Berlim voltou a ser uma capital. Durante quarenta anos foi uma ilha e a linha de frente de uma fria e longa batalha. Dito isto, Berlim não é nem fácil nem difícil: é apenas a Capital duma tal de Alemanha!
Berlim tem muitas vespas. Quase não houve almoço em que não tivéssemos que lidar com elas, o seu interesse por bebidas doces, pela comida, por roupas coloridas, por nós. Que chatice!
Berlim tem alguns pedintes. Bem mais do que Viena, já agora. E neste primeiro almoço em Berlim lá me apareceram as raparigas ciganas "pseudo-mudas" a pedir umas assinaturas num papel e, na terceira alínea, um donativo. Berlim afinal tem os mesmos pedintes que o Porto. "As ciganas "mudas" do Porto eram mais giras", pensei. E continuei a comer a pizza.
O Spree rodeia a ilha dos museus e tem direito aos seus passeios de barco, moderadamente cheios de visitantes. No entanto a existência do rio não permite desperdícios, e o espírito prático alemão leva a que, no centro de Berlim, lentos barcos de mercadorias passem, com a Berliner Dom ao fundo. Imaginem isto no Sena!
É difícil explicar a alguém nascida em 98 o que foi a Alemanha de Leste, a Cortina de Ferro, o Muro de Berlim. Não é termos a memória curta, não é não nos lembrarmos. É haver a Wikipedia. Ao nível do rio uma espécie de loja alargada servia como "Museu da DDR". Com um mau pressentimento (meu) fomos ver. O pressentimento cumpriu-se. Era uma espécie de parque temático apertado e indoor, onde se fazia fila para tirar uma fotografia dentro do Trabant, criticava-se o mau gosto das roupas e do papel de parede de Berlim-Leste, anos setenta, etc. Pelo meio era dada informação sobre a tenebrosa Stasi, a polícia política, a repressão física, psicológica e sobretudo intelectual. Mas poucos tinham a paciência para ler todos os textos "interactivos". Um posto de escuta da polícia política também servia para tirar muitas fotografias. Pode dizer-se até que o museu era divertido. Foi divertida a DDR?
Depois voltámos a entrar na Ilha dos Museus e dirigimo-nos para o Pergamon.
Voltemos às simpáticas relações do Ocidente com o Médio Oriente, o chamado Berço da Civilização. No virar dos séculos XIX para o XX havia, entre outras, uma competição adicional entre as Potências Europeias, nomeadamente a França, o Reino Unido e a Alemanha: escavar o mais possível toda e qualquer ruína antiga afamada e trazer para a Europa tudo o que de jeito transportar se pudesse, para "preservar a arte da sua degradação" e/mas, sobretudo, para glória do arqueólogo e do país "escavador". Desta louca correria nasceram ou engordaram o Louvre, o British Museum e o Pergamon. Os Ingleses, sabemos, foram campeões nesta corrida, Atenas que o diga, como os Franceses, com Napoleão no Egipto, tinham sido os pioneiros. Mas os Alemães também fizeram das suas. "It is very important for the museums’ collections, which are so far very deficient in Greek originals […] to now gain possession of a Greek work of art of a scope which, more or less, is of a rank close to or equal to the sculptures from Attica and Asia Minor in the British Museum." (carta do Ministro da Cultura da Prússia ao Kaiser Guilherme, 1876).
Podemos portanto dizer que o Pergamonmuseum é um Jardim Zoológico de pedras. Que são muitas e impressionantes.
À entrada avisavam-nos que justamente o altar de Pergamon, cidade turca que fora grega, estava inacessível por reabilitação. A aquisição deste altar ao Império Otomano fora negociada pelo prório Bismarck - e conseguida porque os Otomanos precisavam de aliados na frente europeia e estariam pobres em divisas...
Mas o Pergamon não tem só o Altar de Pergamon. Aliás teria ainda mais coisas que os Soviéticos roubaram em 45. E que os Alemães ainda não conseguiram de volta. Hummm....
