quinta-feira, 29 de setembro de 2016

As Asas Do Desejo e Tão Longe, Tão Perto, revisitados.


O cinema mudou. Vi anteontem à noite o documentário “Pina” realizado por Wim Wenders. Wim Wenders era uma referência do cinema que víamos nos anos 80 e 90. O mito de Wenders firmou-se em três filmes: “O Amigo Americano”, “Paris, Texas” e “As Asas do Desejo”. As três películas foram filmadas “sobre” bases literárias sólidas, a saber: “O Amigo Americano” nasce de uma novela de Patricia Highsmith da sua série Mr. Ripley, “Paris, Texas” foi escrito por Sam Shepard e “As Asas do Desejo” pelo seu velho cúmplice - amigo? - Peter Handke. O cinema mudou muito em trinta anos. “Pina” foi filmado em 3D. Que a fisicalidade de Pina Bausch mereça o 3D é mais do que aceitável. Que o filme, num ecrã normal de uma apenas razoável televisão, “ultrapassou-me” na mesma, sem nenhum 3D nem nada, faz pensar.



A filmografia continuou com os filmes “Até Ao Fim Do Mundo” e “Tão Longe, Tão Perto”. Parte da escrita foi assumida pelo próprio Wim Wenders, desta vez sem a base literária acima. Depois Wim Wenders faria o primeiro dos seus hiper famosos (mas não o primeiro…) documentários, nem mais nem menos do que o “Buena Vista Social Club” - 1999, e acabava o milénio. No que diz respeito a cinema ficcional EU, JE, MOI nunca mais ouvi falar de Wenders.



“Der Himmel Über Berlin” ou “As Asas Do Desejo” foi filmado em Berlim antes da caída do Muro. Retrospectivamente é difícil de dizer se a caída do mesmo se poderia adivinhar naqueles tempos – o filme foi filmado três anos antes. Revisto agora – e porque estive em Berlim recentemente – apercebo-me de não ser um filme ultrapassado, datado, perdido num tempo anterior. Não o é porque é um filme extraordinário. E é-o porque tem um texto de base – de Peter Handke – muito bom. Nele começa o filme e com ele acaba. 



Peter Handke – como Hitler – é mais um alemão nascido na Áustria. Poeta e escritor de novelas e peças de teatro, tornou-se conhecido mais recentemente como defensor da Sérvia de Slobodan Milosevic. Foi ao seu funeral e leu alto o seu elogio fúnebre. Por isto e algumas coisas mais é hoje um pária intelectual. Mas o que escreveu para “As Asas Do Desejo” está ali. E sem ele não havia filme. Peter Handke aliás forneceu argumento para dois dos filmes da primeira fase de Wenders, aquela “intelectual-para-o-parado” que o hoje ou ninguém viu ou já não se lembra, sendo um deles o famoso “A Angústia Do Guarda-Redes Antes Do Penálti”, famoso pela frase título que hoje é quase comum num comentário desportivo mais elaborado…



O filmar "esvoaçante" de Wim Wenders em "As Asas Do Desejo" é virtuoso, Berlin é aqui realmente a mais cinzenta das cidades, cheia de espaços abandonados, daqueles que pedem pela presença de um circo para ganharem sentido. E um circo acontece. Onde uma trapezista espera não por um cavaleiro mais seu cavalo branco mas. sim, por anjo que se faça homem e que a sua armadura deixe cair, de cobre castanho. O filme é isto portanto. E as palavras de Peter Handke terminam-no: "Ich weiss jetzt was kein engel weiss".









