina e oxazepam, cinco euros no total da receita. Com o despejar da conversa esqueci-me de lhe entregar um relatório que tinha escrito dando-o como apto para o trabalho, pensei depois em enviar-lho para casa mas - como entenderia ele o seu sentido, sendo analfabeto? Afinal, quem lê para o Américo?
A vida não está fácil para os Américos deste país. Saiu da consulta mais manso, reconhecido talvez, e parece-me que virá à seguinte cumprindo a medicação e depois de controlar uma estenose da artéria vertebral que tem. Desempregado na mesma, isso sim, claro.