A Porta de Ishtar e o Corredor Processional pertenciam à antiga Babilónia. A Alemanha ganhou a corrida e reconstruiu "dentro de casa" uma das antigas Maravilhas da Antiguidade". Restos existem espalhados por todo o mundo: "The Istanbul Archaeology Museum has lions, dragons, and bulls. Ny Carlsberg Glyptotek in Copenhagen, Denmark, has one lion, one dragon and one bull. The Detroit Institute of Arts houses a dragon. The Röhsska Museum in Gothenburg, Sweden, has one dragon and one lion; the Louvre, the State Museum of Egyptian Art in Munich, the Kunsthistorisches Museum in Vienna, the Royal Ontario Museum in Toronto, the Metropolitan Museum of Art in New York, the Oriental Institute in Chicago, the Rhode Island School of Design Museum, the Museum of Fine Arts in Boston, and the Yale University Art Gallery in New Haven, Connecticut, each have lions. One of the processional lions was recently loaned by Berlin's Vorderasiatisches Museum to the British Museum."
A monumental Porta do Mercado de Mileto - outra cidade hoje turca, antes grega, só muito parcialmente é original. Mas não deixa de ser monumental, claro. Será por esta fixação na Ásia Menor que há tanta emigração turca para a Alemanha?
O museu tem muito mais material de várias zonas de excavação do Oriente Médio, um exagero. Pedras e estátuas e mais pedras. Mas por aqui não fica, e num piso superior avançamos para a Arte Islâmica. Um simpático Sultão Otomano ofereceu no séc XIX ao Kaiser Guilherme o baixo-relevo mais importante da Arte Omíada, o do Palácio de Mshatta, residência de inverno dos Omíadas na Jordânia, construido no século VIII. Os frisos não decorados ficaram no meio do deserto.
Mas talvez a peça mais actual e que mereça uma visita mais aturada seja o interior pintado em madeira de uma casa de um comerciante cristão de Aleppo, do início do século XVII. As paredes de madeira foram compradas por completo em 1912 e trazidas para a Alemanha. O pintor utiliza motivos cristãos, islâmicos e persas, num conglomerado de alusões que, naquele tempo, seriam um retrato do aglomerado de civilizações que havia em Aleppo. Sendo madeira, uma parede de vidro separa-nos da obra, cuja conservação assumo como muito difícil. Umas fotografias aéreas explicam-nos que a Casa Wakil, lugar de origem, por causa da Guerra Civil Síria hoje já não existe. "Estão a ver?" Fosse assim tão simples...
O Museu Pergamon intoxica, atrapalha. Claro que também deslumbra. É o museu alemão mais visitado.
E penso eu: vendíamos os Jerónimos e ficava toda a nossa dívida paga? Não o poderíamos recuperar depois por muita pressão que tivesse havido, legítima ou ilegítima, telefonemas do Mario Draghi, insinuações do Shchlaube, encorajamentos do Juncker, avaliações pragmáticas da situação por António Guterres ou José Manuel Durão Barroso... Tudo estaria escrito preto no branco, os emails, os memorandos, Marcelo Rebelo de Sousa a discursar: "ainda ficamos com a Batalha, Alcobaça, Mafra...".
Voltámos a atravessar o Spree e fomos lanchar a uma esplanada por ali perto onde havia música ao vivo. Os Berlinenses oram passavam ora deitavam-se na relva e relaxavam pois aproximava-se o fim da tarde de mais um dia. Se os Alemães se encontrassem em dívida "para com o mundo" que grandes monumentos estariam dispostos a vender?
Voltámos por metro à Alexander Platz e fomos jantar turco ao Centro Comercial Alexa, numa discreta homenagem. No caminho de volta deparámo-nos com o mistério dos tubos pelo ar que Berlim às vezes apresenta, azuis ou cor-de-rosa: pelo que descobri depois são usados para extrair água do subsolo em áreas em construção - sendo Berlim uma cidade construida sobre terreno meio alagado... estes práticos alemães...
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