“Faraway, So Close”, “Tão Longe, Tão Perto” (TLTP), reporta ao filme anterior, “As Asas Do Desejo” (AADD), pois neste passávamos todo a filme, a preto-e-branco, a ver essa proximidade, às vezes milimétrica, sendo a distância a impossibilidade de interferência – e seguimos através do filme sem saber se afinal os anjos conseguem ou não pelo menos interferir nos pensamentos dos humanos, que ouvimos sem cessar e que às vezes mudam de direcção... TLTP é porém um filme mais colorido e com mais entretela: de que trata? Da continuação do primeiro, prometida no fim deste: se um anjo cai outro cairá. E a queda acontece mais cedo, junto a Alexander Platz, porque não podemos deixar que uma criança caia. Gabriel encontra o caído Damiel e Peter Falk, Berlim porém mudou. Vemo-la agora com as cores da mudança - caiu o Muro - e estas cores podem ser às vezes violentas. Como violenta vai ser a aprendizagem da vida "cá-em-baixo" por Cassiel. AADD era um poema visual, uma narrativa em verso voado. TLTP é uma novela que tem grandes problemas com a sua fluidez narrativa. Cassiel frequenta os meios boémios de Hackesche Höfe - que eu visitei vinte anos depois - ganha o emprego errado, pretende fazer o bem. Nastassja Kinski é o anjo Rafaela e, como anjo, não pode ajudar. E o mal é representado por Willem Dafoe, Emil Flesti, anagrama de Time Itself. Ele diz "Time isn't money, time is the absence of money!" E esta é a frase mais acertada de todo um filme onde o toque poético de Handke não está. Há sim a justiça poética final mas isso é outra coisa. Até a banda-sonora, torturada e barulhenta em AADD, é aqui mainstream, com o single de Lou Reed, "Why Can't I Be Good" a explicar à audiência o drama do protagonista. Percebam, vá... Filme portanto que vale muito a pena ver mas obra-prima não é.










Peter Falk fôra fundamental no equilíbrio de AADD: a sua poesia "ornitorrinca", novaiorquina mas nunca de Manhatann, equilibra o texto de Peter Handke, fornecendo o pé para caminharmos com o filme. Quando Falk reaparece em TLTP não é mais do que uma repetição. Roger Ebert, o crítico de cinema, escreveu que Peter Falk - em AADD - nos garantia que valia a pena ser humano ao ser a prova viva disso. O filme TLTP desmente-o. 



A moral da história deste dois filmes? AADD é uma história de paixão de um anjo, Damiel, por uma mulher trapezista. Que, no segundo filme se revela viver por cá como se um pateta alegre, protegido da realidade pelo objecto da sua adoração. Cassiel cai em TLTP por amor por toda a humanidade. E acaba por pagar o seu exagero: pois ao tornar-se homem devia ter deixado de ser anjo...

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Colchoaria Kental.

Hoje era dia de corte. Desencontros vários tinham até hoje cortado as hipóteses deste apocalipse de higiene. Passando várias vezes de carro verificava fechadas as portas, assumidas férias, do barbeiro, minhas... passaram seis meses?

Estacionei. Passara e mantinham-se fechadas as portas, caramba! Fechado de vez? Agora onde cortar o cabelo, aparar a barba? Isto são intimidades que um homem não muda a localização de ânimo leve. Aberta havia uma loja à esquerda, dentro por entre edredons e colchas um bem apessoado portuense, casaco e gravata, porque isto do negócio é coisa séria. "O Poderoso fechou?" "Fechou, já há uns meses. Procura o Sr. Manuel?" "Sim..." "Na Antóno Cândido, nos terceiros semáforos, à direita e depois à esquerda. Encontra-o lá." "Obrigado."

Antero de Quental acima, um, dois, três semáforos. Direita e esquerda. Minimercados, pequenos negócios, cafés e pastelarias, lojas de euro. Algumas lojas de melhor coturno, afinal é a Antero de Quental e cruzas a Constituição. Direita e esquerda e o quê? "Cabeleiro Teresa Botelho, unisexo". E, visto através da porta aberta e a cortar cabelo, o Sr. Manuel, que me reconheceu. Atravesso a rua, cumprimento o pessoal, Teresa Botelho, cheguei!

E tudo isto porque aquele senhor engravatado da loja do lado me tinha indicado o caminho, Pena sim que, cedendo à sugestão do seu neto, única explicação que eu aceito, a sua loja dê pelo nome de "COLCHOARIA KENTAL"...

domingo, 25 de setembro de 2016

Há vinte e cinco anos ou mais, em Ermesinde.

Assisti ontem a uma aula aberta de um workshop sobre como ser um clown. Escuso de explicar porque fui assistir. Depois ainda conversei um pouco com o sujeito/a da aula sobre esta coisa dos nomes ingleses, palhaço versus clown, correr versus running, etc. A explicação que me foi dada, e que aceito, é a de que palhaço classicamente é o palhaço do circo. E que de palhaços de circo não tratava a aula eu pude apreciar.

