sábado, 3 de setembro de 2016

Camilo - A Queda dum Anjo - a segunda e a terceira.

"No dia seguinte, quando as aves abraseadas do sol das onze horas se embrenhavam nos tufos das ramagens, lá estava Vasco da Cunha debaixo da árvore.
À mesma hora, Calisto Elói circulava a parede da mata em que se emboscava o religioso mancebo, saltava de manso, e quase a súbitas passava rente dele ombro a ombro. 
Vasco não conheceu o homem que o fitava com sobranceria. Três meses antes se havia encontrado em casa do desembargador Sarmento com um Calisto que não tinha que ver com aquele homem.
Sorriu-se o morgado, e disse-lhe:
- Costuma V. Exa. intermear as suas novenas com a oração mental nas brenhas e florestas, à imitação dos antigos padres? Ou está pedindo aos deuses infernais que lhe levem a alma da tia, e lhe deixem o vínculo da mesma para poder maridar-se com a Sra. D. Adelaide Sarmento?
Alumiou-se Vasco de uns longes de suspeita, e cuidou estar ouvindo a voz mesurada e sonora de Calisto. 
- O senhor... - disse ele.
- Eu, quê? - atalhou o morgado à suspensão do moço. 
- Com que direito vem aqui incomodar-me? - tornou o mordomo das três virtudes cardeais. 
- Não o incomodo, nem me incomodo. Dir-lhe-ei muito de relance que mora ali naquela casa uma prima de um Barbuda, e acrescentarei que tal dama não fez novenas a santo nenhum das particulares devoções de V. Exa. Se o Sr. Vasco da Cunha aqui voltar amanhã, continuaremos a palestra.
Vasco não voltou."


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"Numa noite, Ifigénia reparou na atenção e nos sorrisos de um grupo. Ao voltar a vista para seu primo, encontrou os olhos dele, com uma tempestade sobranceira, que era o avincado profundo da testa. Andava por ali naquela fronte sangue de Trás-os-Montes, sangue de Barbudas.
Calisto estremara o doutor Libório de Meireles, entre a roda dos peraltas, que bebiam da garrafeira do paternal tendeiro, prodigalizada ao filho das esperanças suas e da Pátria.
Num intervalo, saiu Calisto Elói do camarote, e como não encontrasse no pórtico nem nos corredores o risonho deputado portuense, entrou à plateia.
Avizinhou-se de Libório, que o encarou com semblante de cor incerta.
- O colega por aqui? - disse o doutor. - Reminiscências me não acodem de havê-lo visto na plateia!
Calisto, sem o fitar no rosto, respondeu:
- Venho ver as dimensões das suas orelhas.
- Como assim!...  - balbuciou Libório.
- Tenciono puxar-lhas até à boca, no propósito de tapar com elas um riso alvar que vossa mercê tem, e que incomoda grandemente. Veja lá se a operação lhe convém aqui ou lá fora.
- Não compreendo a razão do insulto! - disse Libório.
- Será lá fora - concluiu Calisto, e saiu.
A gente que rodeava o doutor portuense comportou-se bem: cada qual dizia de si para consigo que, se o caso fosse com ele, o provinciano engoliria a injúria com uma bala; assim, como não era com eles o caso, Calisto mereceu a Deus a felicidade de não ser varado de balas.
O que passa como certo é que Libório nunca mais franziu um riso voltado para a frisa de Ifigénia."

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