sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Katherine Mansfield e The Garden Party.

Não sei bem quando li pela primeira vez "The Garden Party". Sei que foi há muito e muito tempo, no paleolítico da minha consciência enquanto leitor. Nunca esqueci "The Garden Party" mas tinha esquecido o porquê. Não há como reler para lembrar, perceber, pensar: "Ahhhh!".
Katherine Mansfield, nascida Kathleen e na Nova Zelândia, foi uma errática súbdita do Império Britânico e da vida que breve viveu e breve escreveu, sendo esta colecção de contos a sua mais conhecida, publicada pouco antes de morrer com tuberculose.
O que gosto mais de ler? O brilho. O brilho de uma escrita... cintilante. E terá sido com Katherine Mansfield que pela primeira vez terá acontecido, o eu deixar-me encadear pelo brilho das palavras, do seu entrançado. E ficou a memória, essa, como de uma luz matinal que, acontecendo uma vez, ilumina meses.
Voltou agora a acontecer numa edição de bolso Europa-América, com erros ortográficos por revisão insuficiente mas onde, apesar de tudo, o brilho está todo. Ehhh lááááá!



"Por que nos sentimos tão diferentes durante a noite? Por que é tão excitante estar acordado, quando estão a dormir? Tarde... É muito tarde! E, contudo, sentimo-nos cada vez mais despertos, como se respirássemos profunda e lentamente, acordando para um mundo maravilhoso, muito mais emocionante e excitante que o diurno. E que sensação estranha é esta, de se ser como que um conspirador? Levemente, secretamente, movimentamo-nos no quarto. Tiramos qualquer coisa do toucador e voltamos a colocá-la, sem um ruído. E tudo, até as colunas da cama, nos reconhecem, respondem, partilham os nossos segredos.
(...)
Mas quando Beryl olhou para o bosque, este pareceu-lhe triste.
"Somos árvores mudas, agigantando-se na noite, implorando não sabemos o quê", disse o bosque, lamentando-se.
Na verdade, quando se está sózinho e se pensa na vida, é sempre triste. Toda aquela excitação, e o resto, de algum modo nos abandona e é como se, em silêncio, alguém chamasse pelo nosso nome e o ouvíssemos pela primeira vez:
- Beryl.
- Sim, estou aqui. Sou a Beryl. Quem me chama?
- Beryl...
- Deixa-me ir.
É de uma enorme solidão, viver-se isolado. Claro que se estabelecem relações, que há amigos, montes deles; mas não é isso que ela se refere. Ela queria que alguém descobrisse a Beryl que nenhum deles conhecia, que contasse que ela fosse sempre aquela Beryl. Desejava ser amada."



"A maré baixara, a praia estava deserta e as vagas, mornas, deixavam-se abater pesadamente. O Sol, baixo, abrasava a areia fina e crestava os seios matizados de cinzento, de azul, de preto e branco. Aspirava as pequenas gotas depositadas nas concavidades das conchas, descorava os "bons-dias" que se enroscavam em torno das dunas. Só os pequenos insectos pareciam mover-se. Pit-pit-pit! Nunca estavam parados. Ali, nas rochas cobertas de algas, que na maré baixa pareciam animais hirsutos vindos até à água para beber, a luz do Sol parecia girar como uma moeda prateada, atirada às concavidades dos pequenos rochedos. Dançavam e tremeluziam, enquanto breves e pequenas ondas lavavam as areias porosas. Olhando, debruçados, para baixo, cada concavidade assemelhava-se a um lago, com casas rosa e azuis, aglomeradas na praia e ah!... a extensa paisagem montanhosa por detrás daquelas casas, as ravinas, os desfiladeiros, os riachos perigosos e os trilhos assustadores que levavam até à beira da água. Lá em baixo, ondulava a floresta marinha - árvores cor-de-rosa entrelaçadas, anémonas aveludadas e ervas alaranjadas, salpicadas de bagas. Agora, no fundo, uma pedra deslocava-se, arrastada, e um tentáculo brilhava, depois, via-se uma criatura trepadora a agitar-se, desaparecendo em seguida. Algo se passava com as ondulantes árvores cor-de-rosa, estavam a ficar de um azul-frio como o luar. E, agora, ouvía-se um "plop" absolutamente fantástico. Quem fazia tal barulho? Que se passaria lá em baixo? Como era forte e húmido o cheiro das algas sob aquele sol escaldante."



"Laura pousou o auscultador, levantou os braços por sobre a cabeça, suspirou profundamente, espreguiçou-se e deixou-os cair. "Hum", suspirou e sentou-se logo a seguir. Estava calada, à escuta. Todas as portas pareciam estar abertas. A casa tinha vida, havia passos delicados e rápidos e contínuas vozes. A porta de cortinados verdes que dava para a zona da cozinha balançou, aberta, e fechou-se com uma pancada surda. Depois veio um som longo, como uma risada absurda. Era o pesado piano a ser deslocado sobre os rodízios emperrados. Mas a atmosfera! Se se parasse para ouvir, a atmosfera era sempre assim? Peqnenas correntes de ar entretinham-se no cimo das janelas e no exterior das portas. E havia duas pequenas manchas de sol, uma sobre o tinteiro e outra numa moldura de prata, brincando também. Adoráveis manchas. Em especial a da tampa do tinteiro. Estava bem quente. Uma estrelinha de prata quente. Podia tê-la beijado."

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