Odeio fazer "o ridículo". Contam que, eu muito pequeno, fugi de um circo por ter medo aos palhaços. Premonitório seria... Ainda hoje lhes tenho, chamemos, respeito, apavorado pela hipótese de, apesar de oculto no meio do anónimo público, me escolherem para ser voluntário numa daquelas brincadeiras em que alguma humilhação sempre acontece. E, sim, a alopecia androgenética também contribui para esta inequação.

Há mais de vinte e cinco anos participei num curso de... como se chamava mesmo, Cláudia?.. no Seminário de Ermesinde. Interacção Pessoal seria? Ficaram boas e menos boas recordações. Fiz algumas amizades, todas entretanto perdidas. Não fui sózinho para esse curso, um erro importante e que paguei. O Curso tinha um conhecido Psiquiatra da nossa praça como mestre-de-cerimónias. Numa das "cenas" todos nós comecávamos a zurrar violentamente. Zurrar, zurrar, zurrar... Depois pediram-me para sair da sala, depois para voltar. Voltámos a zurrar, zurrar e subitamente calaram-se todos, Eu também. A ideia era eu zurrar sózinho, muito alto, e rirem-se todos. Aprender a conviver com o ridículo, seria a lição. Não aconteceu. Eu percebera o truque. O psiquiatra olhou para mim e rosnou: "Tens a mania que és inteligente!".

Que uma filha minha se exponha apalhaçada como ontem vi, impressiona-me. Ainda bem que se me parece.

sábado, 24 de setembro de 2016

Berlim, a tarde do dia um e o Pergamon.

Berlim voltou a ser uma capital. Durante quarenta anos foi uma ilha e a linha de frente de uma fria e longa batalha. Dito isto, Berlim não é nem fácil nem difícil: é apenas a Capital duma tal de Alemanha!

Berlim tem muitas vespas. Quase não houve almoço em que não tivéssemos que lidar com elas, o seu interesse por bebidas doces, pela comida, por roupas coloridas, por nós. Que chatice!

Berlim tem alguns pedintes. Bem mais do que Viena, já agora. E neste primeiro almoço em Berlim lá me apareceram as raparigas ciganas "pseudo-mudas" a pedir umas assinaturas num papel e, na terceira alínea, um donativo. Berlim afinal tem os mesmos pedintes que o Porto. "As ciganas "mudas" do Porto eram mais giras", pensei. E continuei a comer a pizza. 

O Spree rodeia a ilha dos museus e tem direito aos seus passeios de barco, moderadamente cheios de visitantes. No entanto a existência do rio não permite desperdícios, e o espírito prático alemão leva a que, no centro de Berlim, lentos barcos de mercadorias passem, com a Berliner Dom ao fundo. Imaginem isto no Sena!

É difícil explicar a alguém nascida em 98 o que foi a Alemanha de Leste, a Cortina de Ferro, o Muro de Berlim. Não é termos a memória curta, não é não nos lembrarmos. É haver a Wikipedia. Ao nível do rio uma espécie de loja alargada servia como "Museu da DDR". Com um mau pressentimento (meu) fomos ver. O pressentimento cumpriu-se. Era uma espécie de parque temático apertado e indoor, onde se fazia fila para tirar uma fotografia dentro do Trabant, criticava-se o mau gosto das roupas e do papel de parede de Berlim-Leste, anos setenta, etc. Pelo meio era dada informação sobre a tenebrosa Stasi, a polícia política, a repressão física, psicológica e sobretudo intelectual. Mas poucos tinham a paciência para ler todos os textos "interactivos". Um posto de escuta da polícia política também servia para tirar muitas fotografias. Pode dizer-se até que o museu era divertido. Foi divertida a DDR?  

Depois voltámos a entrar na Ilha dos Museus e dirigimo-nos para o Pergamon. 

Voltemos às simpáticas relações do Ocidente com o Médio Oriente, o chamado Berço da Civilização. No virar dos séculos XIX para o XX havia, entre outras, uma competição adicional entre as Potências Europeias, nomeadamente a França, o Reino Unido e a Alemanha: escavar o mais possível toda e qualquer ruína antiga afamada e trazer para a Europa tudo o que de jeito transportar se pudesse, para "preservar a arte da sua degradação" e/mas, sobretudo, para glória do arqueólogo e do país "escavador". Desta louca correria nasceram ou engordaram o Louvre, o British Museum e o Pergamon. Os Ingleses, sabemos, foram campeões nesta corrida, Atenas que o diga, como os Franceses, com Napoleão no Egipto, tinham sido os pioneiros. Mas os Alemães também fizeram das suas. "It is very important for the museums’ collections, which are so far very deficient in Greek originals […] to now gain possession of a Greek work of art of a scope which, more or less, is of a rank close to or equal to the sculptures from Attica and Asia Minor in the British Museum." (carta do Ministro da Cultura da Prússia ao Kaiser Guilherme, 1876).  

Podemos portanto dizer que o Pergamonmuseum é um Jardim Zoológico de pedras. Que são muitas e impressionantes. 

À entrada avisavam-nos que justamente o altar de Pergamon, cidade turca que fora grega, estava inacessível por reabilitação. A aquisição deste altar ao Império Otomano fora negociada pelo prório Bismarck - e conseguida porque os Otomanos precisavam de aliados na frente europeia e estariam pobres em divisas...

Mas o Pergamon não tem só o Altar de Pergamon. Aliás teria ainda mais coisas que os Soviéticos roubaram em 45. E que os Alemães ainda não conseguiram de volta. Hummm....

A Porta de Ishtar e o Corredor Processional pertenciam à antiga Babilónia. A Alemanha ganhou a corrida e reconstruiu "dentro de casa" uma das antigas Maravilhas da Antiguidade". Restos existem espalhados por todo o mundo: "The Istanbul Archaeology Museum has lions, dragons, and bulls. Ny Carlsberg Glyptotek in Copenhagen, Denmark, has one lion, one dragon and one bull. The Detroit Institute of Arts houses a dragon. The Röhsska Museum in Gothenburg, Sweden, has one dragon and one lion; the Louvre, the State Museum of Egyptian Art in Munich, the Kunsthistorisches Museum in Vienna, the Royal Ontario Museum in Toronto, the Metropolitan Museum of Art in New York, the Oriental Institute in Chicago, the Rhode Island School of Design Museum, the Museum of Fine Arts in Boston, and the Yale University Art Gallery in New Haven, Connecticut, each have lions. One of the processional lions was recently loaned by Berlin's Vorderasiatisches Museum to the British Museum."

A monumental Porta do Mercado  de Mileto - outra cidade hoje turca, antes grega, só muito parcialmente é original. Mas não deixa de ser monumental, claro. Será por esta fixação na Ásia Menor que há tanta emigração turca para a Alemanha?

O museu tem muito mais material de várias zonas de excavação do Oriente Médio, um exagero. Pedras e estátuas e mais pedras. Mas por aqui não fica, e num piso superior avançamos para a Arte Islâmica. Um simpático Sultão Otomano ofereceu no séc XIX ao Kaiser Guilherme o baixo-relevo mais importante da Arte Omíada, o do Palácio de Mshatta, residência de inverno dos Omíadas na Jordânia, construido no século VIII. Os frisos não decorados ficaram no meio do deserto.

Mas talvez a peça mais actual e que mereça uma visita mais aturada seja o interior pintado em madeira de uma casa de um comerciante cristão de Aleppo, do início do século XVII. As paredes de madeira foram compradas por completo em 1912 e trazidas para a Alemanha. O pintor utiliza motivos cristãos, islâmicos e persas, num conglomerado de alusões que, naquele tempo, seriam um retrato do aglomerado de civilizações que havia em Aleppo. Sendo madeira, uma parede de vidro separa-nos da obra, cuja conservação assumo como muito difícil. Umas fotografias aéreas explicam-nos que a Casa Wakil, lugar de origem, por causa da Guerra Civil Síria hoje já não existe. "Estão a ver?" Fosse assim tão simples...

O Museu Pergamon intoxica, atrapalha. Claro que também deslumbra. É o museu alemão mais visitado.

E penso eu: vendíamos os Jerónimos e ficava toda a nossa dívida paga? Não o poderíamos recuperar depois por muita pressão que tivesse havido, legítima ou ilegítima, telefonemas do Mario Draghi, insinuações do Shchlaube, encorajamentos do Juncker, avaliações pragmáticas da situação por António Guterres ou José Manuel Durão Barroso... Tudo estaria escrito preto no branco, os emails, os memorandos, Marcelo Rebelo de Sousa a discursar: "ainda ficamos com a Batalha, Alcobaça, Mafra...".

Voltámos a atravessar o Spree e fomos lanchar a uma esplanada por ali perto onde havia música ao vivo. Os Berlinenses oram passavam ora deitavam-se na relva e relaxavam pois aproximava-se o fim da tarde de mais um dia. Se os Alemães se encontrassem em dívida "para com o mundo" que grandes monumentos estariam dispostos a vender? 

Voltámos por metro à Alexander Platz e fomos jantar turco ao Centro Comercial Alexa, numa discreta homenagem. No caminho de volta deparámo-nos com o mistério dos tubos pelo ar que Berlim às vezes apresenta, azuis ou cor-de-rosa: pelo que descobri depois são usados para extrair água do subsolo em áreas em construção - sendo Berlim uma cidade construida sobre terreno meio alagado... estes práticos alemães...

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Berlim dia um, primeira parte.

O Hotel4Youth fica na Bernauer Strasse. Tem duas estrelas, ou seja, não tem ar condicionado. É  muito novo, está limpo, e tem um nome nojento - acho eu. Fora isso o pequeno almoço é impecável, os empregados prestáveis. Chegados no dia anterior exigiram-me logo pagar a estadia. Não é habitual...  Verdade seja dita que o correctíssimo hotel vienense de três estrelas "caíra-me" no Visa umas semanas antes de lá chegar sequer. Bom, paguei. A Bernauer Strasse tem logo ali uma estação de metro. E um cartão em conta cobria os cinco dias e a viagem de volta a Schönefeld: nem pensar em voltar a pagar cinquenta euros. Primeira paragem: Alexander Platz.

A Alexander Platz era um dos centros da vida nocturna e da boémia berlinense entre as duas guerras. Perdida a segunda, ficou, como quase todo o centro de Berlim, para a DDR, a Alemanha de Leste. Hoje é um centro de paragem e de passagem de muita e muita gente. E dá-nos logo uma garantia: não estamos em Viena. Esta cidade que fala alemão é mais rápida, mais confusa, um pouco mais suja. A harmonia, a haver, é a dos opostos, dos extremos arquitectónicos que aqui se atacam e ali se completam. Combios, metro, trams. Trânsito mas nada de infernal. Barulho, sim, um bocado. E mais bicicletas também, curiosamente. Berlim é uma cidade plana. 

Vamos ao turismo. A praça é dominada por um Hotel recente, o Park Inn. Mas do outro lado da estação de comboios impõe-se um símbolo da DDR, a Fernsehturm, a torre da televisão da DDR e ainda o segundo edifício mais alto da União Europeia, pelo que li (qual o primeiro?). 368 metros de altura, construída nos anos sessenta. Á sua frente a Igreja de Santa Maria. Fomos caminhando para o rio, passando pela edifício vermelho da Câmara Municipal e penetrando por um pequeno bairro que representará do pouco que resta da Berlim antiga: Nikolaiviertel. Tudo impecavelmente restaurado, claro. Não esqueçamos: em 1945 Berlim foi não arrasada mas quase. E chegámos ao rio Spree. A minha ideia era penetrar já para a "Ilha dos Museus". Desviei-me um pouco. Atravessámos a Universidade Humboldt, esteio do comunismo ortodoxo antes de 89 e que sofreu uma limpeza de pessoal severa logo após. Pela Unter den Linden fizémos marcha atrás. A Ilha dos Museus é na realidade a metade norte de uma ilha desenhada pelo Spree e um canal. A ilha é um mar de gruas e obras, nem sempre de fácil diagnóstico. Há sobretudo um enorme estaleiro onde antes era o palácio dos príncipes do Bradenburgo, da Prússia e dos imperadores Germânicos, o Stadtschloss. À esquerda uma enorme igreja, a Berliner Dom. É um edifício enorme, Neo-Renascença, dizem, construído no virar do séc. XX. Seria a tardia resposta luterana a S.Pedro. Curiosamente  o Bispado protestante de Berlim nunca chegou a ter aqui a sua sede. Entrámos - a nave é ampla, imponente, e subimos  à cúpula, que tem um passadiço exterior ao qual se pode aceder. 
Descemos para almoçar num italiano junto ao Spree.

Katherine Mansfield e The Garden Party.

Não sei bem quando li pela primeira vez "The Garden Party". Sei que foi há muito e muito tempo, no paleolítico da minha consciência enquanto leitor. Nunca esqueci "The Garden Party" mas tinha esquecido o porquê. Não há como reler para lembrar, perceber, pensar: "Ahhhh!".
Katherine Mansfield, nascida Kathleen e na Nova Zelândia, foi uma errática súbdita do Império Britânico e da vida que breve viveu e breve escreveu, sendo esta colecção de contos a sua mais conhecida, publicada pouco antes de morrer com tuberculose.
O que gosto mais de ler? O brilho. O brilho de uma escrita... cintilante. E terá sido com Katherine Mansfield que pela primeira vez terá acontecido, o eu deixar-me encadear pelo brilho das palavras, do seu entrançado. E ficou a memória, essa, como de uma luz matinal que, acontecendo uma vez, ilumina meses.
Voltou agora a acontecer numa edição de bolso Europa-América, com erros ortográficos por revisão insuficiente mas onde, apesar de tudo, o brilho está todo. Ehhh lááááá!



"Por que nos sentimos tão diferentes durante a noite? Por que é tão excitante estar acordado, quando estão a dormir? Tarde... É muito tarde! E, contudo, sentimo-nos cada vez mais despertos, como se respirássemos profunda e lentamente, acordando para um mundo maravilhoso, muito mais emocionante e excitante que o diurno. E que sensação estranha é esta, de se ser como que um conspirador? Levemente, secretamente, movimentamo-nos no quarto. Tiramos qualquer coisa do toucador e voltamos a colocá-la, sem um ruído. E tudo, até as colunas da cama, nos reconhecem, respondem, partilham os nossos segredos.
(...)
Mas quando Beryl olhou para o bosque, este pareceu-lhe triste.
"Somos árvores mudas, agigantando-se na noite, implorando não sabemos o quê", disse o bosque, lamentando-se.
Na verdade, quando se está sózinho e se pensa na vida, é sempre triste. Toda aquela excitação, e o resto, de algum modo nos abandona e é como se, em silêncio, alguém chamasse pelo nosso nome e o ouvíssemos pela primeira vez:
- Beryl.
- Sim, estou aqui. Sou a Beryl. Quem me chama?
- Beryl...
- Deixa-me ir.
É de uma enorme solidão, viver-se isolado. Claro que se estabelecem relações, que há amigos, montes deles; mas não é isso que ela se refere. Ela queria que alguém descobrisse a Beryl que nenhum deles conhecia, que contasse que ela fosse sempre aquela Beryl. Desejava ser amada."



"A maré baixara, a praia estava deserta e as vagas, mornas, deixavam-se abater pesadamente. O Sol, baixo, abrasava a areia fina e crestava os seios matizados de cinzento, de azul, de preto e branco. Aspirava as pequenas gotas depositadas nas concavidades das conchas, descorava os "bons-dias" que se enroscavam em torno das dunas. Só os pequenos insectos pareciam mover-se. Pit-pit-pit! Nunca estavam parados. Ali, nas rochas cobertas de algas, que na maré baixa pareciam animais hirsutos vindos até à água para beber, a luz do Sol parecia girar como uma moeda prateada, atirada às concavidades dos pequenos rochedos. Dançavam e tremeluziam, enquanto breves e pequenas ondas lavavam as areias porosas. Olhando, debruçados, para baixo, cada concavidade assemelhava-se a um lago, com casas rosa e azuis, aglomeradas na praia e ah!... a extensa paisagem montanhosa por detrás daquelas casas, as ravinas, os desfiladeiros, os riachos perigosos e os trilhos assustadores que levavam até à beira da água. Lá em baixo, ondulava a floresta marinha - árvores cor-de-rosa entrelaçadas, anémonas aveludadas e ervas alaranjadas, salpicadas de bagas. Agora, no fundo, uma pedra deslocava-se, arrastada, e um tentáculo brilhava, depois, via-se uma criatura trepadora a agitar-se, desaparecendo em seguida. Algo se passava com as ondulantes árvores cor-de-rosa, estavam a ficar de um azul-frio como o luar. E, agora, ouvía-se um "plop" absolutamente fantástico. Quem fazia tal barulho? Que se passaria lá em baixo? Como era forte e húmido o cheiro das algas sob aquele sol escaldante."



"Laura pousou o auscultador, levantou os braços por sobre a cabeça, suspirou profundamente, espreguiçou-se e deixou-os cair. "Hum", suspirou e sentou-se logo a seguir. Estava calada, à escuta. Todas as portas pareciam estar abertas. A casa tinha vida, havia passos delicados e rápidos e contínuas vozes. A porta de cortinados verdes que dava para a zona da cozinha balançou, aberta, e fechou-se com uma pancada surda. Depois veio um som longo, como uma risada absurda. Era o pesado piano a ser deslocado sobre os rodízios emperrados. Mas a atmosfera! Se se parasse para ouvir, a atmosfera era sempre assim? Peqnenas correntes de ar entretinham-se no cimo das janelas e no exterior das portas. E havia duas pequenas manchas de sol, uma sobre o tinteiro e outra numa moldura de prata, brincando também. Adoráveis manchas. Em especial a da tampa do tinteiro. Estava bem quente. Uma estrelinha de prata quente. Podia tê-la beijado."

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Vienna day six, Berlim dia zero.

A frequente frequência dos museus de Viena não foi por mim planeada nem imposta, aconteceu e foi benvinda pela jovem companhia, o que se apreciou.

Era o último dia em Viena, fomos ao Albertina. O Albertina chama-se assim por ter nascido de uma colecção de obras de um príncipe Alberto - portanto "Albertina" igual a "de Alberto". Mais importante saber que o palácio onde o Albertina se localiza é o chamado Palácio Tarouca, construido pelo Conde de Tarouca, Manuel Silva de Castro, conselheiro da Coroa Vienense e amigo pessoal do Marquês de Pombal, ou seja, um português. Conhecido como Museu da Arte Gráfica, recentemente adquiriu uma importante obra pictórica da transição do séc. XIX para o XX. Parte importante esta aquisição dava corpo à exposição publicitada, "De Monet a Picasso".
Ao mesmo tempo em exposição encontrámos fotógrafos interessantes, um deles indiciado como ilustrador dos tempos do Anschluss Austríaco, o que era enunciado sem peias.

A qualidade das obras não é preciso reforçar. Havia um corredor só com Paul Klee. What can I say...

Almoçámos a famosa salsicha vienense no pão, sentámo-nos nas escadas do Albertina. Fomos depois à procura de Amalienbad, uma espécie de estância termal Art Nouveau em plena Viena. Encontrámo-la mas não pudémos visitar o interior, só se a fôssemos usar. Amalienbad ficava numa praça tranquila, onde também era manifesto o mosaico de aparências que compõem esta Viena. Uma praça porém silenciosa, como silenciosa nos pareceu Viena  no seu todo. Os Austríacos "originais" mais sózinhos, porém, quase sempre.

E era o fim de Viena. Fomos buscar as malas ao Hotel. Pelo caminho assistimos a duas iniciativas musicais de rua de apoio ao candidato presidencial de esquerda, a primeira folky, a segunda tecno. Apanhámos o metro até Wienna Mitte e depois o CAT, o comboio directo para Schwechat, o  Aeroporto de Viena. Aeroporto este claustrofóbico, fechado, confuso, misturando entradas e saídas. Não sofremos por esta confusão e seguimos a tempo para Berlin, voo da Easyjet.

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O Aeroporto low cost de Berlim chama-se Schönefeld. Nele aterrámos. Porque era tarde permiti um novo assalto à minha carteira sob a forma de apanhar um táxi. Um germano-libanês levou-nos até ao Hotel por apenas 50 euros. A condução foi bem aventureira, nada a ver com o táxi de Viena, que cumprira devidamente os limites de velocidade. O nosso amigo libanês discutiu política, falou do Cristiano Ronaldo, ultrapassou pela direita, cruzou contínuos, enganou-se na rua de destino - felizmente a cem metros da rua desejada, Bernauer Strasse. Cinquenta euros depois, tudo acabou em bem. 
O primeiro contacto com o novo hotel não foi... amistoso. Mas nada como dormir para reavaliar. Estávamos em Berlim. Willkommen! 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Nadir Afonso - Chaves.

Está por explicar a pouca importância que se dá em Portugal à pintura de Nadir Afonso. Talvez a razão esteja no facto de Nadir Afonso ter sido sempre um desalinhado que não seguia a linha desalinhada oficial...

Em Chaves está um museu desenhado para ele por Siza Vieira. Por pouco tempo falhou Nadir Afonso  a sua inauguração - "nadir" vem do hebreu e quer dizer "raro" (em árabe também...) - ao morrer aos 93 anos em 2013. 
Invertendo o ónus conviveram com ele Léger, Xenakis, Niemeyer, Le Corbusier, Portinari. Et pour cause!
Mas vamos deixar falar a pintura...